Janela Indiscreta / Rear Window

4.0 out of 5.0 stars

Janela Indiscreta é um filme genial.

Algumas palavras são tão usadas que acabam perdendo a força, o viço, o frescor. Ficam esgarçadas. “Genial” talvez seja o exemplo mais perfeito disso.

Exatamente porque é usada demais, a torto e a direito, por quase todo mundo, a palavra genial não costuma frequentar meus textos. E foi exatamente por isso que escolhi usá-la logo de cara aqui. Porque neste caso a palavra vale, é perfeitamente adequada, e com toda a força, o viço, o frescor do conceito que o uso exagerado empanou: Janela Indiscreta é um filme genial.

É em Janela Indiscreta que se concentram de forma mais clara, mais límpida, todas as qualidades que fazem de Alfred Hitchcock um gênio do cinema. Está tudo lá, a inteligência, a esperteza, a sabedoria, a sagacidade, a habilidade de contar uma história e envolver nela o espectador – está tudo lá, concentrado em 112 minutos de perfeição.

A câmara mostra exatamente o que os olhos do protagonista vêem

Tudo, absolutamente tudo acontece nos apartamentos de fundo de um quarteirão, que dão para uma área interna, um pátio, a rigor um conjunto de pátios.

A câmara fica sempre, o tempo todo, dentro de um dos apartamentos, o do protagonista da história, L.B. Jefferies, que todos conhecem como Jeff – o papel de James Stewart, então no segundo dos quatro filmes que faria com Alfred Hitchcock. (Os outros três são Festim Diabólico/Rope, 1948, O Homem Que Sabia Demais, 1956, e Um Corpo Que Cai/Vertigo, 1958.)

Em boa parte do tempo, a câmara passeia dentro do principal cômodo do pequeno apartamento de fundos de Jeff, e vemos Jeff se relacionando com as pessoas que vão até lá. E, no restante do tempo, a câmara perambula pela área interna entre os diversos prédios de apartamento e pelos apartamentos que podem ser vistos da janela da sala de Jeff. A câmara vê o que Jeff vê: a câmara, quando mostra o que está fora da sala em que Jeff está, é como se fosse os olhos dele. O que o espectador vê que está acontecendo nos apartamentos é o que Jeff está vendo.

É a tal da câmara subjetiva – a câmara que faz as vezes dos olhos do personagem.

Esta é uma das chaves do filme: a câmara, quando mostra o que está fora da sala, o que está no pátio interno da quadra e nos apartamentos em volta, está vendo o que Jeff vê.

Na imensa maior parte do tempo a câmara mostra para nós o que Jeff está vendo – mas não todo o tempo. Durante os 4 primeiros dos 112 minutos de cinema espetacular, Jeff está dormitando, não está vendo coisa alguma – e a câmara nos mostra o que ele vê quando está acordado. A câmara dá um giro por todos os apartamentos que, como o de Jeff, estão voltados para a área interna da quadra, o pátio interno.

Já nessa primeira apresentação que a câmara faz para nós da área em que toda a ação vai se passar, vemos alguns dos personagens do drama que está começando.

Depois da rodada pela área externa, a câmara passa a mostrar o interior do apartamento de Jeff. Lá está ele dormitando, no meio da tarde. Vemos máquinas fotográficas, várias, e vemos fotos pelas paredes, de diversos lugares do mundo. Uma capa de revista. Sim: Jeff é um fotógrafo profissional, um repórter fotográfico, trabalha para uma revista editada ali em Nova York, viaja para todas as partes do mundo cobrindo guerras, desastres, façanhas esportivas.

A câmara então mostra Jeff de corpo inteiro: está dormitando sentado na sala de seu pequeno apartamento do Greenwich Village numa cadeira de rodas – sua perna esquerda está toda engessada, do pé até o alto da coxa.

Veremos logo em seguida que ele já passou seis semanas inteirinhas ali, na inatividade total, absoluta. Na semana seguinte, poucos dias depois de quando o vemos pela primeira vez, finalmente poderá tirar o gesso e voltar a trabalhar. Pelo menos é o que ele acha.

Hitchcock fez vários filmes passados em lugares pequenos

Tudo, absolutamente tudo vai se passar naquele pequeno espaço – a sala do apartamento de Jeff e a área que ele consegue ver a partir de sua cadeira de rodas, o pátio interno de um quarteirão do Village.

Pequeno espaço, o interior de uma quadra? Para Alfred Hitchcock, aquilo é uma imensidão. Afinal, ele já havia feito, por exemplo, um filme em que toda a ação se passa em um barco de salva-vidas (Um Barco e Nove Destinos/Lifeboat, 1944). Um outro em que absolutamente toda a ação se passa no interior de um apartamento, sem que a câmara mostre o que se passa lá fora (Festim Diabólico/Rope, 1951). Um outro em que praticamente toda a ação também se concentra em um apartamento (Disque M para Matar, 1954).

Quando o filme está com 4 minutos e tanto, toca o telefone. É Gunnison, o editor da revista – uma esperta sacada do roteirista John Michael Hayes para transmitir informações básicas aos espectadores. Gunnison havia se enganado de data, achava que Jeff já estaria para tirar o gesso no dia seguinte. Jeff explica que não, que é só na semana seguinte.

Pelo diálogo entre os dois (a voz de Gunnison é do ator Gig Young), o espectador fica sabendo que – conforme já haviam antecipado aquelas fotos nas paredes mostradas pela câmara – de fato Jeff é um fotógrafo de uma publicação importante, e está sempre viajando mundo afora. Se não fosse pelo fato de ainda estar com a perna engessada, naquela semana mesmo estaria embarcando para a Caxemira para uma nova reportagem.

Um sujeito grandalhão, sempre com a cara amarrada. Deve ser um criminoso

Naquelas semanas enervantes passadas em casa, sem poder sair, sem poder trabalhar, o sempre viajador, aventureiro L. B. Jefferies havia se dedicado a – fazer o que, não é mesmo? – observar o que acontecia à sua volta. Quer dizer: nos pátios internos do prédio e nos cômodos dos apartamentos que eram visíveis a partir de sua janela ali no segundo piso de seu edifício.

Por absoluta falta de outra coisa para fazer, durante dias após dias, Jeff dedicou-se a bisbilhotar a vida dos outros.

Bisbilhotar. Esquadrinhar, fuçar a vida dos outros.

Tinha virado um voyeur – e a câmara de Hitchcock, a câmara mais voyeur da história do cinema, nos transforma, a cada um de nós, num voyeur também. Ficamos ali indiscretamente xeretando os passos de dança da bailarina que mora bem diante da janela de Jeff, e que ele chama de Miss Torso; as tentativas do compositor ali do outro apartamento de criar sua nova melodia; a vida sempre absolutamente solitária da mulher que já não é mais tão jovem assim, a srta. Corações Solitários; o casal que gosta de colocar o colchão na pequena varanda junto da escada de incêndio do seu prédio, e que cuida de um cachorrinho que iça e faz descer até o pátio interno por meio de uma caixinha presa por uma corda numa roldana; o recém-casado que não pode sequer chegar perto da janela para dar uma olhada no pátio que a mulher já o chama de volta.

A srta. Corações Solitários é interpretada por Judith Evelyn (na foto abaixo). O compositor, por Ross Bagdasarian. Miss Torso, a dançarina, por Georgine Darcy (na foto acima). O casal dono do cachorrinho, por Sara Berner e Frank Cady. Os recém-casados, por Rand Harper e Havis Davenport.

Chama especial atenção de Jeff (e, claro, chamará também a do espectador) um sujeito troncudo, grande, já grisalho, sempre com a cara fechada, que mora também no prédio bem do outro lado do pátio, diante do apartamento do nosso herói.

A mulher dele está sempre no quarto, na cama – parece doente, talvez até inválida. Os dois discutem, dá para ver que discutem.

O homem se chama Lars Thornwald, e é interpretado por Raymond Burr. Sua mulher, Emma, é feita por Irene Winston.

Uma noite, bem tarde, esse Lars Thornwald sai de casa carregando uma grande mala. Volta, e daí a pouco sai de novo com a mala. Começa a chover, chega a madrugada, e ele faz duas novas viagens da casa para a rua, sempre carregando a grande mala.

Como diz o título do conto que inspirou o filme, “It had to be murder”. Tinha que ser assassinato.

Vários dos personagens foram criados para o filme, não existiam no conto

O conto, publicado pela primeira vez em 1943, é de autoria de Cornell Woolrich (1903-1968), o autor americano que também usava os pseudônimos de William Irish e George Hopley. Contemporâneo dos grandes escritores de novelas policiais Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Erle Stanley Gardner, Woolrich tinha o dom da prolixidade. Escreveu dezenas e dezenas de novelas e contos. Como bem nota a Wikipedia, nenhum outro autor escreveu tantas histórias que deram origens a filmes: o homem é o absoluto campeão. Estão listados na Wikipedia nada menos que 34 filmes baseados em histórias criadas pela imaginação de Cornell Woolrich.

Para citar só uns poucos:

A Noiva Estava de Preto (1968), de François Truffaut;

A Sereia do Mississipi (1969), de François Truffaut;

Casei-me com um Morto (1950), de Mitchell Leisen;

Martha (1974), de Rainer Werner Fassbinder;

Pecado Original (2001), de Michael Cristofer;

A Dama Fantasma (1944), de Robert Siodmak;

O Homem Leopardo (1943), de Jacques Tourneur;

A Noite Tem Mil Olhos (1948), de John Farrow.

É fenomenal.

Mas, no caso específico de Janela Indiscreta, o conto de Cornell Woolrich é apenas a base inicial da história desenvolvida no filme. Mais ou menos como acontece com Blow-up (1966), a fascinante obra-prima de Michelangelo Antonioni, que acaba tendo pouco a ver com o conto que o inspirou, “As Babas do Diabo”, de Julio Cortázar.

“It had to be murder” tem cerca de 35 páginas, e seus personagens são o homem que observa e o homem que é observado.

Todos os personagens cuja vida Jeff observa, aqueles personagens marcantes citados aí acima, Miss Torso, Miss LonelyHearts, todos eles foram criados para o filme por John Michael Hayes e, segundo depoimento do próprio roteirista, por Alfred Hitchcock.

Mais ainda: no conto não existe Stella, a interessantíssima enfermeira paga pela companhia de seguros que visita Jeff diariamente, faz massagem nele, toma sua temperatura, cuida para que ele não fique doente. Stella é um dos papéis mais fascinantes da longa e profícua carreira de Thelma Ritter (na foto abaixo), essa atriz extraordinária, ao lado do da ajudante da atriz Margo Channing-Bette Davies em A Malvada/All About Eve (1950) e do da divorciada que hospeda em sua casa Rosalyn Taber-Marilyn Monroe em Os Desajustados (1961).

E no conto não existe Lisa Carol Fremont.

Quando Lisa aparece pela primeira vez na tela, o espectador quase morre

Lisa Carol Fremont é a princesa encantada com que todo homem gostaria de sonhar, se pudesse escolher o melhor dos sonhos.

É rica, fina, chique. Não é dito explicitamente, mas é seguramente herdeira, vem de família riquíssima, e mexe de alguma maneira com moda, com haute couture. Jamais repete um figurino, e a cada vez que surge no apartamento de Jeff vem com uma roupa absolutamente fulgurante. Edith Head, a chefe do departamento de figurinos da Paramount Pictures, 8 Oscars, fora outras 18 indicações ao prêmio, deve ter se esbaldado para criar as roupas de Lisa.

É alegre, bem humorada. Está sempre paparicando Jeff, tentando agradá-lo. Leva para ele um garçom de um restaurante estrelado carregando belo prato para que os dois jantem junto da janela indiscreta do apartamento.

A primeira vez que Lisa surge na tela, parece que Hitchcock e seu diretor de fotografia Robert Burks querem matar o pobre espectador de susto – ou de êxtase.

Lisa, claro, é o papel de Grace Kelly, no segundo dos três filmes que faria com o velhinho inglês, do total de 11 que compõem sua filmografia. Tinham acabado de fazer Disque M para Matar, lançado no mesmo ano de Janela Indiscreta, 1954, e fariam logo em seguida Ladrão de Casaca/To Catch a Thief, de 1955. (Foi durante as filmagens de Ladrão de Casaca na Riviera francesa que Grace Kelly conheceu o príncipe Rainier, do Mônaco. Como nas boas histórias de fada, virou princesa. Bom para Rainier, bom para o Mônaco, uma tragédia para o mundo, que perdeu essa beleza extraordinária que, além de beleza extraordinária, era um brilho de atriz.)

Quando Lisa-Grace Kelly surge pela primeira vez, a câmara faz – como em boa parte do filme – as vezes dos olhos de Jeff. Os olhos dele estão fechados – está tirando uma soneca – quando Lisa aproxima seu rosto do rosto dele. E então quando Jeff abre os olhos o espectador vê o rosto de Grace Kelly em super big close-up, aquela beleza estupenda, inigualável, ocupando toda a tela – e o filme foi rodado em VistaVision, a tela grande da Paramount, a versão do estúdio para enfrentar o CinemaScope da 20th Century Fox.

Uau!

A princípio, Lisa não se interessa pela história do possível assassino

Pois dá para acreditar que Jeff meio que esnobava aquela Lisa Carol Fremont toda?

Ela queria casar. E ele não!

Diz para Stella, a enfermeira, que ele e Lisa são diferentes demais – ela é mulher de Manhattan, de circular nos lugares mais ricos e chiques dos Estados Unidos, e ele é um fotógrafo, um aventureiro, um sujeito que gosta de viajar pelo mundo, enfrentando todo tipo de perigo.

Como pode alguém esnobar Lisa-Grace Kelly, meu Deus do céu e também da Terra?

Em outra belíssima sacada do roteirista John Michael Hayes, lá quando estamos chegando à metade do filme, é como se uma mosca picasse Lisa, porque aí ela se revela uma aventureira, uma mulher cheia de curiosidade e com coragem para enfrentar o perigo.

Jeff conta para ela o que já havia observado sobre Lars Thorwald. Os movimentos estranhíssimos de noite e de madrugada, várias saídas carregando uma grande mala e voltando com ela. E a mulher dele, com quem antes discutia sempre, não estava mais à vista.

Jeff já havia até chamado para contar sobre suas suspeitas o grande amigo Tom Doyle (Wendell Corey). Ele e Doyle haviam sido colegas na aviação durante a Guerra (o filme é de 1954, apenas 9 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial). E Doyle era tenente da Polícia.

A princípio, Lisa não demonstra interesse algum pela história.

A sequência – que acontece quando o filme está com pouco mais de 45 minutos – é toda extraordinária. Jeff pega o binóculo para melhor observar as janelas do apartamento de Lars Thorwald. Lisa, em glorioso vestido negro, transparente no alto das costas, colar de brilhantes, se irrita com o namorado: – “Se você pudesse se ver! Olhar pela janela é uma coisa. Mas fazer o que você está fazendo, com binóculo, e opiniões malucas sobre tudo o que vê! É uma doença!”

Há então uma discussão entre os dois. Jeff fala que viu Lars com um serrote, uma grande faca, cordas. Lisa contra-argumenta, vai destruindo os argumentos de Jeff – até que de repente ela pára de falar e olha para a sala do homem, ali a uns 100, 150 metros de onde eles estão. Lars está abrindo um grande baú.

Lisa, olhando fixamente para fora da janela indiscreta, diz, em outro tom de voz, enquanto a câmara de Hitchcock e Robert Burks faz um zoom em direção àquele rosto esculpido por Deus em momento especial: – “Vamos começar de novo. Me conte tudo o que você viu.”

Uma beleza o título escolhido pelos exibidores brasileiros

Janela Indiscreta. Eis aí um belo título, que se encaixa como uma luva na obra. Aparentemente, os distribuidores brasileiros seguiram o belo achado dos seus colegas portugueses e espanhóis. O filme se chamou

em Portugal A Janela Indiscreta e na Espanha La Ventana Indiscreta – com o artigo definido que os brasileiros tiraram fora.

De fato, um belo achado.

O original, Rear Window, não tem esse qualificativo bem apropriado, a indiscrição, a coisa do voyeurismo, da bisbilhotice, da abelhudice, como se usava na época. Significa simplesmente janela posterior, janela de trás, janela da parte de trás. Os distribuidores da França e da Itália seguiram literalmente o original: Fenêtre Sur Cour, La Finestra sul Cortile.

O filme tem semelhanças com Blow-up – e os dois influenciaram De Palma

Lá atrás, citei Blow-up, o primeiro filme de Antonioni fora da Itália, o primeiro falado em outra língua, feito no auge da revolução de costumes dos anos 60 na Swingin’ London. Não foi à toa. Há pontos em comum entre esses dois grandes filmes – e os dois contarem histórias bastante diferentes daquela original dos contos que os inspiraram é apenas um deles.

Nos dois filmes, o protagonista é um fotógrafo.

Nos dois filmes, o fotógrafo acredita ter praticamente presenciado um crime.

Os dois filmes serviram de inspiração para Brian De Palma, um admirador fervoroso de Alfred Hitchcock, mas também admirador do mestre italiano que influenciou gerações de cineastas.

Blow Out, no Brasil Um Tiro na Noite (1981), revela sua semelhança com o filme de Antonioni já no título. Em Blow-up, um fotógrafo, pelo que vê nas fotos que tirou, acredita ter presenciado um crime; em Blow Out, um sonoplasta, pelo que ouve dos ruídos que gravou, acredita ter presenciado um crime.

Em Dublê de Corpo/Body Double (1984), um sujeito oferece ao protagonista da história a oportunidade de ficar alguns dias em seu maravilhoso apartamento situado numa bela colina de Los Angeles, de onde ele poderá, de sua janela indiscreta, com um poderoso binóculo, observar uma vizinha que executa toda noite as danças mais sensuais que pode haver. Janela indiscreta, binóculo, voyeurismo em primeiríssimo grau – como na obra-prima do mestre Hitch.

Foi o primeiro dos quatro filmes de Hitch com o roteirista John Michael Hayes

Foi o quarto filme de Hitch com trilha sonora de Franz Waxman (1906-1967), 2 Oscars, fora outras 8 indicações ao prêmio. O grande compositor já havia feito as trilhas de Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940), Suspeita (1941) e Agonia de Amor/The Paradine Case (1947).

Quarta das colaborações entre Waxman e Hitchcock – e também a última. Em 1955, um ano depois do lançamento de Janela Indiscreta, Hitchcock iniciaria sua longa e proveitosa associação com o compositor Bernard Herrmann, que iria durar até Marnie (1964).

Foi a primeira vez que John Michael Hayes escreveu o roteiro de um filme de Hitchcock. Hayes (1919-2008) já tinha uma sólida carreira como escritor, inclusive de novelas para o rádio, mas estava começando como roteirista de cinema quando foi procurado por um agente de Hitch convidando-o para um jantar com o diretor. Adiantaram para ele que o tema do encontro seria a possibilidade de adaptar para o cinema o conto “It had to be murder”. Num pequeno documentário de uns 12 minutos, feito pelo especialista Laurent Bouzereau, Hayes conta a história de uma forma deliciosa.

Hayes fez a lição de casa: leu diversas vezes o conto, praticamente o decorou, antes do encontro, marcado para uma sexta-feira.

Ao se sentarem à mesa de um restaurante de Los Angeles, Hitch perguntou se ele gostaria de beber um martini, Hayes disse que sim, e o inglês gorduchinho comentou “que bom: gosto muito de gente que gosta de beber”.

Serviram muita bebida para os dois. Hitch perguntou se ele conhecia seus filmes, se gostava de algum em especial. Hayes disse que conhecia bastante os filmes dele, desde os da fase inglesa, mas acrescentou que já tinha visto várias vezes A Sombra de uma Dúvida (1943) – e falou longamente do filme. Até criticou um ou outro ponto.

Hitchcock não tocou no assunto “It had to be murder”.

Ao chegar de volta em casa, Hayes comentou com a mulher que o jantar tinha sido excelente, comida e bebida maravilhosas – mas trabalhar para Hitchcock, isso não iria rolar, não.

Na segunda-feira, ainda estava meio de ressaca quando um agente do diretor ligou dizendo que Hitch havia gostado demais dele, e queria encomendar o roteiro.

Hayes teve então um encontro Hitchcock nos estúdios da Warner onde ele estava filmando Disque M para Matar. Num intervalo da filmagem de uma cena com Grace Kelly, Hitch perguntou se Hayes a conhecia, sabia dela. E pediu que ele a conhecesse: – “Ela será a garota do próximo filme”, informou.

Naturalmente, Hayes obedeceu. Teve algumas conversas com a atriz, antes de escrever uma primeira versão do roteiro já com Lisa Carol Fremont.

Segundo conta o roteirista, Hitchcock o deixava trabalhar em paz. Quando Hayes aparecia com uma nova versão do roteiro, o diretor lia e  fazia sugestões. Haynes tinha então tempo e liberdade para reescrever, acrescentando o que havia sido sugerido.

Um detalhe fascinante: não foi apenas na própria Grace Kelly que Haynes se inspirou para criar Lisa. A mulher dele havia sido modelo, conhecia o mundo da moda. O autor usou expressões da moda para botar na boca de Lisa.

É óbvio que Hitchcock ficou satisfeito com o trabalho do escritor. O roteiro é uma maravilha, uma perfeição.

Fariam juntos outros três filmes: Ladrão de Casaca, O Terceiro Tiro, O Homem Que Sabia Demais.

Este foi um dos chamados “filmes perdidos de Hitchcock”

Janela Indiscreta foi um dos cinco filmes do realizador que, por questões de disputas na Justiça, ficaram inteiramente fora de circulação durante mais de uma década, e passaram a ser chamados de “os filmes perdidos de Hitchcock”. Os outros são Pacto Sinistro, O Terceiro Tiro, O Homem Que Sabia Demais e Um Corpo Que Cai.

Todos esses cinco, mais diversos filmes do diretor realizados nos anos 50, 60 e 70, seriam posteriormente lançados em DVD pela Universal, que acabou comprando seus direitos autorais.

Como outros dos filmes dessas três décadas, Janela Indiscreta passou por um extenuante, rigoroso processo de restauração a cargo dos especialistas Robert A. Harris e James C. Katz. Felizmente, são essas versões restauradas que estão nos DVDs.

Como é sabido, Alfred Hitchcock, um dos maiores diretores da história do cinema, jamais recebeu um Oscar de melhor filme ou de melhor diretor. Apenas cinco de seus filmes tiveram indicação para o Oscar na categoria de melhor diretor, e este aqui é um deles.

(Os demais são Rebecca, Lifeboat, Spellbound e Psicose.)

Janela Indiscreta teve também as indicações para os Oscars de roteiro, fotografia e som; não levou nenhum.

Leonard Maltin deu 4 estrelas em 4: “Um dos thrillers mais estilosos de Hitchcock tem o fotógrafo Stewart confinado em uma cadeira de rodas em seu apartamento, usando binóculos para espiar os vizinhos do pátio, e descobrindo um possível assassinato. História inventiva de Cornell Woolrich adaptada por John Michael Hayes. Stewart, a namorada da sociedade Kelly e a enfermeira pé no chão Ritter fazem um maravilhoso trio”.

“A apoteose de todas as fixações psicossexuais ardentes e mal reprimidas de Hitchcock”

O CineBooks’ Motion Picture Guide deu a cotação máxima de 5 estrelas. No longo texto sobre o filme, o guia diz:

“De todos os filmes de Alfred Hitchcock, Rear Window é um exercício de grande voyeurismo; enquanto as olhadelas dissimuladas de Anthony Perkins em Psycho são perversas, Stewart é inocente. Ele não espiona as pessoas à procura de auto-estimulação; é seu trabalho, assim como é sua total paixão por estudar e fotografar as pessoas. James Stewart é perfeito para o papel desse fotógrafo, expressando uma visão experiente do mundo, misturada com o aborrecimento por estar imobilizado por causa da perna quebrada. Grace Kelly está radiante e contida, procurando formas de agradar o objeto de seu afeto e dar conforto a ele. Ela é também sábia, esperta, algo que Hitchcock permitiu a poucas de suas heroínas.”

O autor da crítica do filme para o CineBooks notou detalhes que eu, confesso, não notei, nem mesmo nesta revisão agora. Ele registra que o compositor interpretado por Ross Bagdasarian consegue compor um tema com sucesso, depois fracassa, e depois consegue redescobrir uma bela melodia. E que a jovem bailarina interpretada por Georgine Darcy recebe em seu apartamento admiradores muito bem vestidos, e depois outro grupo que veste como simples trabalhadores – e parece preferir a companhia destes últimos.

“O tema do voyeurism está no centro deste filme”, diz o livro 501 Must-See Movies. “Nós, os espectadores, observamos, de forma impotente, enquanto Jeff observa o mundo através de sua janela. Hitchcock coloca a audiência no lugar de Jeff através de seu trabalho de câmara; toda a ação se passa ou dentro do apartamento de Jeff ou é vista por ele de sua cadeira de rodas através da janela. Tudo o que Jeff vê através de suas lentes a audiência também vê, e isso dispensa muito diálogo para contar a história; a trama se desenrola visualmente.”

O livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer dedica duas páginas ao filme, algo reservado só para alguns poucos, e começa com brilho seu texto:

“A apoteose de todas as fixações psicossexuais ardentes e mal reprimidas de Hitchcock, Janela Indiscreta é também provavelmente (com a possível exceção de Um Corpo Que Cai) a mais bem sucedida mistura de entretenimento, intriga e psicologia da extraordinária carreira do diretor. Um estudo fascinante sobre a obsessão e o voyeurismo, Janela Indiscreta combina um elenco perfeito, um roteiro perfeito e principalmente um cenário perfeito para um filme – que é ainda melhor do que a soma de suas partes.”

Perfeito, perfeito, perfeito.

É isso aí.

Mesmo antes de começar esta anotação, naturalmente antes de ler essas outras opiniões aí acima, pensei em terminar dizendo que, na minha opinião, de todos os grandes filmes desse velhinho inglês doido e brilhante, os dois melhores são Um Corpo Que Cai e Janela Indiscreta. O livro 1001 Filmes falou a mesma coisa antes que eu registrasse minha opinião. Paciência.

Essa é a verdade dos fatos. Janela Indiscreta é um filme genial.

Anotação em julho de 2017

Janela Indiscreta/Rear Window

De Alfred Hitchcock, EUA, 1954

Com James Stewart (L.B. Jefferies, o Jeff), Grace Kelly (Lisa Carol Fremont)

e Thelma Ritter (Stella), Wendell Corey (tenente Thomas J. Doyle), Raymond Burr (Lars Thorwald), Judith Evelyn (Senhorita Corações Solitários), Ross Bagdasarian (o compositor), Georgine Darcy (Miss Torso, a bailarina), Sara Berner (a mulher na escada de incêndio), Frank Cady (o homem na escada de incêndio), Jesslyn Fax (Miss Hearing Aid), Rand Harper (o recém casado), Havis Davenport (a recém casada), Irene Winston (Emma Thorwald)

e, em participação especial, Gig Young (a voz de Gunnison, o editor da revista)

Roteiro John Michael Hayes

Baseado no conto “It had to be murder”, de Cornell Woolrich

Fotografia Robert Burks

Música Franz Waxman

Montagem George Tomasini

Direção de arte J. McMillan Johnson e Hal Pereira

Figurinos Edith Head

Produção Paramount Pictures. DVD Universal.

Cor, 112 min (1h52)

R, ****

Título na França: Fenêtre Sur Cour. Na Itália: La finestra sul cortile. Em Portugal: A Janela Indiscreta. Na Espanha: La Ventana Indiscreta.

 

17 Comentários para “Janela Indiscreta / Rear Window”

  1. Li com lentidão seu artigo sobre o meu filme favorito de Hitchcock. Até uma das minhas cenas prediletas (Lisa para Jeff: “Diga-me o que você viu”) você destacou!
    Perfeito, perfeito, perfeito. O filme também revela humor em alguns dos seus diálogos, um humor fino, assim como são finos os vestidos de Grace Kelly, cada um mais lindo do que o outro.

  2. Eu sempre me perguntei se o Woolrich teria lido “A janela dos Rouet”, do Simenon…

    Acho esse filme maravilhoso, estupendo, o elenco fenomenal, trama intrigante, mas tenho uma enorme dificuldade em assistí-lo por conta de um detalhe MUITO importante para mim: (lá vem spoiler…) o cachorro.

  3. Muito bom comentário do Sérgio, acho que se empenhou em escrever sobre este filme. Para mim é o meu Hitchcock favorito a par de Vertigo.
    Não percebo a referência a Blow-up que, quanto a mim, está nos antípodas de Rear Window.
    Enfim, não podemos estar sempre de acordo.

  4. O grande filme de Hitchcock, muito superior a “Um Corpo que Cai” – que, sinceramente, sequer consegui gostar.

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