No começo, e em toda a primeira metade, The Far Country, no Brasil Região de Ódio, que Anthony Mann lançou em 1955, é um western que foge da simplicidade, quase maniqueísmo, que é uma das características do gênero. Quando a ação começa, o personagem interpretado por James Stewart – e, portanto, o herói da história – acabou de matar dois homens. E os homens da lei estão atrás dele.
Logo após os créditos iniciais, um grande letreiro informa: “Seattle, 1896”. Cem anos antes da explosão do grunge, do Nirvana de Kurt Cobain, a hoje mais populosa e importante cidade do Estado de Washington, no extremo noroeste dos Estados Unidos, bem perto do Pacífico e da fronteira com o Canadá, era como qualquer outra cidade do Velho Oeste – com a diferença de que tinha um porto.
Quando a ação começa, Jeff Webster – o personagem de James Stewart, o ator que fez com Anthony Mann um punhado de filmes que são alguns dos mais clássicos westerns da História – está chegando à rua mais próxima do porto de Seattle com algumas dezenas de cabeças de gado, que tangeu desde o distante Wyoming, com a ajuda de dois homens. Durante boa parte do caminho, haviam sido quatro ajudantes, mas, quando dois deles tentaram voltar atrás, e levando parte do gado, Jeff os matou.
Ben (o papel do sempre ótimo Walter Brennan), o velhinho que é o maior amigo de Jeff e seu sócio, estava esperando por ele junto de um navio que se prepara para zarpar do porto.
Jeff pede a Ben que pague US$ 100,00 para cada um dos homens que fizeram a longa travessia até ali com ele. Depois que eles recebem o pagamento, Jeff joga para eles os revólveres que havia confiscado durante a viagem. E diz para eles:
– “OK, vocês esperaram 800 km por isso. Agora usem as armas.”
Os dois homens encaram um ao outro, avaliam a situação – e concluem que seria temerário enfrentar o sujeito. E então põem os revólveres nos colts. Um deles diz: – “Eu ainda vou ver você ser enforcado”.
Ben chega perto de Jeff e diz algo assim: – “Melhor eu não perguntar o que aconteceu, não é?”
Em seguida, botam o gado para dentro do grande navio – um daqueles imensos vapores com a pá giratória atrás, na popa, como os que vemos nos filmes navegando no Rio Mississipi, parecido com os bem menores que ainda há no Rio São Francisco. (Eu mesmo viajei num deles, de Januária até o lago de Sobradinho, perto de Juazeiro e Petrolina.)
No navio, o herói recebe a inesperada ajuda de uma mulher
O navio já está deixando lentamente o porto, iniciando a navegação, quando chegam os homens da lei, certamente depois de terem sido alertados pelos dois sujeitos que haviam trazido o gado com Jeff. Um deles grita para o capitão voltar, porque o navio está levando um assassino que precisa ser preso. O capitão diz que não vai voltar, mas vai prender o sujeito e entregá-lo às autoridades na sua próxima parada. E em seguida ordena a seus marinheiros que peguem Jeff.
Jeff joga um deles no mar, e corre para tentar se esconder em algum lugar dentro do navio. Recebe uma ajuda imediata, providencial e inusitada: uma mulher atraente, muito bem vestida, que acompanhava toda a movimentação, abre a porta de sua cabine e manda o procurado pela lei entrar. E dá ordem para que ele se deite na cama. Jeff acha estranho: – “De esporas?”
Já estão batendo na porta.
Jeff obedece, deita-se no cantinho da cama.
A mulher tira a blusa, fica só com a anágua sobre o sutiã, e deita-se também, tapando a visão de Jeff, escondido no canto. Ela dá ordem para que abram a porta, os marinheiros usam a chave extra, entram na cabine, e pedem desculpas à senhora Castle. Não há homem algum aqui, como vocês estão vendo, diz ela; agora vão embora, e por favor fechem a porta.
Jeff Webster pergunta a Ronda Castle (o papel de Ruth Roman) por que ela havia feito aquilo. Ao longo de praticamente todo o filme, Jeff Webster dirá que ninguém faz favor a ninguém por nada – só por interesse.
A mulher diz que poderá precisar de favores dele.
Uma mulher poderosa, que se fez por si só. Um homem da lei que é o pior bandido
Então, insisto: The Far Country começa com muito terreno cinza, nada preto no branco, num gênero acostumado a uma divisão mais simples das pessoas – os bons de um lado, os maus de outro.
Muito terreno cinza – embora o filme seja em Technicolor de deixar o espectador até enfastiado de tanta cor na fotografia de William Daniels.
Um protagonista que acabava de matar dois homens, e está agora fugindo dos homens da lei.
Uma mulher rica, poderosa, que viaja sozinha numa cabine cara do grande navio – algo raro num gênero geralmente muito machista, em que as mulheres, na imensa maior parte dos casos, reservadas, é claro, algumas poucas exceções, se dividem entre as boas, recatadas, trabalhadoras, mães de família, e as outras, as cantoras de cabaré e as outras profissionais de cabaré que não necessariamente cantam.
Temos aqui, bem no início da narrativa, uma mulher rica e independente. Morena, rica e independente, que o espectador fica conhecendo a bordo de um grande vapor. Haveria uma outra parecida com esta Ronda Castle em Os Comancheros (1961), de Michael Curtiz; a personagem de Ina Balin, Pilar Graile, é a independente, rebelde, surpreendente filha de um milionário bandido traficante de armas para os índios. Esta Ronda Castle aqui, veremos, é uma business woman, uma self made woman, uma comerciante que se fez por si só, naquela região que acabava de ser conquistada pelos colonizadores vindos do Leste e do centro do país.
Uma personagem bem raro no cânone do western.
Mas ainda tem mais estranheza, no início deste The Far Country.
Quando o navio chega a seu destino, a cidade de Skagway, já no Alasca, Jeff Webster vai se ver diante de um juiz, um representante da lei – um tal Gannon, interpretado por John McIntire – que vai se demonstrar o retrato do mal em si, um bandido sanguinário, impiedoso, frio.
A mulher de cabelos pretos é impiedosa. A loura é só bondade
À medida em que a narrativa vai avançando, as coisas começam a ficar menos cinzentas, e mais preto no branco (apesar, repito, do excesso de cores do diretor de fotografia William Daniels).
Em contraposição à figura de Ronda Castle, comerciante rica, ela também absolutamente impiedosa, que só pensa em acumulação de mais e mais dinheiro, haverá a figura doce da européia imigrante de bom coração, Renee (Corinne Calvet), que só quer fazer o bem, não importa a quem – e, claro, óbvio, vai se apaixonar por Jeff Webster.
Detalhe: contra os cabelos negros de Ronda, Renee tem os seus lourinhos. Loirinhos, diriam alguns paulistas. Mesmo mestre Anthony Mann tropeçava aqui e ali em estereótipos.
E aqui me permito um parêntese. Essa situação do mocinho dividido entre duas mulheres não é algo muito raro no western. O exemplo mais gritante, é claro, é Matar ou Morrer/High Noon (1952). O xerife Will Kane de Gary Cooper havia tido um caso com a senhora não família Helen Ramirez, interpretada pela mexicana e morena Katy Jurado, e agora estava se casando com Amy Fowler, branca, loura, Quaker, pura como água da fonte. A noiva se encontra com a ex-amante – a loura religiosa de branco, a que pecava de negro.
Mas há diversos outros exemplos. Ainda recentemente, revi Paixão Selvagem/Canyon Passage, que o realizador francês lançou em 1946. Ali, o personagem central, interpretado por Dana Andrews, fica dividido entre duas mulheres – uma de personalidade forte, como essa Ronda de A Far Country, interpretada por Susan Hayward, e uma mais caseira, que daria a mais perfeita esposa, feita por Caroline Marsh.
Fecha parênteses.
Eisenstein e Ford aplaudiriam belíssimas sequências deste belo filme
Lá pela metade do filme, vai se estabelecendo claramente quem são os mocinhos, quem são os bandidos. Os good guys e os bad guys.
Os mocinhos, é claro, são os colonizadores, os homens e mulheres que chegaram naquela terra distante – The Far Country do título original – à procura de um espaço para se estabelecer, para tentar uma vida melhor.
E é interessante, porque aqui muitos dos homens que vêm em busca de ouro naquela região gelada, inóspita, não são simplesmente aventureiros que querem riqueza rápida e depois voltar para seus lugares de origem. São colonizadores, que querem ficar ali, levar para aquela terra distante os valores da civilização.
Os bandidos são o grupo do juiz Gannon – juiz sem respaldo legal, juiz auto-intitulado, auto-proclamado. E Ronda Castle é próxima do juiz, são amigos, se ajudam.
O grande herói, o homem forte, determinado, o protagonista, esse Jeff que tem sobrenome de dicionário, esse aí, no entanto, fica renitentemente à margem do campo que se divide entre o Bem e o Mal.
Jeff Webster só pensa em si mesmo, na sua vida. Quer ganhar dinheiro e voltar para Utah e quem sabe finalmente settle down – e é dureza, porque não há expressão na última flor do Lácio, inculta e belíssima, que mostre com tanta força essa imagem do finalmente parar, ficar, se acalmar, criar raízes.
Quando The Far Country está ali exatamente pela metade de seus curtos 97 minutos, há uma sequência antológica, maravilhosa, em que aqueles colonizadores exprimem que não querem mais deixar a pequeníssima, recentíssima cidadezinha de Dawson no inverno – querem permanecer ali, settle down, fincar raízes, construir casas com banheiro, a escola, depois a igreja, depois o prédio da Justiça.
É uma sequência de fato emocionante.
No seu final de vida, quando já havia deixado de ser o principal propagador dos ideais da Revolução Russa no cinema, e via com horror os crimes do stalinismo, Sergei Mikhailovich Eisenstein seguramente aplaudiria de pé como na ópera.
Pouco depois daquela cena belíssima, no entanto, Jeff Webster diz para Ben que ele vai embora, vai abandonar aquelas pessoas com quem haviam convivido nos últimos meses.
– “Não tem nada a ver todo aquele papo sobre escola, igreja, lei e ordem”, diz Jeff Dicionário, com a voz de James Stewart, esse ator que, assim como Gary Cooper, como Henry Fonda, pouquíssimas vezes fez papel de bandido. “Lei e ordem custam vidas. Alguém tem que ficar de pé para levar os tiros. Eu não vim aqui para isso.”
Essa sequência, mestre John Ford com toda certeza aplaudiria de pé como na ópera.
Porque ele saberia, é claro, assim como qualquer espectador, que, daquela sequência com esse diálogo forte, marcante, até o final do filme, Jeff Webster iria mudar de idéia – e tomar partido.
“É o que o gênero produziu de mais perfeito e mais puro”, diz Tulard
Anthony Mann (1906-1967) é, com toda certeza, depois de John Ford e ao lado de Howard Hawks, um dos grandes realizadores de westerns. É um dos mestres, dos grandes do gênero mais antigo do cinema americano.
Outro mestre, este da crítica, o francês Jean Tulard, se entusiasma ao falar de Anthony Mann. Diz ele sobre o ciclo de westerns de Mann, no livro Dicionário de Cinema – Os Diretores: “Já se disse tudo sobre essa série de filmes interpretados por atores excepcionais (Stewart, Fonda, Cooper), amparados por roteiristas notáveis (Bordan Chase, Philip Yordan) e por uma brilhante utilização dos cenários naturais. Ao se rever O Preço de um Homem ou Winchester 73, é forçoso concordar com Coursodon e Tavernier: ‘É o que o gênero produziu de mais perfeito e mais puro.”
E mais adiante: “Simplicidade e clareza na maneira de contar uma história, preocupação em apresentar o herói antes de tudo como um homem, beleza da imagem não gratuita, mas que serve para situar o cenário da ação. Mann é o cineasta clássico por excelência”.
Sim, filmou com os maiores atores – mas dá para perceber que a parceria com James Stewart foi uma das preferidas do realizador. Num breve período de tempo, fizeram juntos Winchester 73 (1950), E o Sangue Semeou a Terra/Bend of the River (1952), O Preço de um Homem/The Naked Spur (1953), e este Região do Ódio/The Far Country (1955). E, entre um western e outro, ainda filmaram Música e Lágrimas/The Glenn Miller Story (1954), em que James Stewart interpreta o band leader adorado pelas multidões.
Bordan Chase, citado por Jean Tulard, foi o autor do argumento e do roteiro deste filme, e assinou os de vários outros importantes – os já citados Winchester 73 e E o Sangue Semeou a Terra, e mais Rio Vermelho (1948) e Vera Cruz (1954). Um autor de clássicos.
James Stewart contracenou em nada menos que 17 westerns com seu cavalo Pie
O IMDb traz uma história deliciosa sobre o cavalo que James Stewart monta em The Far Country, e também em nada menos de – pasme o eventual leitor – 16 outros westerns! O cavalo, Pie, pertencia ao ator. “Um dos melhores atores que já contracenaram comigo”, dizia ele.
Há uma sequência no filme em que o cavalo de Jeff Webster tem que caminhar pela rua principal da cidadezinha de Dawson sozinho, sem ninguém montado nele. Tem que atravessar uma boa distância, em linha reta, sem cavaleiro. O assistente de direção John Sherwood perguntou a Stewart se Pie conseguiria fazer a cena, e o ator respondeu, com aquele seu vozeirão inconfundível: “Vou conversar com ele”. E lá se foi ele a sussurrar coisas ao ouvido do garanhão.
Aí Pie fez a cena. Atravessou o set com perfeição, em linha reta, como exigia o roteiro. Não foi necessário refazer: a primeira tomadas já ficou perfeita, é a que está no filme.
Um detalhinho sobre o título em outros países, tema que me atrai sempre. Os exibidores brasileiros criaram esse Terra do Ódio. Os portugueses foram absolutamente sóbrios e exatos: Terra Distante. Os distribuidores italianos também foram corretos: Terra Lontana. Já os franceses piraram bravo. O filme que Jean Tulard, François Truffaut, Bertrand Tavernier e tantos amantes do cinema clássico de Hollywood viram se chamou Je Suis un Aventurier.
No filme há uma sequência igual à das fotos antológicas que inspiraram Chaplin
O livro The Universal Story lembra que uma das belezas do filme é o cenário deslumbrante das Montanhas Rochosas no Canadá. E é mesmo. Ao final do filme, há um agradecimento aos responsáveis pela manutenção do Jaspar National Park, no estado de Alberta, onde as cenas exteriores foram feitas.
O filme se refere, várias vezes, ao território canadense de Yukon, e mais especificamente à região de Klondike. Ali, naquela região gelada do noroeste do Canadá, houve, entre 1896 e 1899 (e é fundamental lembrar que o filme nos informa que a ação se passa exatamente em 1896), uma fantástica corrida ao ouro: milhares, milhares e milhares de aventureiros foram para a região – como vários dos personagens de The Far Country – na febre da busca por ouro. Estima-se que 100 mil pessoas participaram dessa loucura.
Foram imagens da corrida de ouro de Klondike, no território de Yukon, que inspiraram Charlie Chaplin a fazer seu clássico Em Busca do Ouro/The Gold Rush (1925).
Anthony Mann e seu diretor de fotografia William Daniels conseguiram praticamente reproduzir as imagens famosas, antológicas, da fila indiana infinita subindo uma montanha coberta de neve. É, ela também, uma sequência antológica.
Tanto Leonard Maltin quanto a equipe do Le Petit Larousse des Films foram secos, rápidos, de poucas palavras, que nem o herói da história – que nem, a rigor, todos os protagonistas dos westerns.
Maltin deu 3 estrelas em 4 e sintetizou: “O homem de gado Stewart, um solitário por natureza, leva seu rebanho até o Alasca e só encontra problemas; uma sólida saga de western que tem como pano de fundo cheio de cores as cidades de mineradores”.
E os franceses do Larousse dizem de Je Suis un Aventurier: “Em paisagens grandiosas, dois aventureiros partem à procura de ouro. Um dos mais belos westerns de Anthony Mann.”
Sem dúvida, um belo western. Um belo filme.
Anotação em outubro de 2016
Região do Ódio/The Far Country
De Anthony Mann, EUA, 1955
Com James Stewart (Jeff Webster)
e Ruth Roman (Ronda Castle), Corinne Calvet (Renee Vallon), Walter Brennan (Ben Tatum), John McIntire (Gannon), Jay C. Flippen (Rube), Harry Morgan (Ketchum), Steve Brodie (Ives), Connie Gilchrist (Hominy), Robert J. Wilke (Madden), Chubby Johnson (Dusty), Royal Dano (Luke), Jack Elam (Frank Newberry), Kathleen Freeman (Grits), Connie Van (Molasses)
Argumento e roteiro Borden Chase
Fotografia William Daniels
Montagem Russel F. Schoengarth
Produção Aaron Rosenberg, Universal International Pictures.
Cor, 97 min
***
Título na França: Je suis un aventurier. Em Portugal: Terra Distante.
Ah, que maravilhosa descrição do filme!
Jimmy, o ator com o melhor accent da Golden Age.
Adquiri mesmo ontem o filme “The Far Country” (Terra Distante em Portugal) e depois do seu comentário fiquei com pressa de o ver na 1ª oportunidade. Gosto de westerns e considero Ford, Hawks e Mann os expoentes máximos do género; além disso prefiro os rodados em exteriores, como este, com paisagens grandiosas e enormes actores como Stewart e Brennan.