Os Desajustados / The Misfits

3.5 out of 5.0 stars

Rever Os Desajustados/The Misfits, de John Huston, hoje, mais de meio século depois de seu lançamento em 1961, é uma experiência que tem impacto duplo. Um é pelo filme em si, que permanece forte, vigoroso, perturbador, inquietante. Outro é pelas circunstâncias em que ele foi feito, o contexto, as histórias todas que cercam as filmagens.

Foi o último filme de Clark Gable, o último filme de Marilyn Monroe, um dos últimos de Montgomery Clift. Três astros gigantescos, dos maiores que havia em Hollywood e no cinema do mundo inteiro.

Monty e Marilyn dependiam, para sobreviver a cada dia, de drogas – pílulas para dormir, pílulas para acordar, mais álcool, muito álcool, e sabe-se lá mais quais drogas.

E eles eram todos muito jovens. Clark Gable, o mais velho de todos, um dos maiores astros do cinema da sua época, o Rhett Buttler de … E o Vento Levou (1939), estava com apenas 59 anos. Montgomery Clift, um dos rostos mais belos e mais torturados que já passaram diante de uma câmara, ator extraordinário, ser humano conflituado, confuso, infeliz, a autodestruição em pessoa, tinha 40.

Norma Jean, o maior símbolo sexual do século, da História do cinema, um dos rostos mais belos e mais torturados que já passaram diante de uma câmara, atriz extraordinária, embora muita gente não tenha percebido, ser humano conflituado, confuso, infeliz, a autodestruição em pessoa, tinha apenas 34 durante as filmagens, em 1960.

Todos eles pareciam ter muito mais anos de vida do que na verdade tinham.

Consta que, no último dia de filmagem, Clark Gable teria dito, o olhar dirigido a Marilyn: – “Cristo, que maravilha que acabamos este filme. Ela quase me provocou um ataque cardíaco”.

No dia seguinte, teve um trombose coronária severa. Dez dias depois, morreria de um ataque cardíaco. Quando The Misfits fez sua estréia mundial, em 1º de fevereiro de 1961, Clark Gable estava sete polegadas abaixo da terra.

A história do filme foi escrita para Marilyn brilhar. Quem escreveu foi o marido dela, o terceiro, o de então, Arthur Miller, um dos mais respeitados dramaturgos dos Estados Unidos.

Durante as filmagens, o casamento do intelectual judeu com a atriz que havia feito diversos papéis de loura boba, ingênua, quase burra, estava se desfazendo feito uma jarra de vidro que cai no chão duro.

Depois de Os Desajustados, Marilyn começaria a rodar, sob a direção de George Cukor, um filme chamado Something’s Got to Give. Em 5 de agosto de 1962, foi encontrada morta em sua casa, devido a uma overdose de barbitúricos. Tinha 36 anos.

As filmagens devem ter sido infernais – mas o filme não mostra isso

As filmagens – com exteriores num deserto do Estado de Nevada, sob um calor escaldante – devem ter sido de fato infernais, absolutamente infernais.

O espectador, no entanto, não percebe isso. Não há nada na tela que demonstre o nível de tensão que deve ter dominado toda a equipe.

É um belo filme.

A ação começa em Reno, a cidade de Nevada que é a grande capital americana do divórcio, e atrai gente de todo o país porque lá se divorciar é mais fácil que tomar um gole de água.

Roslyn – a personagem que Arthur Miller criou para sua mulher – viajou do Leste, onde mora, para a distante Reno para conseguir seu divórcio. Hospeda-se na casa-pensão para mulheres em processo de divórcio de Isabelle, uma senhora de meia-idade que tinha ela mesma ido a Reno para se divorciar, 19 anos antes, e acabara ficando por lá mesmo. Então aluga um quarto para mulheres que chegam de fora; como é simpática, dada, conversadeira, bem humorada, acaba ficando amiga das inquilinas, e servindo como testemunha no momento do divórcio.

Roslyn seria a 77ª mulher para quem ela serviria como testemunha de divórcio.

Isabelle é interpretada por Thelma Ritter, essa fantástica, talentosíssima atriz que fez dezenas e dezenas de filmes como personagens secundárias, tipo secretária ou empregada doméstica.

Na primeira sequência do filme – após belos créditos iniciais que usa maravilhosamente o grafismo em preto-e-branco, com formas semelhantes às de quebra-cabeça que não se encaixam, don’t fit, são misfits, não se ajustam, são desajustadas –, Roslyn está tentando decorar o texto dado pelo advogado para ela recitar para o juiz. É um texto típico de advogado, rebuscado – e claramente pouco natural, falso. “Ele persistentemente e cruelmente ignorou os meus desejos e direitos, e recorreu frequentemente à violência física contra mim.”

Roslyn tem uma tremenda dificuldade de decorar essas respostas às perguntas que o advogado faria diante do juiz.

Seria uma inside joke, uma piada interna, se tivesse graça – mas não tinha graça nenhuma. Na verdade, era uma pequena tragédia, para Marilyn e para todas as pessoas envolvidas em seus filmes, havia já alguns anos: ela tinha uma tremenda dificuldade para memorizar suas falas.

Arthur Miller criou a personagem à imagem e semelhança de sua mulher

Roslyn é bastante parecida com a própria atriz. Nada mais natural, já que foi criada à sua imagem e semelhança. É uma mulher estrondosamente bela, daquelas que chamam a atenção de todo mundo quando chega a um lugar. Gay (o personagem de Clark Gable), o vaqueiro aventureiro, charmoso, conquistador, embora já com quilometragem altíssima, dirá a ela:

– “Você é mesmo uma mulher linda. É quase assim uma honra sentar perto de você. É isso que eu sinto, Roslyn.”

Estrondosamente bela – mas infeliz. Carente – como se tivesse tido mil homens querendo comê-la, mas sem dar de fato carinho a ela. Sem dar importância a ela. Sobre seu pai, diz que não ficou muito tempo. Sobre sua mãe, diz que ela simplesmente nunca estava lá. Do marido, Raymond Traber (Kevin McCarthy, que aparece em uma única sequência, nas escadarias do tribunal em que ela vai fazer o divórcio), também diz que ele nunca estava lá.

Carente. Frágil. Insegura. Infeliz.

Gay dirá a ela: – “O que faz você ficar tão triste? Você é a moça mais triste que já vi na vida”.

E Roslyn responde: – “Você é o primeiro homem que me diz isso. Em geral dizem que eu sou muito alegre.”

– “Isso é porque você faz o homem ficar feliz.”

Assim que diz isso, Gay tenta beijá-la, mas ela vacila: – “Não sinto assim por você, Gay.”

Ele, bem ao contrário dela, é um sujeito seguríssimo de si mesmo, cheio de autoconfiança: – “Não fique desanimada, garota. Você poderá ficar a fim”.

E ela fica, sim, a fim dele. Basicamente porque ela a trata bem, com carinho. Apesar da beleza estrondosa, Roslyn não estava acostumada a ser bem tratada, com carinho, pelos homens.

Arthur Miller conhecia bem a mulher com quem havia se casado quatro anos antes das filmagens de Os Desajustados, em junho de 1956. Retratou-a com perfeição nessa Roslyn, tão bela, tão triste, tão carente.

Aliás, consta que Miller escreveu o conto que depois viraria o roteiro de Os Desajustados justamente quando estava em Reno, aguardando o juiz que daria a ele o divórcio de sua ex-mulher, Mary Grace Slattery, para que ele pudesse se casar com Marilyn. O divórcio dele saiu no dia 11 de junho. O casamento com Marilyn foi no dia 29.

Miller e Marilyn, por sua vez, se divorciariam no dia 20 de janeiro de 1961, exatos 11 dias antes da estréia de Os Desajustados.

Já Marilyn ficou um tempinho solteira. Havia se divorciado do segundo marido, Joe diMaggio, o Pelé do beisebol, em 31 de outubro de 1955. Até o casamento com Miller passaram-se, portanto, oito meses.

Cinco personagens – cada um desajustado à sua própria maneira

Arthur Miller era um dramaturgo de mão cheia. Se tivesse reescrito seu conto original na forma de uma peça de teatro, e não de roteiro de filme, seriam necessários apenas cinco atores. São apenas cinco os personagens que importam – o resto é figuração. Roslyn, Isabelle, o vaqueiro Gay, o piloto Guido, e o ás dos rodeios Perce.

Respectivamente Marilyn Monroe, Thelma Ritter, Clark Gable, Eli Wallach e Montgomery Clift.

Cinco personagens, apenas. Cada um misfit, desajustado, à sua maneira.

Seria dificílimo, no entanto, encenar num palco da Broadway ou de qualquer outro lugar do mundo as cenas de rodeio e, em especial, as sequências que ocupam os 40 minutos finais do filme, a caçada e a perseguição aos mustangues, os cavalos selvagens, no deserto de Montana – aquela paisagem imensa, a perder de vista, semelhante às dos westerns de John Ford e Howard Hawks.

Esse aí é o terreno apropriado para John Huston, o cineasta da aventura, da ação em espaços imensos.

No momento em que a ação começa, Guido está trabalhando como mecânico em uma grande garagem de Reno. Ele é um dos maiores amigos de Gay, o vaqueiro, e os dois costumam caçar mustangues nas pradarias infinitas daquele Oeste americano que não era ainda, naquele início dos anos 60, muito diferentes do que eram um século antes, em meados do século XIX, a época da conquista do Oeste, a época dos westerns.

Mas as caçadas aos mustangues são muitíssimo diferentes daquelas dos tempos do Far West. Guido pilota seu pequenino avião para localizar os grupos de cavalos; Gay e um outro parceiro qualquer vão de caminhão  para a região onde os animais selvagens foram avistados.

Guido tinha avistado um grupo recentemente, numa viagem que fizera até o lugar, no meio do deserto, em que havia começado a construir sua casa. Conta isso para Gay, e os dois começam a planejar uma caçada.

Por uma dessas coincidências de que são feitas as histórias reais e as

histórias criadas nas cabeças dos escritores, Guido fica conhecendo Roslyn e Isabelle na manhã em que as duas vão ao tribunal para o divórcio da primeira – a manhã em que se inicia a ação.

Quando Marilyn Monroe sorri, o Universo fica belo, tudo faz sentido

Por mais uma dessas coincidências da vida, dos romances, dos filmes, logo que obtém o divórcio, Roslyn vai com Isabelle para um bar, comemorar, tomar uma – o mesmo bar em que Guido e Gay estão tomando umas, combinando para breve uma caçada aos mustangues que o piloto tinha avistado junto de uma determinada montanha.

Reconhecem-se, Guido apresenta Gay, e logo estão sentados à mesa os quatro, com o grande cachorro de Gay, Tom Dooley, ali por perto.

Arthur Miller escreveu o seguinte diálogo para esta cena do bar:

Guido: – “Já esteve fora de Reno, Ms. Taber?” Mal haviam se conhecido, e então ele ainda a chama de sra. Taber, embora ela tivesse acabado de se divorciar do sr. Taber.

Roslyn: – “Uma vez fui até o final da cidade; não parece que haja muita coisa lá.”

Gay: – “Tudo está lá!”

Roslyn: – “Tudo o quê?”

Gay: – “O campo!”

Ele diz “the country”. O campo, a terra toda, o país.

Gay pede mais uma rodada para todos.

Guido conta maravilhas sobre sua casa no meio do campo, do nada, da terra imensa.

E que tal se fossem lá conhecer?

Roslyn abre um sorriso e diz que topa.

Quando Marilyn Monroe sorri, o Universo fica belo, tudo faz sentido, a humanidade todinha passa a ser composta por gente do bem.

Quando o filme estava com uns 15, 20 minutos, apertei a tecla de pausa para comentar com Mary que aquela mulher é tão espantosamente bela que fica até difícil acompanhar a trama, a história, os diálogos.

A personagem de Marilyn é extremamente sensível, não pode ver ninguém sofrer

Na história, acontece que, como Gay havia previsto, Roslyn fica a fim dele – para profunda tristeza, claro, de Guido, que afinal tinha visto ao monumento primeiro.

Depois acontece que, a caminho de um rodeio, os quatro encontram numa beira de estrada Perce Howland (o papel, repito, de Monty Clift), um amigo de Gay e de Guido. Perce junta-se ao grupo.

E relatar em detalhes o que vem a partir daí não seria apropriado.

Mas é necessário, creio, enfatizar que Roslyn, a personagem criada à imagem e semelhança de Marilyn, é – além de carente, frágil, insegura, infeliz – extremamente sensível. Daquele tipo que não pode ver sequer um rato sofrer.

E ela de fato se afeiçoa a Gay, o sujeito bem mais velho mas que a trata bem, como nenhum homem havia tratado antes. Ele também se apaixona por ela. Mas acontece que ele é um vaqueiro, que não pensa duas vezes antes de matar um coelho que invade seu quintal para comer um legume. Nem mesmo antes de prender cavalos selvagens para que sejam mortos e virem comida de cachorro.

E então haverá drama pela frente. Drama pesado.

Um caubói que se recusa a admitir que o tempo dos caubóis já passou

O IMDb usa três gêneros para classificar Os Desajustados: drama, romance e western. Mary achou estranho o uso do gênero western, mas, de uma certa forma, o filme que John Huston fez com base na história criada por Arthur Miller para dar a Marilyn uma fantástica personagem dramática é, sim, um western.

Aqueles 40 últimos minutos do filme, a caçada aos cavalos selvagens no deserto sem fim, são western puro – apesar da presença, ali, de um caminhão e um aviãozinho, um Meyers OTW de 1943, de asa dupla como o 14 Bis de Santos Dumont.

Me peguei pensando, depois de rever o filme, e antes de conseguir organizar os pensamentos para escrever este texto, que esse Gay Langland feito por Clark Gable é bem parecido com o Jack Burns interpretado por Kirk Douglas em Sua Última Façanha/Lonely Are the Brave (1962), ou com o Sonny feito por Robert Redford em O Cavaleiro Elétrico/The Electric Horsemen (1979) – caubóis que se recusam a admitir que o tempo dos caubóis já passou, já acabou.

Gay é bem diferente do J.B. Books interpretado por John Wayne em O Último Pistoleiro/The Shootist (1976) – porque Books, ao contrário de Gay, sabe que o Velho Oeste acabou, que os tempos mudaram, que ele não se encaixa mais no mundo.

Um diálogo extraordinário, uma sequência esplêndida com Marilyn e Monty

Pouco depois de unir ao grupo de amigos, Perce, o homem que gosta de participar de rodeios, pergunta a Roslyn: – “Você pertence a Gay?”

Uma pergunta machista, é claro, mas nada estranha, vinda de um homem de rodeios, sujeito do interiorzão dos Estados Unidos, sem grande educação, nos início dos anos 60.

Como qualquer outro homem Perce estava absolutamente fascinado por Rosalyn, é claro.

Ela responde: – “Eu não sei a que lugar eu pertenço”.

Mais tarde, há uma sequência impressionante em que Roslyn e Perce têm uma conversa longa, bem longa. Perce havia cavalgado um cavalo bravo e depois um touro. Tinha ficado relativamente bastante tempo em cima deles, mas fora derrubado ao chão com violência, e da segunda vez tinha tido um ferimento grave na cabeça, que o deixou desacordado.

Roslyn, com aquela sensibilidade à flor da pele, aquela incapacidade de ver qualquer ser sofrendo, qualquer violência, havia sofrido como se tivesse levado uma surra do diabo em pessoa.

Então, à noite, depois do fim do rodeio, vão todos para um bar, e enchem a cara com doses industriais de uísque. Perce pede licença a Gay para dançar com Roslyn; os dois dançam, mas aí Perce se sente tonto, e pede que ela o acompanhe até fora do bar, para ele respirar um pouco.

A conversa de fato é muito longa. Arthur Miller escreveu para essa sequência um diálogo rico, forte, de impacto, com muitas frases a serem ditas por Marilyn e Monty Clift – dois atores excelentes mas que, como já foi dito, tinham grave dependência de produtos químicos e também uma amplamente conhecida dificuldade para decorar as falas.

O IMDb diz que John Huston queria filmar toda a conversa em uma única tomada, um plano-sequência de uns cinco minutos. O site enciclopédico que tem tudo diz também que Marilyn e Monty surpreenderam a todos conseguindo dizer todas as longas falas, não uma vez, mas duas.

Não acredito muito nessa versão. Primeiro, porque duvido de fato que os dois atores conseguissem decorar todos aqueles longos diálogos e dizê-los sem interrupção alguma. Segundo, porque, se John Huston tivesse conseguido esse prodígio, sem dúvida alguma teria usado esse plano-seqüência, que seria um dos momentos mais antológicos do cinema americano.

Não há plano-sequência, não há tomada longa, sem corte, nesse diálogo. Vemos o rosto de Marilyn, com a câmara colocada um pouco abaixo dele. Ela está sentada sobre um banquinho, e Monty está deitado, com a cabeça encostada nas pernas dela. Então há tomadas do rosto de Marilyn, e depois outras tomadas, com a câmara em plongée, sobre a parte de trás da cabeça de Marilyn, de tal forma que vemos Monty deitado no colo dela.

Não é preciso que seja um plano sequência: tal como está no filme, essa sequência é de arrepiar. Uma maravilha.

John Huston havia dado a Marilyn seu primeiro papel de destaque

Dizem que Arthur Miller – que acompanhou as filmagens o tempo todo – estava sempre, constantemente, reescrevendo algumas cenas, alterando alguns diálogos.

Isso, para um ator que está cem por cento saudável, já deve ser um embaraço. Para Monty, e especialmente para Marilyn, que está praticamente em todas as cenas do filme, deve ter sido especialmente exasperante, enlouquecedor.

O clima nas filmagens sem dúvida deve ter sido exasperante, enlouquecedor.

Há um ponto especialmente interessante no meio de tantos fatos envolvendo a produção de Os Desajustados: esta era a segunda vez que John Huston iria dirigir Marilyn. Ele a havia colocado em O Segredo das Jóias/The Asphalt Jungle, de 1950, quando ela estava iniciando a carreira, concorrendo com centenas e centenas de outras belas mulheres, como o próprio John Huston diz em Um Livro Aberto, sua maravilhosa autobiografia. Foi o primeiro papel de destaque da carreira dela.

Em 1950, John Huston era um diretor de prestígio, com dez anos de carreira, desde Relíquia Macabra/The Maltese Falcon, de 1940, e Marilyn era uma iniciante. Em 1960, nas filmagens de Os Desajustados, John Huston continuava sendo um diretor de prestígio, e Marilyn era uma das maiores estrelas do mundo, talvez a maior de todas.

Marilyn sempre tinha se mostrado grata ao diretor

Em suas memórias, Huston conta que estava em sua casa na Irlanda, onde morava em 1959, quando recebeu um telefonema do produtor Frank Taylor, sobre o projeto de um filme chamado The Misfits. “Arthur Miller tinha escrito o roteiro, com um papel para sua mulher, Marilyn Monroe. (…) Frank me enviou o texto, que era excelente. Liguei para ele e avisei que gostaria muito de fazer o filme.”

E John Huston prossegue, na tradução brasileira de Milton Persson para a L&PM Editores:

“Marilyn Monroe eu conhecia desde 1949, quando estávamos rodando Resgate de Sangue. Ela sempre aparecia no estúdio para assistir às filmagens, como convidada de Sam Spiegel. Comentava-se que a Columbia andava interessada em submetê-la a um teste. Era muito bonitinha, jovem e atraente, mas existem milhares de garotas assim em Hollywood. Esse tipo de comentário em geral acaba no sofá do departamento de elencos e não na frente das câmaras, e eu desconfiava que alguém estava preparando o terreno para isso. Havia qualquer coisa em Marilyn que despertava meu instinto de proteção e então, para impedir que lhe fizessem qualquer sacanagem, me prontifiquei a dirigir o teste, com John Garfield contracenando com ela. Não ia ser, de forma alguma, um teste que sairia barato. A partir daí, nunca mais vi Marilyn. Simplesmente sumiu, e não pensei mais no assunto.

“Eu estava escolhendo o elenco para O Segredo das Jóias quando Johnny Hyde, um baixinho que trabalhava para a agência do empresário William Morris, me telefonou dizendo que tinha uma garota simplesmente ideal para o papel de Angela – podia mandá-la para ler o texto para mim? Arthur Hornblow, o produtor do filme, estava junto comigo poucos dias depois, quando Johnny trouxe a garota. Logo vi que era a mesma que tinha salvo do sofá e ‘ensaios’.”

Então a jovem Marilyn Monroe leu o texto da cena. “Quando terminou, Arthur e eu olhamos um para o outro e concordamos com a cabeça. Era Angela, sem tirar nem botar.”

Huston afirma no livro o que todos os que viram O Segredo das Jóias sabem: Marilyn esteve ótima no filme.

Naquela ocasião, conta Huston, Marilyn já havia assinado um contrato com a 20th Century Fox, mas “eles se desinteressaram em prorrogá-lo”. Quando Darryl Zanuck, o chefão do estúdio, viu O Segredo das Jóias, “correu a contratá-la de novo. Esse papel marcou o início da carreira de Marilyn e ela sempre se mostrou grata comigo. Foi assim que abriu o caminho para a fama e – mais de uma década mais tarde – para o nosso trabalho em conjunto em Os Desajustados, o último filme que chegou a completar.”

Marilyn teve um colapso, foi internada, e Huston teve que interromper as filmagens

John Huston prossegue:

“Eu já sabia da fama de Marilyn de chegar sempre atrasada às filmagens, por isso já no primeiro dia mudei o horário das 9 para as 10 da manhã, esperando lhe facilitar as coisas. Não adiantou nada. Clark Gable ia trabalhar de carrinho esporte, repassava o diálogo com o dublê e depois abria um livro. Nunca abriu a boca para se queixar, fosse qual fosse a hora em que Marilyn aparecia.”

Há registros de que Gable reclamava, sim, dos atrasos – mas apenas em conversas privadas com amigos. Segundo o roteirista John Lee Mahin, o ator disse a ele, sobre os constantes atrasos, que faziam estourar o orçamento: “É roubo. É roubo do dinheiro dos bancos e do dinheiro da United Artists”.

Em sua autobiografia, Huston conta que conversou bastante com Arthur Miller sobre as condições de saúde de Marilyn. Miller sabia dos problemas, sabia que ela tomava comprimidos demais para dormir, depois comprimidos para ficar despertada – mas não conseguia fazer com que sua mulher interrompesse o círculo vicioso.

“Fiquei muito preocupado com as atitudes e o aspecto dela”, escreve Huston. “Parecia estonteada quase o tempo todo. Mas, quando voltyava ao normal, readquiria um brilho impressionante. Não representava – isto é, não fingia que estava sentindo emoção. Era a própria realidade viva. Mergulhava bem fundo de si mesmo, encontrava o que tinha ido buscar e trazia à tona, a nível de consciência. Mas talvez toda interpretação realmente boa se resuma nisso. Dava uma imensa tristeza ver o que estava acontecendo com ela.”

E um pouco mais adiante:

“(… ) no fim sofreu um colapso total e teve que ser internada num hospital de Los Angeles por duas semanas. A produção parou por completo. Como não havia nenhum feriado para nos ajudar, fomos obrigados a pagar o salário de toda a equipe por cada dia de trabalho perdido. Isso causou um aumento enorme das nossas despesas. Só o elenco tornava Os Desajustados o filme em preto e branco mais caro – dentro do orçamento previsto – produzido até então.”

“Depois da volta de Marilyn, todos nós tínhamos certeza de que daí por diante seria diferente. Em questão de poucos dias mudamos de opinião. Marilyn recomeçou a fazer tudo exatamente como antes, como se jamais tivesse ocorrido a menor interrupção.”

Uma sequência fabulosa: Marilyn, inteiramente sozinha, pede socorro

De todas as cenas impressionantes, marcantes, de Os Desajustados, uma, em especial, me assombrou, ao rever o filme agora, depois de décadas.

É depois que o grupo – Roslyn, Gay, Guido e Perce – volta para a casa do piloto, no meio do campo, depois da bebedeira infernal que se seguiu ao rodeio. Roslyn era a única que não estava inteiramente bêbada. Gay e Perce fizeram a viagem desmaiados no banco de trás. Guido dirigia a uma velocidade alucinante; Roslyn implorava para que ele diminuísse a marcha, mas ele não a ouvia.

Então chegam à casa de Guido – inteiros, mas moídos, os três homens inteiramente bêbados. Guido senta-se no sofá preferido na sala e logo apaga. Gay enfim entra para o quarto, trôpego.

Roslyn-Marilyn fica finalmente sozinha. No dia seguinte, todos eles iriam para a tal caçada dos cavalos selvagens – os 40 minutos finais do filme.

O dia está amanhecendo no deserto. Roslyn-Marilyn está sozinha na frente da casa, perto da porta de entrada. Encosta-se à parede e diz, baixinho: – “Socorro”.

Ao fim e ao cabo, há uma pequena fresta de esperança para Roslyn. Para Marilyn não houve.

Anotação em setembro de 2016      

Os Desajustados/The Misfits

De John Huston, EUA, 1961

Com Clark Gable (Gay Langland), Marilyn Monroe (Roslyn Taber), Montgomery Clift (Perce Howland), Thelma Ritter (Isabelle Steers), Eli Wallach (Guido)

e James Barton (o avô de Fletcher), Kevin McCarthy (Raymond Taber), Estelle Winwood (mulher que pede dinheiro para igreja no bar)

Roteiro Arthur Miller, baseado em seu conto

Fotografia Russel Metty

Música Alex North

Montagem George Tomasini

Produção Frank E. Taylor, Seven Arts Pictures, United Artists. DVD MGM.

P&B, 124 min

R, ***1/2

 

13 Comentários para “Os Desajustados / The Misfits”

  1. Eu não gosto desse filme, pareceu-me extremamente chato e sem graça quando o vi. A Monroe está magnífica, toda lânguida e mais fascinante que nunca, isso é inegável, mas achei a estória muito insípida e arrastada (para o meu gosto pessoal apenas, claro, isso não significa que estou dizendo que o filme é ruim). Mas tua análise do filme é tão rica de detalhes interessantes que fiz questão de compartilhá-la no meu facebook, que cultura fílmica de bom nível deve e merece ser partilhada. – Um abraço.

  2. Para mim um dos melhores filmes da historia do cinema! Marilyn, Gable, Montimory Clif impecáveis, Direçao de John Huston perfeita.
    Roteiro de Arthur Miller histórico!
    Nao perca!

  3. Olá! Esta foi a 1a vez que vi Os Desajustados, maravilhoso, e é o tipo de filme que cresce com o tempo. Eu estava estendendo roupa no varal (rsrs), quando a cena de Marilyn pedindo “socorro” voltou à minha mente… Fui tomado por uma compaixão tão grande, por esta atriz que adoro, e que foi tão infeliz na vida…

    Passada a fase dos filmes de “loira-linda-boba”, Marilyn estava direcionando-se para os dramas, tendo estudado por 7 anos no conceituadíssimo United Artists, Marilyn tinha tanta coisa boa pra oferecer. Assisti a Almas Desesperadas, parece que do final dos anos 40, e ela entrega uma performance dramática pra lá de perfeita. Quanto ao filme Os Desajustados, vejo-o como uma pequena obra prima. É espetacular. Cara, a cena dos mustangs naquele deserto é de arrepiar. Todos os personagens têm a sua profundidade, seus silêncios que entregam tanto da sua humanidade. A direção e o texto são fantásticos. Vou rever hj à noite. Abs! 🙂

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