Uma violenta, virulenta denúncia sobre o anti-semitismo na Nova York dos anos 1940, Focus, baseado na novela homônima de Arthur Miller, é uma grande obra, um filmaço.
Há pouquíssimos filmes sobre esse tema duro, pesado, triste, o preconceito contra judeus nos Estados Unidos. Que me lembre, há apenas dois: este Focus, dirigido em 2001 por Neal Slavin, e A Luz é Para Todos/Gentleman’s Agreement, outro filme extraordinário, dirigido em 1947 pelo grande Elia Kazan. Mad Men, a excelente série de TV sobre o comportamento da sociedade de Nova York nos anos 1960, cita anti-semitismo, mas en passant.
Só pela coragem de tratar dessa tema indigesto para qualquer americano sensível, inteligente – e tratar com tanta força, com tamanha indignação –, Focus já seria um filme importante. Mas ele não é apenas importante. É um belíssimo filme, com roteiro brilhante e atuações impecáveis, extraordinárias, de William H. Macy e Laura Dern.
São grandes atores, os dois, e têm belas filmografias – mas creio que suas interpretações em Focus são das melhores de suas respeitáveis carreiras.
O protagonista vê um homem espancando uma mulher – e não faz nada
William H. Macy interpreta Lawrence Newman, um homem solitário, tímido, retraído, recluso, inseguro, um tanto medroso, apegado às convenções, conservador. Não tem amigos, mulher, namorada, diversões. Sua vida é trabalhar: quando a ação começa, em 1944, os Estados Unidos lutando contra o Japão, a Alemanha e a Itália na Segunda Guerra Mundial, trabalha faz 20 anos no departamento pessoal de uma grande empresa em Manhattan. Mora com a mãe idosa no Brooklyn, numa casa comprada com as economias da vida inteira.
As primeiras imagens que vemos, na abertura do filme, são um tanto desfocadas, a câmara escolhendo ângulos estranhos, inusitados; o espectador demora a ver que é um carrossel, que gira cada vez mais rapidamente.
Corta, e vemos um close-up do rosto de William H. Macy acordando assustado com o pesadelo com o carrossel que perde o controle e se destrói.
Lawrence Newman se levanta da cama e se aproxima da janela. Seu quarto fica no segundo andar da casa, e, entre as lâminas da persiana do quarto, ele vê um homem e uma mulher bem em frente à sua casa. Abraçam-se, separam-se, a mulher recua, o homem vai atrás dela, abraçam-se novamente. Poderia parecer – e até parece – um casal brincando, fazendo as preliminares ali mesmo, na rua. Mas a mulher grita “não, não”, e tenta se afastar. O o homem a agarra de novo, e em seguida dá uma porrada forte na cara dela. A mulher cai na calçada, fora da visão de Newman e do espectador porque há um carro estacionado ali. O homem também some da visão, atrás do carro. A mulher reaparece, tentando se levantar e fugir, mas o homem a puxa de volta para trás do carro.
Não há dúvida alguma: não é uma coisa consensual – o homem está espancando a mulher.
O normal, o natural, o certo seria Newman ligar para a polícia. Ele deita na cama de novo, olhos arregalados, suor na testa.
Não comenta nada com a mãe na manhã seguinte, e sai para trabalhar como faz todos os dias. Vê um papel caído no chão, abaixa-se para apanhar e jogar na lata de lixo diante da grama do jardim de sua casa. Na esquina, compra um jornal da banca que fica diante de uma sorveteria. Veremos depois que a banca e a sorveteria pertencem a Finkelstein, interpretado pelo sempre bom David Paymer (na foto abaixo).
No trem rumo a Manhattan, Newman é abordado por Fred (Meat Loaf Aday), seu vizinho do lado. Fred pergunta se ele ouviu a barulheira da briga na rua na madrugada. Ele mente, diz que ouviu algum barulho, mas pensou que fossem cachorros. Não, não eram cachorros, diz Fred: era o Petey, outro vizinho deles, que tinha bebido bastante e pegou uma mulher, “e não conseguiu esperar até entrar em casa”.
E Fred continua: – “Você devia ter visto. Ela era bonita, com belos peitos. (…) Aí ela ficou histérica.”
Newman está visivelmente, obviamente incomodado. Não gostaria, de maneira nenhuma, estar ouvindo aquilo – é do tipo que não quer se meter na vida dos outros, mesmo que um dos outros seja um vizinho que espancou violentamente uma mulher diante de sua casa.
Intimidado, pergunta a Fred se ele viu, se a mulher ficou bem. Fred mente que ela ficou bem: “Nós a tirarmos de lá, e botamos Petey na cama”.
E em seguida muda de assunto. Pergunta a Newman: – “O que você acha do que está acontecendo?”
Newman pergunta o que está acontecendo. E Fred diz: “O tal do Finkelstein, o judeu da loja da esquina. Vai colocar os parentes na casa do lado. Logo serão os negros.”
E convida Newman para uma reunião que os vizinhos estão planejando fazer para discutir a questão da invasão de sua rua por judeus.
Um mulherão surge à frente do protagonista, rebolando, mostrando as coxas
Naquele mesmo dia, no trabalho, Newman leva uma bronca de um superior, Gargan (Joseph Ziegler), por ter admitido uma datilógrafa que se apresentou com um nome anglo-saxão – Kapp – mas na verdade é judia, e seu nome verdadeiro deve ser algo como Kaplinsky. Gargan diz que Newman não está enxergando bem, que deve ir a um oculista.
Ele vai ao oculista, compra óculos.
Com os óculos, fica parecendo… judeu. A própria mãe diz isso a ele.
Com os óculos que o deixam com aspecto de judeu, dias depois ele recebe uma candidata a uma vaga de datilógrafa na grande firma. Gertrude Hart é o nome dela.
A Gertrude Hart entra na sala de Newman no corpo de Laura Dern. Laura Dern não tem propriamente um rosto muito bonito, mas é vistosa, grande e tem um corpo de fechar o comércio.
E então Gertrude Hart-Laura Dern anda gingando o grande corpo, mexendo os quadris como uma baiana de canção de Dorival Caymmi, e, ao sentar-se diante do homem do departamento pessoal, do outro lado da mesa, deixa à mostra os joelhos e o início das coxas.
A visão daquela mulher grande, vistosa, gostosa, vestida de forma pouco usual para uma candidata a uma vaga de datilógrafa, deixa Newman ainda mais inseguro e intimidado do que o normal.
E a bronca do superior o faz tomar cuidado. E se o sobrenome Hart ocultar um nome judeu?
Newman faz perguntas a ela sobre sua experiência, seus trabalhos anteriores, se ela tem prática com máquinas elétricas. E finalmente a dispensa.
Gertrude Hart fica furiosa – porque percebe que na verdade ela foi recusada por talvez ser judia, e porque, na opinião dela, quem a está recusando é, ele mesmo, judeu.
O racismo pegajoso vai ficando cada vez pior, mais perigoso, mais e mais violento
No mesmo dia, o superior de Newman, o tal Gargan, diz a ele que, por decisão do vice-presidente da empresa, ele, Newman, terá que trocar de sala e de função com outro funcionário. Fica bem claro que o vice-presidente achou que aquele homem naquela sala com janelas de vidro, bem visível por quem visita o escritório, parecia judeu.
Newman se sente ofendido com a idéia de perder a sala e a posição para um funcionário que está há apenas cinco anos na firma – ele está lá há 20, como já foi dito.
Prefere ser demitido.
Passará por um duro calvário à procura de novo emprego. Visitará diversas firmas, e será rejeitado – exatamente como ele mesmo havia rejeitado Gertrude Hart.
Os anúncios de emprego nos jornais trazem os dizeres: “Só cristãos”.
Depois de semanas e semanas de procura inútil, chega a uma empresa em Nova Jersey. O chefe do pessoal não está naquele momento, quem está lá é sua auxiliar – exatamente Gertrude Hart. Newman não sabia, mas aquela empresa pertence a um judeu – e, ao contrário de todas as outras que ele havia visitado, emprega judeus, negros.
É uma realidade apavorante, essa que o filme mostra.
Estamos aí com talvez uns 20 minutos de filme. O racismo pegajoso do bairro de Newman vai ficar cada vez pior, mais perigoso, mais e mais violento. O filme vai ficando cada vez mais apavorante.
O filme tem tiques de diretor inexperiente, que vem da publicidade
Um dos maiores nomes do teatro americano, Arthur Miller (1915-2005) escreveu uma série de peças que tiveram grande sucesso e a admiração generalizada da crítica; várias dela foram levadas para o cinema, como As Bruxas de Salem/The Crucible, por exemplo. Foi também autor de contos; novela, escreveu apenas uma – Focus, publicada em 1945, o ano em que terminou a Segunda Guerra, um ano depois daquele em que se passa a ação.
Curiosamente, a única novela que Miller escreveu transformou-se em filme pelas mãos de um homem que dirigiu um único longa-metragem de ficção na vida. Neal Slavin é dono de uma produtora de Nova York, e dirige filmes comerciais. Uma das pouquíssimas informações sobre ele no IMDb diz que Slavin declarou que era seu desejo levar Focus para as telas desde que estava no colegial.
Há em Focus as marcas de um diretor de filmes comerciais. Neal Slavin exagera nas tomadas com a câmara colocada bem acima dos personagens, os plongées; exagera nos super close-ups; exagera nas tomadas em que vemos o rosto de Newman de cabeça para baixo.
São pequenos tiques de quem não é experiente e tenta mostrar que é diferente. Mas não chegam a prejudicar a narrativa, de forma alguma.
Uma das características fascinantes de Focus é que Newman, o protagonista, não demonstra ter o preconceito absurdo, grotesco, nauseante, que muitos de seus vizinhos têm – mas não tem coragem de confrontar os preconceituosos, os anti-semitas. Passa ele mesmo a ser vítima do preconceito, mas nem assim se insurge contra o preconceito e os preconceituosos, na imensa maior parte da narrativa.
O personagem de Gertrude Hart também é bastante complexo. Gertrude fica indignada quando as pessoas a agridem por achar que ela é judia. Mas, de maneira semelhante à de Newman, não parece se opor ao preconceito em si. Ela se diz cristã, nega que seja judia – mas mente sobre seu passado, de tal maneira que nunca fica absolutamente claro o quanto do que diz é verdade, o quanto é falso. No passado, viveu durante dois anos com um homem que era abertamente anti-semita, membro de um grupo que defendia a violência para expulsar todos os judeus dos Estados Unidos.
No filme, esse grupo é chamado de Union Cruzaders; as legendas em português usam Frente Cristã. Segundo a Wikipedia, Christian Front foi uma organização anti-semita bastante ativa nos Estados Unidos nos anos 1930 e 1940.
“A extrema direita usa bodes expiatórios e preconceito para seduzir as pessoas do centro”
Roger Ebert fez uma bela avaliação do filme. Diz ele:
“Focus não procura a realidade; é uma tentativa deliberada de se parecer com um filme dos anos 1940 sobre problemas sociais, até pela textura da fotografia. O filme se baseia numa novela de Arthur Miller, que ele disse ter sido escrita num período de desilusão com o teatro; enfurecido com o anti-semitismo americano mesmo durante a guerra contra Hitler, ele a escreveu num calor infernal. É um aviso didático de que aquilo pode acontecer aqui.
“É claro que pode. O tribalismo é profundamente arraigado n a cultura americana, e apesar de todos termos vindo de fora, olhamos com medo para os outros que vêm de fora. As palavras mais verdadeiras do filme são ditas por Finkelsgein (David Paymer), num momento em que um grupo nazista nativo está tentando intimidar a todos no bairro; ‘Pelo amor de Deus, você não vê o que eles estão fazendo? Há centenas de milhões de pessoas neste país, e uns dois milhões são judeus. É você que eles querem, não a mim! Eles são uma quadrilha de diabos, e eles querem este país.’ Isso é uma bela visão dos métodos da extrema direita, que usa bodes expiatórios e preconceito para seduzir as pessoas do centro e levá-las para seu canto. Eles precisam dos judeus, porque, sem eles, como podem criar anti-semitismo? O ódio contra um outro grupo é o que une o grupo deles. Esse processo se alimenta dos impulsos doentios da xenofobia.”
Grande Ebert. É bem isso mesmo.
“O ódio contra um grupo é o que o une o grupo deles.” Como isso é verdadeiro. É isso que fazem, por exemplo, os políticos que dividem a população de um país em “nós” e “eles” – “nós” versus “eles”.
Focus é uma maravilha de filme. Ele demonstra, mais uma vez (e é preciso demonstrar sempre), que o preconceito contra um grupo de pessoas, seja pela cor da pele, seja pela origem, seja pela religião, é uma das piores invenções de que a humanidade foi capaz. E olha que a humanidade tem sido capaz de muita invenção horrorosa.
Anotação em agosto de 2013
Focus
De Neal Slavin, EUA, 2001
Com William H. Macy (Lawrence Newman), Laura Dern (Gertrude Hart),
David Paymer (Mr. Finkelstein), Meat Loaf Aday (Fred), Kay Hawtrey (Mrs. Newman, a mãe), Michael Copeman (Carlson), Kenneth Welsh (Padre Crighton), Joseph Ziegler (Mr. Gargan), Arlene Meadows (Mrs. Dewitt), David Blacker (Petey)
Roteiro Kendrew Lascelles
Baseado na novela homônima de Arthur Miller
Fotografia Juan Ruiz-Anchia
Música Mark Adler
Montagem Tariq Anwar e David B. Cohn
Produção Carros Pictures, Dog Pond Productions, Focus Productions. DVD Paramount.
Cor, 106 min
R, ***1/2
Muito lindo e emocionante o filme, tanto que quis revê-lo após vê-lo para apreciá-lo com mais calma. Além da denúncia ao preconceito, que é sempre muito importante, as palavras do judeu da rua discriminado durante todo o filme me lembram aquele velho ditado”dividir para governar”;nesse caso é ao contrário, parece que as pessoas precisam de um fator de união, mesmo que seja negativo, para poder formar um grupo.
Guenia Bunchaft
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