Nota:
Amor Eletrônico, no original Desk Set, de 1957, o oitavo dos nove filmes e a quinta das cinco comédias românticas estreladas pelo casal Spencer Tracy-Katharine Hepburn, é uma absoluta delícia. Mas é mais ainda do que isso: hoje, é uma maravilhosa peça de museu, um case sociológico, um ensaio antropológico, um exemplo de como era a cabeça das pessoas diante da chegada da informática ao local de trabalho, na segunda metade dos anos 50.
A palavra informática não é pronunciada, e nem sei se já existia. Não se fala também a palavra computador. Usava-se, então, a expressão – e ela é dita diversas vezes ao longo dos maravilhosos 103 minutos do filme – “cérebro eletrônico”. Electronic brain!
Os créditos iniciais aparecem como se as palavras estivessem sendo impressas numa então moderníssima impressora matricial, naquelas folhas de formulário contínuo, com furinhos à esquerda e à direita.
Impressora matricial, formulário contínuo. A meninada que tem 15 anos hoje jamais viu essas coisas pré-históricas, surgidas naquele estranhíssimo mundo em que não havia telefone celular nem Google.
E, no meio dos créditos, é dito: “Agradecemos muito a cooperação e assistência da International Business Machines Corporation”.
Em 1957, a IBM era o grande nome naquele admirável mundo novo que surgia.
O personagem de Spencer Tracy criou a Emmarac, uma parente mais velha do HAL-9000
E, naquele admirável mundo novo, as pessoas morriam de medo de que os cérebros eletrônicos as substituíssem e tirassem seus empregos.
Essa é a base da trama: o medo das pessoas de perder o emprego com o advento das máquinas.
Richard Summer (o papel de Spencer Tracy) fez doutorado em ciências no MIT, o já à época respeitadíssimo Massachusetts Institute of Technology. Era, segundo diz Bunny Watson (a personagem de Kate Kepburn), “um dos principais especialistas em cérebro eletrônico deste país e inventor e patenteador de um cérebro eletrônico chamado Emmarac, uma calculadora e pesquisadora aritmética eletromagnética”.
Emmarac: Electromagnetic Memory and Research Arithmethical Calculator. Se o eventual leitor quiser pesquisar no Google, há diversos textos falando sobre a Emmarac inventada para o filme. É uma parente mais idosa do HAL-9000, o gigantesco mainframe que dirige a nave especial no 2001 de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke.
Bunny Watson era chefe do Departamento de Pesquisa de um poderoso conglomerado de meios de comunicação chamado Federal Broadcastig Corporation. (Em 1957, a expressão “mídia” ainda não era usada no dia-a-dia dos mortais comuns.) O Departamento ocupava um salão bastante amplo, com um mezanino, e onde cada centímetro tinha livros, enciclopédias, coleções de jornais e revistas. Sob a chefia de Bunny trabalhavam três mulheres, todas simpáticas e competentes: Peg (Joan Blondell), Sylvia (Dina Merrill) e Ruthie (Sue Randall).
O trabalho das quatro boas profissionais era responder a perguntas dos profissionais do conglomerado e também do público externo. Qualquer tipo de pergunta – desde, por exemplo, o nome das renas do trenó de Papai Noel até o peso do planeta Terra, passando por estatísticas sobre esportes e qualquer outro tipo de atividade humana e animal.
As quatro mulheres do Departamento de Pesquisa acham que serão demitidas
Bem no início da narrativa, Richard Summer chega à sede da Federal Broacasting para falar com Mr. Azae, o CEO, o chefão, o patrão. Gênio absoluto na sua área de atuação, conforme veremos ao longo da narrativa, Summer é avoado, pouco chegado às coisas comuns, práticas, como costuma ser o estereótipo dos grandes inventores e cientistas na literatura e no cinema. A secretária, Cathy (Merry Anders), diz que com toda certeza Mr. Azae gostaria muito de falar com ele, mas o problema é que sua visita estava agendada para o dia seguinte. Tudo bem, diz Summer, então vou aproveitar e visitar o Departamento de Pesquisa – onde ele fica?
Assim que ele sai de sua vista, Cathy liga para o Departamento de Pesquisa para avisar as colegas sobre a iminente chegada daquele sujeito que parece meio doido ou então muito importante, talvez as duas coisas. Quem atende ao telefone é Peg – e então o diretor Walter Lang divide a tela ao meio para vermos tanto a secretária do chefão quanto Peg. (O cinema americano daquela época adorava usar o tal do split-screen.)
Vemos então uma sequência que nos apresenta Peg, Sylvia e Ruthie no seu dia-a-dia, atendendo a ligações com pedidos de informações e fazendo ligações para entidades à procura de informações.
O cientista avoado entra no Departamento e não cumprimenta nenhuma das três funcionárias. Anda daqui pra ali, observa, observa, senta-se a uma cadeira, saca um bloquinho, faz anotações. Peg resolve tomar a iniciativa e diz bom dia. Summer olha rapidamente para ela, sorri, devolve o bom dia – e mais nada. Peg faz nova tentativa: “Posso ajudá-lo?” – e Summer sorri e responde que não. Mas cai uma ficha na cabeça avoada e ele diz: “Lugar interessante este aqui. Você se incomoda se eu der uma olhada?” E, diante da resposta educada de Peg, continua zanzando pelo salão, munido de uma trema, medindo os espaços.
A chefe do lugar, Bunny Watson, chega atrasada, contando para as garotas que tinha ido fazer compras. As moças, assustadas, tentam avisá-la sobre a presença do intruso esquisitíssimo.
Para resumir: Bunny e suas funcionárias passarão a ter absoluta certeza de que Summer vai botar um cérebro eletrônico ali e elas todas vão perder seus empregos.
Em pleno inverno, o cientista interroga a pesquisadora no terraço aberto
Uma das sequências mais deliciosas deste filme delicioso – e que é talvez uma das mais fantásticas de todas as que Spencer Tracy e Kate Hepburn dividiram ao longo dos nove filmes que fizeram juntos, entre 1942 e 1967 – acontece quando estamos com uma meia hora de filme. Em geral considero que falar do que acontece após os 20 primeiros minutos é spoiler, mas esta aqui é uma comédia romântica, e portanto previsível, e não estraga o prazer de ninguém falar dessa sequência.
Summer convida Bunny para almoçar, para que possam conversar sobre o trabalho dela no Departamento de Pesquisa. É claro que ele se atrasa bastante. Começam a conversar no hall, à espera do elevador – ele pergunta a ela sobre sua formação profissional. O elevador pára, o ascensorista diz que está descendo, Summer o dispensa, para total surpresa de Bunny. Quando o elevador que está subindo pára, aí então entram. O almoço – dois sanduíches que ele havia previamente comprado, mais uma jarra de café – será no terraço aberto do prédio, e era inverno. Cientista maluco não liga para coisas como frio.
Todos os diálogos do filme são inteligentes, bem humorados, gostosos, mas os da sequência do almoço – ou piquenique, conforme diz Bunny, muito apropriadamente – são especialmente memoráveis. Summer aplica em Bunny um questionário louco, esdrúxulo – e Bunny, tremendo de frio e tentando engolir o sanduíche de carne dura, responde a tudo com segurança e rapidez.
Ao final do questionário, ela diz para Summer o que conseguiu pesquisar sobre ele durante meia hora. É quando ela diz aquela frase citada lá acima, sobre a formação de Summer e a criação do cérebro eletrônico chamado Emmarac.
Summer pergunta se Bunny já viu uma máquina daquelas funcionando, e ela conta que sim, tinha visto, na IBM, uma apresentação da máquina.
Summer: – “Viu como ela traduz do russo para o chinês?”
Bunny: – “Vi tudo o que ela faz. É assustador. Me deu a sensação de que talvez um dia as pessoas ficarão um tanto fora de moda.”
A personagem de Kate Hepburn foi inspirada na bibliotecária da rede de TV CBS
Aqui vai a lista dos nove filmes que Kate Hepburn e Spencer Tracy fizeram juntos:
O Fogo Sagrado/Keeper of the Flame, de George Cukor, 1942;
A Mulher do Dia/Woman of the Year, de George Stevens, 1942;
Sem Amor/Without Love, de Harold S. Bucquet, 1945;
Mar Verde/Sea of Grass, de Elia Kazan, 1947;
Sua Esposa e o Mundo/State of the Union, de Frank Capra, 1948;
A Costela de Adão/Adam’s Rib, de George Cukor, 1949;
A Mulher Absoluta/Pat and Mike, de George Cukor, 1952;
Este Amor Eletrônico/Desk Set, de Walter Lang, 1956;
Adivinhe Quem Vem Para Jantar, de Stanley Kramer, 1967.
Vejo no IMDb uma pequena e interessante curiosidade: Amor Eletrônico foi o primeiro filme em cores feito pelo casal. Todos os sete anteriores foram em preto-e-branco.
Onze anos se passariam antes que o casal fizesse seu novo trabalho em conjunto, o drama Adivinhe Quem Vem Para Jantar, sobre o racismo mesmo em um ambiente liberal e intelectualizado na Califórnia. Na época das filmagens, Spencer Tracy já estava bem doente; morreria no mesmo ano de lançamento do filme, 1967, aos 67 anos de idade.
O roteiro de Desk Set – assinado pelo casal Phoebe e Henry Ephron, este também o produtor do filme – se baseia em uma peça de teatro homônima de autoria de William Marchant. A peça estreou em Nova York em outubro de 1955 – dois anos portanto antes do lançamento do filme – e teve 296 apresentações. Nenhum dos principais atores da peça reprisou seu papel no filme.
Consta que o autor William Marchant criou o personagem de Bunny Watson inspirado por Agnes E. Law, a bibliotecária que criou o departamento de pesquisa da rede de TV CBS.
O filme foi a estréia no cinema de Dina Merrill, uma figura fascinante
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “Peça da Broadway vira um veículo para Hepburn e Tracy, uma garantia de entretenimento de primeira. Ele é um expert em eficiência automatizada e ela a pesquisadora de uma rede de TV; eles se chocam, discutem e se apaixonam. Grande diversão. Estréia de Merrill.”
É bom que Maltin mencione esse detalhe. Dina Merrill, que faz Sylvia Blair, uma das pesquisadoras, é, como diria Richard Summer referindo-se a Bunny Watson, um tipo muitíssimo raro de peixe tropical. Já nasceu – em Nova York, em 1925 – milionária, filho de um banqueiro com uma herdeira de indústria da área de alimentos. Estava portanto com 32 quando resolveu se aventurar no cinema. Linda, elegantérrima, deu certo: sua filmografia inclui mais de cem títulos, que incluem Disque Butterfield 8, Anáguas a Bordo e dois filmes de Robert Altman, O Jogador e Cerimônia de Casamento. Sempre dividiu a carreira com atividades filantrópicas, bem antes de Bill Gates nascer.
(Dina Merrill é a terceira da esquerda para a direita na foto abaixo. A primeira é Sue Randall e a do meio, Joan Blondell.)
O livro The Films of 20th Fox diz: “Com Tracy e Hepburn como suas estrelas, Desk Set é uma comédia elegante e um excelente veículo para seus lendários intérpretes.
Já a grande dama da crítica americana, Pauline Kael, arrasa com o filme. “O oitavo dos filmes com Spencer Tracy e Katharine Hepburn, é um dos mais ordinários. Ele é um mago da engenharia. Ela chefia o departamento de pesquisa de uma rede de TV e, compreendendo mal as intenções dele, pensa que ele deseja tirar o grupo do emprego ao instalar um cérebro eletrônico chamado Emmy. Gig Young e Joan Blondell ajudam, mas é uma comedinha que não é espirituosa. Tracy parece volumoso e Hepburn parece magricela e sombria; ambos parecem velhos demais para seus papéis.”
Dame Kael escreve muitíssimo bem, constrói belas frases, mas em geral é uma chata de galocha. Das ordinárias.
Amor Eletrônico é uma maravilha.
Anotação em agosto de 2014
Amor Eletrônico/Desk Set
De Walter Lang, EUA, 1957
Com Spencer Tracy (Richard Sumner), Katharine Hepburn (Bunny Watson),
e Gig Young (Mike Cutler), Joan Blondell (Peg Costello), Dina Merrill (Sylvia Blair), Sue Randall (Ruthie Saylor), Neva Patterson (Miss Warriner), Harry Ellerbe (Smithers), Nicholas Joy (Mr. Azae), Diane Jergens (Alice), Merry Anders (Cathy), Ida Moore (a velhinha)
Roteiro Phoebe Ephron e Henry Ephron
Baseado na peça de William Marchant
Fotografia Leon Shamroy
Música Cyril J. Mockridge
Montagem Robert Simpson
Produção 20th Century Fox. DVD Fox.
Cor, 103 min
R, ***
Título em Portugal: A Mulher Que Sabe Tudo. Na França: Une femme de tête.
Comentário meio nada a ver sobre uma coisa que me ocorreu esses dias. Quando li aqui que Dina Merrill nasceu milionária, “filha de um banqueiro com uma herdeira de indústria da área de alimentos” não sei por que cargas d’água me veio o pensamento de “O que será que ela fez com a grana? Ajudou alguém?”. E no mesmo parágrafo você diz que ela fazia atividades filantrópicas. Geez!
A história do casal “jamais casado”, como você já disse, Tracy-Hepburn é intrigante. Como a mulher dele aguentou todos aqueles anos, e como Katharine aceitou a situação? Por que ele não pediu o divórcio? Nem ao velório dele ela foi, em respeito à família.
Okay, tenho que parar de comentar amenidades em filmes que ainda não vi, e comentar nos que já vi.
Exatamente por essas e por outras é que acho o casal Tracy-Hepburn um dos mais fascinantes da História, Jussara!
Realmente, é um dos mais fascinantes, deve ter sido um encontro de almas, mas coitada da mulher “oficial” dele, digamos assim, pois nem dá pra chamar Katharine Hepburn de amante. Só que meu lado super racional me faz levantar perguntas.
Oi, Sérgio, tudo bem?
Adoro esse filme, cujo DVD, claro, faz parte da minha coleção de clássicos, os quais assisti pela primeira vez em meados dos anos 1960.
Lancei-lhe um desafio, mas você nunca respondeu meu último e-mail.
Beijos!
Gente, Hepburn era homosexual, foi casada anos com uma mulher e nunca teve nada com Tracy além de amizade. Deixavam correr o boato que eram amantes pra facilitar para a atriz, devido ao forte preconceito da época