Nota:
Um bonde é elemento de grande importância em The Shootist, no Brasil O Último Pistoleiro, no mundo todo conhecido pelos fãs de western como O Último Filme de John Wayne – e também como O Último Faroeste de James Stewart.
O último isso, o último aquilo, o último aquilo outro.
É um filme todo outonal, sobre uma época que está acabando, que a rigor, a rigor, já acabou – a época da colonização do far West, do distante Oeste, a época sem lei e sem alma, a época dos pistoleiros.
Já há luz elétrica, água encanada, telefone e bondes – ainda puxados por cavalos, mas às vésperas da eletrificação.
Vemos bondes e fios elétricos assim que the shootist, o último pistoleiro, JB Books – interpretado, é claro, pelo velho Duke, cabelos grisalhos, uma barbicha grisalha, rugas no rosto tão conhecido de todos nós, aos 68 anos de idade -, entra em Carson City, Nevada, em 1901.
A senhora Rogers, que aluga quartos em sua ampla casa (e é interpretada por Lauren Bacall, aparentando bem mais que seus 52 anos), e receberá Books como inquilino, contra sua vontade, faz questão de realçar: a casa tem água encanada.
As pessoas na rua olham para aquele senhor e o chamam de velho cansado. Um garoto que o vê logo que ele chega usa essa expressão: velho cansado. Logo depois, JB Books, o garoto e o espectador ficarão sabendo que se trata de Gillom Rogers, o filho da própria senhora Rogers. (Ele é interpretado por Ron Howard, um ator com uma cara assim meio de bobo, mas que de bobo não tem nada, e nos anos seguintes se imporia como um dos grandes diretores de Hollywood.)
JB Books vai pegar o bonde várias vezes – inclusive quando nos aproximamos da última sequência do filme, em que ele sai da casa da senhora Rogers com sua melhor roupa, recém lavada a seco, cabelo cortado, barba feita, para enfrentar seu destino.
“Estamos em 1901”, diz o xerife para o velho pistoleiro. “O seu tempo acabou”
Como se não bastassem todas as imagens que vemos da civilização chegando ao antigo território sem lei, ainda tem o pequeno discurso que o xerife de Carson City, um tal de Thibido (Harry Morgan), dirige a JB Books depois que ele, em legítima defesa, mata dois homens que tentam entrar no seu quarto na casa da senhora Rogers e atirar nele, só para figurar na História como os homens que mataram o último grande pistoleiro do Oeste:
– “Books, estamos em 1901. Os velhos tempos acabaram, e você não ficou sabendo. Temos água encanada, luz, telefone, e no ano que vem teremos asfalto e os bondes serão movidos a eletricidade. Quando nos livrarmos de gente como você, isso aqui será como o Jardim do Éden. Para resumir, o seu tempo passou.”
Os filmes sobre o fim da era chegam a formar um subgênero do western
O western foi um dos primeiros gêneros do cinema. Em 1903 – dois anos apenas depois da época em que se passa a ação deste O Último Pistoleiro –, Edwin S. Porter dirigiu O Grande Roubo do Trem/The Great Train Robbery. O cinema que nascia assistia ao fim da era da conquista do Oeste, e contaria centenas de vezes histórias a respeito daquele tempo fascinante e brutal.
Os filmes outonais, os que mostram o final da era da chegada violenta do homem branco às gigantescas terras do Oeste, em que a lei era a do mais forte, do mais rápido no gatilho, chegam a formar um subgênero dentro do western. E é um subgênero coalhado de grandes, belíssimos filmes.
Duelo de Titãs/Last Train from Gun Hill (1959), de John Sturges. O Último Pôr-do-Sol/The Last Sunset (1961), de Robert Aldrich. O Homem Que Matou o Facínora/The Man Who Shot Liberty Valence (1962), de John Ford. Pistoleiros do Entardecer/Ride the High Country (1962), de Sam Peckinpah. Sua Última Façanha/Lonely Are the Brave (1962), de David Miller. Crepúsculo de uma Raça/Cheyenne Autumn (1964), de John Ford.
O último. Pôr-do-sol. Entardecer. Crepúsculo. Outono. Os próprios títulos já refletem com absoluta clareza essa coisa de finitude, de término, de epílogo.
O Último Pistoleiro/The Shootist, de Don Siegel, é mais um grande, belíssimo filme desse subgênero.
Don Siegel reuniu quatro grandes atores em participações especiais
E é impressionante como Don Siegel conseguiu, ao mesmo tempo em que conta com brilho a bela história criada em novela de Glendon Swarthout e roteirizada por Miles Hood Swarthout e Scott Hale, fazer tantas homenagens ao western.
O filme traz, em participações especiais, quatro atores que fizeram diversos dos westerns mais clássicos que há. James Stewart, talvez o ator mais mítico do gênero western, ao lado de John Wayne, reúne-se novamente com o Duke, 14 anos após terem feito juntos O Homem Que Matou o Facínora. Ele interpreta o médico, o Dr. Hostetler, que JB Brooks vai consultar logo no começo da narrativa, assim que chega a Carson City. Veremos que, na verdade, ele fez a viagem até ali para fazer a consulta com o Dr. Hostetler, que, muitos anos antes, havia salvado sua vida, quando foi atingido por uma bala durante um duelo.
John Carradine, que trabalhou sob a direção de John Ford e ao lado de Wayne e Stewart em O Homem Que Matou o Facínora, e já havia trabalhado com o diretor e Wayne lá atrás, em No Tempo das Diligências/Stagecoach (1939), foi chamado para fazer o barman do principal saloon da cidade, o Metropole.
Richard Boone, que trabalhou com John Wayne em O Álamo (1960), um dos dois únicos filmes dirigidos pelo Duke, e participou de outros westerns ao lado dele, como Jake Grandão/Big Jake (1971), faz o papel de Sweeney, um sujeito cujo irmão foi morto por JB Books, e espera o momento certo para se vingar.
E o grande, simpaticíssimo Scatman Crothers foi chamado para interpretar Moses, o dono da estrebaria de Carson City que recebe Dollor, o cavalo de Books.
É um imenso prazer ver Scatman Crothers – o ator que consegue roubar todas as cenas em que aparece em O Iluminado/The Shining (1980), de Stanley Kubrick. Vê-lo aqui – mostrando os imensos dentões, como sempre – regateando, pechinchando sobre o preço do cavalo com um John Wayne em momento alegre, risonho, é uma absoluta delícia.
Consta que todos os atores que fizeram essas participações especiais, mais Lauren Bacall, foram escalados para seus papéis a pedido de John Wayne.
Na abertura, uma colagem de cenas de outros westerns com John Wayne
Além de homenagear o gênero western com essas participações especiais, Don Siegel abre seu filme mostrando – bem rapidamente, em montagem acelerada como se fosse clipe da MTV – algumas tomadas de John Wayne em ação em quatro de seus filmes mais emblemáticos: Rio Vermelho (1948), Caminhos Ásperos (1953), Onde Começa o Inferno (1959) e El Dorado (1966).
É um grande achado do diretor.
Recortar alguns segundos de tomadas desses filmes – em que John Wayne está atirando, no momento exato em que ele está atirando –, e juntá-las numa rápida sequência que abre este The Shootist, foi uma bem sacada forma de mostrar a passagem dos anos, o ator (e o personagem, é claro) que vai ficando mais velho.
De uma certa maneira, Don Siegel antecipou aqui o que Richard Linklater iria fazer em seu Boyhood: da Infância à Juventude (2014), filmado ao longo de 12 anos com o mesmo elenco, mostrando o crescimento de um garoto, enquanto seus pais vão envelhecendo.
Junto dessas tomadas emprestadas de outros filmes, vamos vendo datas – 1871, 1880, 1885, 1889, 1895.
John Wayne-JB Books vai envelhecendo, enquanto a voz em off do jovem Ron Howard diz o seguinte:
– “O nome dele era J.B. Books, e ele tinha um par de revólveres 45
com antigos ganchos de marfim que eram de dar medo. Ele não era um fora-da-lei. Na verdade, durante um tempo ele foi um homem da lei. Muito antes de eu conhecer o sr. Brooks, ele já era um homem famoso. Imagino que sua fama era o motivo pelo qual sempre havia alguém atrás dele. A terra selvagem o ensinou a sobreviver. Ele viveu sua vida de acordo com sua vontade. Tinha este credo:”
E aí entra a voz de John Wayne, falando por John Bernard Books: – “Não vou ser enganado, não vou ser insultado, e ninguém vai meter a mão em mim. Não faço isso com os outros, e exijo o mesmo deles.”
No começo, Don Siegel mostra seu lado Dirty Harry
Essas tomadas de antigos westerns, e essa apresentação de quem é o herói da história que veremos a seguir, vêm antes mesmo dos créditos iniciais, como um introito, um prefácio. Depois dos créditos iniciais, há o tradicional plano geral – aquele em que a câmara mostra uma grande porção de espaço – de um terreno plano que parece não ter fim, com altas montanhas bem lá atrás, a perder de vista, e um cavaleiro solitário, pequenino dentro da tela, tocando em frente.
Todo western necessariamente tem planos gerais assim.
Surge um sujeito bem no caminho do cavaleiro. Um bandido, um assaltante. Pede a carteira.
JB Books, aquele John Wayne todo ali diante de nós, enfia a mão para abrir o casaco – joga a carteira no chão, na direção do bandido, e, ao mesmo tempo, joga uma bala certeira na barriga do outro.
O bandido cai no chão se retorcendo de dor. JB Books diz que ele não vai morrer, mas vai ter uma danada de uma dor de barriga. Exige que o sujeito pegue a carteira no chão e a devolva, e segue seu caminho. Não sem antes dar um conselho ao bandido que se esvai em sangue: – “Arranje outra profissão, porque nessa você não é bom”.
É o lado Dirty Harry dos personagens dos filmes de Don Siegel. Don Siegel se dividiu, basicamente, entre westerns e policiais passados na atualidade, nos seus dias. Clint Eastwood trabalhou com o diretor em westerns e em policiais, vários deles como o personagem Dirty Harry, o policial para quem bandido bom é bandido morto. Quando fez sua obra-prima Os Imperdoáveis/Unforgiven (1992), Clint Eastwood fez questão de dedicá-la a Don e Sergio – Don Siegel, claro, e Sergio Leone, o genial realizador italiano que transformou o western-spaghetti em obra de arte e criou a persona do pistoleiro frio, de pouquíssimas palavras, que Clint interpretou tantas vezes.
Na boca do personagem de James Stewart, uma corajosa defesa da morte digna
JB Books tem duas conversas com o Dr. Hostetler, o papel de James Stewart. A primeira é depois de uma longa consulta, assim que ele chega a Carson City. O Dr. Hostetler confirma o que um outro médico já havia diagnosticado: é um câncer em estágio avançado, já espalhado. Não cabe mais cirurgia.
É o próprio médico que indica para Books a casa da senhora Rogers.
Letreiros na tela vão dando a data exata dos acontecimentos. O dia da chegada de Books a Carson City é 22 de janeiro de 1901 – e lemos na tela que este é o Primeiro Dia.
A narrativa irá até o Oitavo Dia.
Na segunda conversa de Books com o médico, ele pergunta exatamente o que vai acontecer. O Dr. Hostetler a princípio quer se esquivar de dar todos os detalhes, mas, como Books insiste, explica todo o horror que virá.
Ao final da conversa, os dois já de pé, Books pronto para sair, o médico acrescenta:
– “Quero dizer mais uma coisa. Nós dois lidamos muito com a morte. Eu não sou um homem corajoso, mas acho que você é. Não é um conselho, nem mesmo uma sugestão. É algo para você refletir, enquanto sua mente ainda está funcionando.”
Ele faz uma pausa, e Books pergunta: – “O quê?”
O médico então finaliza: – “Eu não morreria desse jeito que descrevi para você. Não se eu tivesse a sua coragem”.
Volto a Clint Eastwood, que agradeceu a Don Siegel e Sergio Leone por ter aprendido com eles como se fazem filmes. Em seu belíssimo filme de 2004, Garota de Ouro/Million Dollar Baby, Clint Eastwood fez uma corajosa defesa da morte digna, da eutanásia.
É fascinante ver que Don Siegel já fazia isso 28 anos antes.
Consta que o ator e o diretor se desentenderam durante as filmagens
No momento em que filmou The Shootist, em 1976, John Wayne tinha sido diagnosticado como livre do câncer que o havia atacado anos antes. Em setembro de 1964, tinha sido operado para a remoção de um pulmão e várias costelas. Apenas em 1979 os médicos identificaram que a doença havia atacado novamente.
Outras informações sobre a produção do filme, tiradas da página de Trivia do IMBD:
* Foi o primeiro filme de James Stewart após um longo período fora dos estúdios, em que participou apenas de séries de TV. Antes de The Shootist, ele havia trabalhado em O Olho da Justiça (1971). Foi apenas para atender ao pedido de John Wayne que aceitou fazer o papel do médico. Estava tendo problemas de audição, e, segundo consta, sua experiência no set de filmagem foi muito ruim. Tinha dificuldades para dizer as falas.
* O cavalo que John Wayne cavalga no filme, vende para Moses e depois recompra dele para dar de presente para o garoto Gillom Rogers, pertencia na verdade ao ator, e era um animal de estimação. O Duke cavalgou nele em diversos filmes – o já citado Jake Grandão (1971), Os Cowboys (1972), Bravura Indômita (1969), Justiceiro Implacável (1975), Chisum, Uma Lenda Americana (1970) e Os Chacais do Oeste (1973).
* Lauren Bacall já havia trabalhado com John Wayne uma década antes, em Rota Sangrenta/Blood Alley (1955) – uma porcaria de filme, na minha opinião, embora seja sempre bom lembrar que minha opinião não vale sequer uma moeda furada de 2 guaranis paraguaios. Foi Wayne que escolheu a grande atriz e eterna sra. Humphrey Bogart para o principal papel feminino de The Shootist.
* Consta que Don Siegel e John Waune não se deram nada bem, durante as filmagens. As relações entre os dois parece que foram bem inamistosas. Em entrevista, no entanto, Siegel tentou negar que tenha havido problemas: “Ele tinha muitas idéias… De algumas eu gostei, e elas me deram inspiração, e de outras não gostei. Mas não brigamos por causa de nenhuma delas. Gostamos um do outro e respeitamos um ao outro.”
Pensaram em vários nomes para o papel principal. Mas só poderia ser John Wayne
No romance que deu origem ao filme, de autoria de Glendon Swarthout (1918-1992), JB Books estava com 50 anos. A ação do filme se passa, como já foi dito, em 1901, e na lápide que Books encomenda ao agente funerário de Carson City está dito que ele nasceu em 1843; estaria, portanto, com 58 anos. Consta que executivos da Paramount eram contra dar o papel a John Wayne, então com 68 anos. Segundo eles, não pareceria verossímil um pistoleiro com essa idade.
Cada um tem direito a sua opinião; para mim, JB Books estar com 68 anos e com um câncer terminal parece muito mais verossímil – e impactante – do que se ele fosse interpretado por um ator mais jovem. Mas esse nem é o ponto, porque esse filme simplesmente não existiria se o seu personagem principal não fosse interpretado por John Wayne, ora bolas. Só poderia ser John Wayne, e ninguém mais.
Consta – o IMDb afirma isso – que foram pensados para o papel atores tão díspares quanto Paul Newman, Charles Bronson, Gene Hackman e Clint Eastwood.
Se qualquer um deles tivesse sido escolhido, teria sido outro filme, completamente diferente.
Só poderia ser John Wayne, e ninguém mais.
“John Wayne se tornou a mais mítica presença nos filmes americanos”
Leonard Maltin, o cara do guia de filmes mais vendido do mundo, na época em que havia guia de filmes vendidos nas livrarias, deu 3.5 estrelas em 4 ao filme. “História inteligente sobre um pistoleiro que fica sabendo que tem câncer e tenta morrer em paz, mas não pode escapar de sua reputação. Uma despedida apropriada (e tocante) de Wayne.”
A mesma cotação de 3.5 estrelas em 4 (a mesma que eu dei depois de rever o filme agora e antes de começar esta anotação, e portanto muito antes de ler as opiniões dos bons críticos) foi dada por Roger Ebert, o crítico que amava os filmes e amava ver filmes. Ebert faz textos grandes (não tão grandes quanto os meus, e sempre umas 200 mil vezes melhores que os meus). Dá vontade de transcrever tudo – mas também dá preguiça.
Começa assim:
“O velho tem estado por aqui faz um bom tempo. Quando ele interpretou o jovem Ringo Kid em Stagecoach (No Tempo das Diligências), lá atrás, em 1939, ele já tinha 32 anos de idade. E eu não acreditei, até que contei duas vezes – mas Stagecoach foi o seu filme de número 60. John Wayne cresceu, de papel em papel, para se tornar a mais mítica presença nos filmes americanos. Alguns de seus papéis foram muito ruins, mas talvez na época não soubéssemos disso. Talvez, quando tínhamos 10 ou 12 anos, e era sábado à tarde, o que gravávamos na memória era que Wayne estava na tela, piscando no sol, tomando decisões, pronto para a ação. Para a minha geração, enquanto os presidentes chegavam e saíam, John Wayne apenas ficou um pouco mais pensativo.”
É uma dura batalha entre a admiração pelo texto de Roger Ebert e a preguiça. O segundo parágrafo dele começa assim:
“Ele cavalga para dentro da tela em The Shootist com medo de estar morrendo. Não com medo de que vá ser morto, mas com medo de estar morrendo, o que é a última coisa que a gente poderia prever que um personagem de John Wayne iria fazer. É 1901: ele havia sobrevivido a seu século. Um médico qualquer havia dado a ele a má notícia, e agora ele queria ouvir dos lábios de Doc Hostetler, que tinha cuidado dele depois de uma tarde violenta 20 anos atrás. E então ele cavalga, the Shootist, para dentro de uma Carson City para a qual o Velho Oeste havia se tornado um embaraço.”
Aaaah…
Pulo para o último parágrafo:
“O elenco é excelente porque compreende o material, e tem simpatia por ele. James Stewart, como o médico, e Lauren Bacall, como a viúva, interpretam cenas com Wayne que absolutamente nos fazem esquecer que estamos assistindo a um filme. (…) A direção de Don Siegel revela uma sensibilidade que não suspeitaríamos depois de filmes como Dirty Harry. E observem a maneira com que John Wayne diz “Bom dia, Mrs. Rogers” para Lauren Bacall pela última vez.”
Ao sair de cena, o pistoleiro deseja felicidades para as últimas pessoas que vê
Depois de Roger Ebert, fico sem interesse em procurar outras opiniões.
Quando eu crescer, gostaria de escrever só um pouquinho como ele.
Mas vale acrescentar dois detalhes importantes, a meu ver fundamentais, que confirmam as insuspeitadas sensibilidade e delicadeza de Don Siegel ao nos fazer dar adeus a John Wayne, ao se despedir de JB Books, ao nos fazer nos despedirmos daquela era que estava acabando, já havia acabado.
No bonde que pega depois de desejar “good day” para a senhora Rogers, há uma jovem.
Em quase todos os westerns – com as raríssimas exceções de todas as regras –, as mulheres ou bem eram angelicais, puras, maravilhosas, donas de casa trabalhadoras, perfeitas, ou então cantoras de cabaré, mulheres da vida, putas.
Ali, naquele western num far West que se civiliza, se moderniza, a jovem no bonde é simpática e sorridente. Sabe-se lá o que vai ser na vida – mas seguramente, ao contrário de suas antecessoras, encontrará, no novo mundo que está começando, um largo espectro de papéis a serem exercidos pelas mulheres, além dos de santa e de puta.
JB Books é um velho. Ele não tem ainda a capacidade de enxergar que, no futuro que se anuncia, no mundo civilizado que está substituindo a sua era sem lei e sem alma, as mulheres poderão ter profissão, carreira, ser independentes.
E então, no momento antes de descer do bonde, ele se dirige à jovem e deseja que ela encontre um bom companheiro na vida.
E em seguida dá de presente para o motorneiro a almofadinha que vinha usando para se sentar o tempo todo.
Ao sair de cena, o último pistoleiro não apenas deseja um bom dia para a bela viúva que o acolheu em seus dias derradeiros, como também deseja felicidades para as últimas pessoas que encontra, a jovem passageira e o motorneiro.
Tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro.
E os grandes filmes.
Anotação em setembro de 2016
O Último Pistoleiro/The Shootist
De Don Siegel, EUA, 1976
Com John Wayne (J.B. Books), Lauren Bacall (Bond Rogers), Ron Howard (Gillom Rogers), Hugh O’Brian (Pulford), Bill McKinney (Cobb), Harry Morgan (xerife Thibido), Sheree North (Serepta, a ex-amante), Rick Lenz (Dobkins, o jornalista), Gregg Palmer (Burly Man), Alfred Dennis (o barbeiro), Dick Winslow (o motorneiro do bonde), Melody Thomas Scott (jovem no bonde)
e, em participações especiais, James Stewart (Dr. Hostetler), Richard Boone (Sweeney), John Carradine (Beckum), Scatman Crothers (Moses),
Roteiro Miles Hood Swarthout e Scott Hale
Baseado na novela de Glendon Swarthout
Fotografia Bruce Surtees
Música Elmer Bernstein
Montagem Dougas Stewart
Produção Paramount Pictures, Dino De Laurentiis Company.
Cor, 100 min
R, ***1/2
Esse filme me quebra
Esse filme é um monumento! Tudo nele é uma belíssima homenagem ao gênero western. E seu texto é por sua vez uma ótima homenagem ao filme, caro Sérgio.
Muito bom filme não tenho dúvida. Comprei o DVD há pouco tempo e gostei muito. Não o vi no cinema, passou-me.
Li o livro de Glendon Swarthout quando saiu em Portugal e também sabia que havia uma adaptação para cinema mas não vi.
Aconteceu-me isso várias vezes, filmes que queria ver mas que, por qualquer razão, me escaparam.
É o caso do famosíssimo “Leopardo” de Visconti; tenho o romance há muitos anos mas só vi o filme recentemente e, por acaso, não fiquei muito entusiasmado com a adaptação.
É um problema que ocorre de vez em quando – um grande romance raramente resulta quando adaptado ao cinema.