Ave, César! / Hail, Caesar!

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Nota: ★★★½

Ave, César!, o filme dos irmãos Joel e Ethan Coen de 2016, é uma absoluta delícia, uma comédia hilariante, uma diversão fantástica para quase todo tipo de audiência. Só poderá desagradar a turma de narizinho empinado que diz amar “cinema de arte” e detestar “filme americano” – como se só houvesse um tipo de filmes americanos.

Agora, para quem gosta especialmente de filmes, aí então é la crème de la crème, o néctar dos deuses: é um filme sobre o cinema, sobre Hollywood, sobre a produção de filmes, sobre gente de cinema. É absolutamente cheio de referências a filmes – e inclui, en passant, como quem não quer nada, um monumental número de musical aquático, um belo número de musical tradicional, com canto, dança e sapateado, uma pitada de western e um pouco daqueles épicos baseados em passagens da Bíblia.

A história tão louca quanto engraçadíssima criada por Joel e Ethan Coen – que se passa no inicinho dos anos 50 – ainda inclui uma arrasadora sátira política sobre os tempos pré-macarthismo, em que muitos dos grandes roteiristas do cinema americano eram comunistas, alguns com carteirinha do Partido, ou no mínimo simpatizantes.

E a trilha sonora – composta, como sempre nos filmes dos Coen, por Carter Burwell – inclui, como músicas incidentais, canções interpretadas pelo Coro do Exército Vermelho soviético.

Uma baita salada – nada, nada, nada indigesta.

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Josh Brolin faz Eddie Mannix, o chefão do estúdio que é também o fixer

Mais uma vez, é um filme dos Coen com George Clooney no elenco, depois de E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000), O Amor Custa Caro (2003) e Queime Depois de Ler (2008) – mas, ao contrário dos anteriores, neste aqui o galã ligado em política não faz o papel central. O protagonista é também um ator que já atuou em outros filmes dos irmãos Joel e Ethan, Onde os Fracos Não Têm Vez (2007) e Bravura Indômita (2010), Josh Brolin.

Josh Brolin interpreta Eddie Mannix, um sujeito que é ao mesmo tempo o principal executivo de um grande estúdio de Hollywood, o fictício Capitol Pictures, e também o seu faz-tudo: Eddie é o sujeito que resolve todos os problemas que surgem no dia a dia do estúdio, absolutamente todos os problemas, de todos os tipos.

Os americanos usam para definir o que Eddie faz a palavra fixer

– o que conserta, o que arruma, o que repara, o que dá um jeito.

Ele mete a mão na massa – mas, ao mesmo tempo, manda em tudo, supervisiona todos os filmes em produção no estúdio. Só há uma pessoa acima dele na hierarquia – o dono, que vive em Nova York, e com quem Eddie conversa diariamente por telefone para obter as coordenadas gerais sobre as produções.

A ação se concentra em um período de pouco mais de 24 horas: começa às 4 horas da manhã, quando Eddie está se confessando numa igreja católica, cerca de 24 horas depois de sua confissão anterior, e vai terminar, 106 minutos depois, no início da manhã seguinte, ali pelas 7h, 8h da manhã.

Ao longo dessas longas 27, 28 horas, Eddie não dorme, não descansa. Trabalha direto, quase sem parar. Faz pequenas interrupções para se encontrar duas vezes com um chefão da Lockheed Corporation, a gigante da indústria aeronáutica, que pretende levá-lo para trabalhar lá, e para jantar rapidamente em casa uma comidinha preparada pela mulher (interpretada por Alison Pill).

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Entre os muitos problemas a enfrentar, há o sumiço do grande astro do estúdio

Algumas das coisas que Eddie Mannix tem que resolver, consertar,  arrumar, reparar, durante aquelas 27, 28 horas:

* Impedir que um fotógrafo termine uma sessão de fotos um tanto picantes com a atriz Gloria DeLamour (Natasha Bassett), uma doida de pedra, cuja imagem seria obviamente prejudicada pela divulgação prejudicaria do material. E, depois, cuidar para que ela vá para uma clínica de desintoxicação;

* Encontrar uma saída para a gravidez de DeeAnna Moran, uma das principais atrizes do estúdio, a estrela dos musicais aquáticos. Primeiro Eddie tenta fazer com que o pai da criança, o diretor sueco Arne Seslum (o papel de Christopher Lambert) case com a moça. Ao saber que Arne já é casado e cheio de filhos, pensará num esquema complicado de ela sumir de circulação durante uns meses, até a criança nascer, e aí adotar o próprio filho que teria sido entregue a um amigo de confiança do próprio Eddie.

(A deslumbrante DeeAnna Moran é interpretada por Scarlett Johansson, que já havia trabalhado com os irmãos Coen quando tinha apenas 17 anos, em O Homem Que Não Estava Lá, de 2001.)

* Escolher o ator principal para uma das produções que estão sendo tocadas pelo estúdio, a sofisticada comédia romântica Merrily We Dance, alegremente dançamos, sob a batuta do igualmente sofisticado e um tanto fresco diretor Laurence Laurentz (o papel de Ralph Fiennes). O dono do estúdio ordena, de Nova York, que o papel fique com o astro em ascensão Hobie Doyle (Alden Ehrenreich). Acontece que Hobie é um ator de westerns, muito bom para cavalgar, laçar bois e vacas, atirar – mas que simplesmente não sabe representar. Laurence Laurentz bem que tentará ensinar, mas o rapaz se mostra extremamente ruim de serviço fora de seu habitat natural, o bangue-bangue.

* Domar as jornalistas Thora e Thessaly Thacker. As duas são irmãs, são idênticas (interpretadas por Tilda Swinton, em delicioso papel duplo), mas se odeiam, e são rivais; uma é colunista de fofocas, tipo Louella Parsons ou Hedda Hopper, a outra se considera uma repórter séria. Por motivações diferentes, as duas estão atrás de uma entrevista com Baird Whitlock (o papel de George Clooney), um dos principais atores do estúdio, que naquele momento estava vivendo o papel principal do grande épico bíblico Ave, César!, o de um centurião romano, Autochlus Antonius, que, ao conhecer Jesus Cristo, passa a acreditar nele e muda inteiramente seu modo de ver a vida.

* E aí chegamos ao maior problema de todos os muitos e variados pepinos que Eddie tem que resolver: Baird Whitlock filmou algumas cenas de Ave, César!, na manhã daquele dia – e aí simplesmente desapareceu.

Estaria o grande astro – e igualmente grande namorador e bebedor de uísque – em um dos bares que costumava frequentar? Estaria com alguma amante em um dos bons hotéis da cidade?

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O astro é sequestrado por um grande bando de roteiristas comunistas!

O espectador fica sabendo onde está Baird Whitlock antes mesmo de Eddie Mannix. Ele foi sequestrado!

Nós vemos a cena: durante as filmagens do épico Ave, César!, ali mesmo no set, um extra coloca alguma coisa num cálice que será usado por Baird Whitlock-Autochlus Antonius. O ator bebe um tanto da coisa, e daí a pouco desmaia em seu trailer-camarim. De onde é retirado, em sono profundíssimo, pelo tal extra e mais um assecla.

Desperta horas mais tarde, inteiramente zonzo, sonso, numa mansão extraordinária, num ponto elevado na praia de Malibu, com uma vista fantástica para o Oceano Pacífico.

Foi sequestrado… por um grande grupo de roteiristas comunistas!

Os roteiristas comunistas enviarão mensagens com pedidos de resgate à Capitol Pictures: em troca de Baird Whitlock, pedem a fortuna de US$ 150 mil. Para investir na causa, é claro – não para o enriquecimento deles mesmos, porque os comunistas, naturalmente, são desprendidos, altruístas.

Os roteiristas comunistas são interpretados por Max Baker, Fisher Stevens, Patrick Fischler, Tom Musgrave, David Krumholtz, Greg Baldwin, Patrick Carroll e Fred Melamed. Junto deles está um expert europeu, o professor Marcuse (John Bluthal). Na casa há um cachorrinho de estimação, cujo nome é Engels. Engels irá protagonizar uma das melhores piadas do filme, bem no final da narrativa – mas descrevê-la seria spoiler imperdoável.

Marcuse! Engels!

O fato é que os roteiristas comunistas são a coisa mais malucamente divertida deste filme malucamente divertido.

Eles falam aquelas frases feitas, aquele marxismo-leninismo ginasiano, sobre as massas exploradas, a propriedade privada dos meios de produção, o capitalismo decadente.

Falam essas frases o tempo todo, sem parar, na casa milionária num dos lugares mais caros, mais exclusivos dos Estados Unidos da América.

Baird Whitlock, que é naturalmente um sujeito zonzo, sonso, vai ser convertido à causa pelos seus sequestradores, os roteiristas comunistas. Uma fantástica síndrome de Estocolmo-Moscou.

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Só mesmo os irmãos Coen para ter a ousadia de rir daquele período de horror

Só mesmo os irmãos Coen, essa dupla que faz da irreverência total a base de seus filmes, poderiam imaginar uma história em que muitos dos roteiristas de Hollywood são comunistas e sequestram um grande ator para recolher fundos para entregar aos companheiros da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Naqueles anos 1950 em que acontece a ação do filme, em plena Guerra Fria, os Estados Unidos passaram por um dos períodos mais terríveis, mais tristes, mais tenebrosos de sua História – os tempos do macarthismo, da caça às bruxas, da paranóia em que se enxergavam comunistas em todos os lugares possíveis e imagináveis, até mesmo dentro da Casa Branca.

O período de trevas foi atiçado pelo senador Joseph McCarthy, republicano do Wisconsin, que liderou uma campanha de medo da influência dos comunistas sobre as instituições americanas, e foi um dos responsáveis pela criação do grotesco Comitê do Congresso sobre as Atividades Anti-Americanas – HUAC, House Un-American Activities Committee.

Entre 1950 e 1956, milhares de americanos foram acusados de serem comunistas ou simpatizantes do comunismo, e se tornaram alvo de investigações agressivas e interrogatórios em audiências no Congresso. A caça às bruxas se voltou primeiro contra funcionários da própria máquina governamental, contra as pessoas do show business em geral, educadores e sindicalistas.

Em Hollywood, dezenas e dezenas de profissionais – roteiristas, diretores, atores – foram colocados numa lista negra, e os estúdios eram forçados a não dar emprego para quem estivesse nela.

O horror dos horrores. Uma época em que – teoricamente para combater o totalitarismo – os Estados Unidos mergulharam num estágio de falta de liberdade bem próximo dos estados totalitários.

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O mundo do cinema, em especial, se dividiu entre bons e maus

Me estendi talvez até demais na lembrança do macarthismo, mas é fundamental ter isso em mente para compreender como é ousada a sátira feita pelos irmãos Coen neste Ave, César!

Desde os anos 50, a intelectualidade americana, a gente do cinema, da música, do teatro, os artistas de maneira geral, é dividida entre os que foram perseguidos pelo macarthismo, os que lutaram contra ele – os bons, os heróis – e os que colaboraram, os que denunciaram colegas, os que entregaram nomes – os maus, os covardes.

Bem semelhante ao que ocorreu na França do pós-guerra – a divisão entre os resistentes e os colaboracionistas.

O passar dos anos, das décadas, não fez desaparecer esse apartheid entre os dois grupos. Em 1999, mais de 40 anos depois do fim do macarthismo, da caça às bruxas, da lista negra, a Academia premiou Elia Kazan com um Oscar honorário “em apreciação por uma carreira longa, diferenciada e sem paralelo, durante a qual influenciou a própria natureza da produção de filme através da criação de obras-primas cinematográficas”. Elia Kazan havia colaborado com o Comitê, e, por isso, houve protestos diante do teatro, antes do início da cerimônia – e, lá dentro, diversos artistas não aplaudiram nem ficaram de pé quando Martin Scorsese e Robert De Niro entregaram a honraria para o grande realizador, um dos maiores que já houve na História.

Então, botar num filme agora que diversos roteiristas eram de fato comunistas é uma ousadia imensa.

É a mais pura verdade dos fatos – mas, nos tempos do politicamente correto, mostrar a verdade, e fazer o público rir com ela, gargalhar dela, não é algo que possa ser bem recebido pelos que se dizem “de esquerda”, e portanto paladinos do Bem, os representantes do Povo, os únicos que podem falar em nome dos pobres e dos oprimidos.

Acredito mesmo que o filme não tenha sido muito bem recebido por diversos críticos, mundo afora, por causa disso. Mas isso é apenas um chute, um palpite. Não tenho elementos para confirmar.

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Eddie Mannix, The Fixer, existiu de fato – e foi suspeito de vários crimes

Como é um filme sobre o cinema, sobre Hollywood, sobre a produção de filmes, sobre gente de cinema, mais que nunca é interessante ver as informações da página de Trivia do IMDb.

Ela revela, para começo de conversa, que o protagonista da história, o chefão da Capitol Pictures, esse incansável Eddie Mannix, o fixer, o faz-tudo, existiu de fato! Claro que eu não sabia disso quando vimos o filme.

Chamava-se Edgard Joseph Mannix (1891-1963), e entrou para a História de Hollywood como E.J. Mannix, ou então Eddie, ou The Bulldog, ou The Fixer – apelidos dados a ele porque, como executivo da MGM durante muitos anos, sob as ordens diretas de Louis B. Mayer, resolvia problemas dos empregados do estúdio ou causados por eles – inclusive, ou principalmente, os que envolviam as grandes estrelas.

Há as mais diferentes suspeitas sobre o passado de E.J. Mannix em sua juventude em Nova Jersey – e também as mais diferentes suspeitas sobre algumas de suas atividades depois que se radicou na Costa Oeste. Falava-se que tinha ligações com o crime organizado – quer dizer, a Máfia. Houve suspeitas de que ele tivesse assassinado sua primeira mulher, Bernice, em 1938, montando uma cena de acidente automobilístico. Houve suspeitas de que ele tivesse alguma participação no assassinato de Paul Bern, o executivo da MGM casado com uma das grandes estrelas do estúdio, Jean Harlow, em 1932.

Mais ainda: houve suspeitas de que ele estivesse envolvido na morte do ator George Reeves, em 1959.

George Reeves se tornou famoso fazendo o papel central na série de TV As Aventuras do Super-Homem, que foi ao ar entre 1952 e 1958. E teve um longo caso – isso é dado da realidade, não é boato, possibilidade, suspeita – com Toni Lanier, a segunda mulher de E.J. Mannix. A morte de George Reeves, seu caso com Toni Lanier, as suspeitas sobre a participação de Mannix, tudo isso está no filme Hollywoodland – Bastidores da Fama (2006), em que Ben Affleck interpreta George Reeves, Diane Lane interpreta Toni Lanier e Bob Hoskins faz Eddie Mannix.

Nunca foi provado nenhum dos crimes que chegaram a ser atribuídos a Mannix. Ele jamais foi sequer acusado na Justiça por qualquer um deles, e morreu em Beverly Hills em 1963, aos 72 anos.

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Diversos personagens se baseiam em pessoas reais, como Carmen Miranda

Uma curiosidade: a atriz Diane Lane, que fez Toni Lanier em Hollywoodland, teve dois casamentos de papel passado. Entre 1988 e 1994, foi casada com Christopher Lambert, e, entre 2004 e 2013, com Josh Brolin.

Como já foi dito, Josh Brolin interpreta Eddie Mannix neste Ave, César! E Christopher Lambert interpreta o diretor sueco Arne Seslum, o que é tido como pai do bebê da estrela DeeAnna Moran.

O mundo é pequeno.

Não apenas o protagonista Eddie Mannix, mas também muitos outros dos personagens de Ave, César! são inspirados em figuras reais. DeeAnna Moran, a estrela dos musicais aquáticos, é certamente a mais óbvia de todas, porque, afinal de contas, só houve na história uma estrela de musicais aquáticos, Esther Williams.

Eis aí um quem é quem, um quem se baseia em quem, segundo o IMDb:

* DeeAnna Moran é baseada em Esther Williams, é claro. Mas – acrescenta o IMDb – a história envolvendo um filho de mãe solteira e etc se refere a Loretta Young. Eu não sabia dessa história.

* Baird Whitlock, o papel de George Clooney, se basearia em três legendários atores: Robert Taylor, Charlton Heston e Kirk Douglas, que estrelaram grandes épicos baseados – como Ave, César!, o filme dentro do filme – em histórias bíblicas, todas passadas mais ou menos na época em que Jesus Cristo viveu, respectivamente Quo Vadis (1951), Ben-Hur (1959) e Spartacus (1960).

Não concordo muito com isso. Acho Baird Whitlock mais canastrão e mais sonso, mais bobão, e menos talentoso que os três atores citados. Mas é claro que o IMDb sabe muito mais que eu.

* Laurence Lorentz, o diretor de cinema sofisticado e um tanto fresco deliciosamente interpretado por Ralph Fiennes, seria baseado em Vincente Minnelli.

De novo, não concordo muito. Minnelli, que foi marido de Judy Garland e é pai de Liza Minnelli, era sem dúvida refinado, sofisticado, mas para mim aquele Lorentz se parece mais com James Whale, ou talvez George Cukor, dois diretores sabidamente homossexuais.

* As irmãs jornalistas e rivais Thora e Thesaly Thacker (interpretadas por Tilda Swinton) seriam baseadas na famosérrima colunista de Hollywood Hedda Hopper, já citada neste texto.

* Carlota Valdez, uma atriz de cabelos negros que dança com frutas na cabeça (interpretada por Veronica Osorio) é, evidentemente, Carmen Miranda. Disso não há dúvida alguma. Interessante é lembrar que o nome escolhido para a atriz fictícia baseada em Carmen Miranda é bem conhecido pelos cinéfilos: Carlota Valdez é o nome de uma misteriosa mulher que teria vivido em San Francisco no século XIX, e que é bastante citada em Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958).

Essa Carlota Valdez aqui, que é Carmen Miranda, fala uma frase ótima para definir como é que faz para dançar de forma atraente diante das câmaras: “It’s all in the hips, the lips, and the eyes and the thighs”. Sem as rimas, perde bastante, mas seria “É tudo nos quadris, nos lábios, e nos olhos e nas coxas”.

* C.C. Calhoun – a montadora que é visitada lá pelas tantas por Eddie Mannix, para ele observar como estão ficando as tomadas de um dos filmes em produção no estúdio, e fuma sem parar, e quase é enforcada quando sua echarpe se prende no projetor – é uma homenagem a Margaret Booth, uma lendária montadora de Hollywood, honrada em 1978 com um Oscar honorário “por sua excepcional contribuição à arte de montagem na indústria cinematográfica”.

C.C. Calhoun é interpretada, numa participação mais que especial, pela fantástica Frances McDormand. Aliás, este é o oitavo filme dos irmãos Coen em que Frances McDormand trabalha. Aliás, Frances McDormand é a sra. Joel Coen.

* E, finalmente, para terminar o quem é quem segundo o que diz o IMDb, Burt Gurney (interpretado por Channing Tatum) seria baseado no coreógrafo, dançarino, ator de drama e comédia Gene Kelly.

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Os irmãos Coen gozam tudo – mas demonstram imenso respeito pelo cinema

Burt Gurney ainda não havia aparecido neste texto interminável. E, no entanto, ele é importante na trama. Na verdade, é um personagem importantíssimo, e protagoniza uma das sequências mais absolutamente hilariantes deste filme hilariante, já bem no final da narrativa. Como acontece bem no final, é óbvio que vou relatar aqui.

Basta dizer que Burt Gurney, o personagem que teria sido inspirado por Gene Kelly, aparece pela primeira vez numa sequência extraordinariamente bem encenada, que mostra a filmagem de uma sequência bastante longa e complexa de um musical da Capitol Pictures, “No Dames”.

É um musical passado durante a Segunda Guerra Mundial, que havia acabado poucos anos antes. Mostra um grande grupo de soldados da Marinha, em um bar, pouco antes de embarcar para o front de batalha.

Um dos marinheiros – o interpretado por Burt Gurney – é a principal figura do grande grupo. Ele é que canta a canção que fala que em breve eles estarão no mar, e não verão dames – damas, mulheres, garotas, os seres do sexo feminino.

O número musical que está sendo filmado, com Burt Gurney no centro das dezenas de atores-bailarinos interpretando marinheiros, é de extrema competência. Assim como é de extrema competência o número de musical aquático que estava sendo filmado com DeeAnna Moran que se inspira em Esther Williams com uma pitada da história pessoal de Loretta Young e que é interpretada pela estonteante Scarlett Johannson.

E é isso que mais fascina neste Ave, César! Os irmãos Coen satirizam, gozam, fazem piada com tudo, até com coisa séria, como ideologia e religião, não respeitam coisa alguma – a não ser o cinema. O cinema, ah, isso eles respeitam demais – e sabem fazer um número de musical aquático, ou um número de musical tradicional, com canto, sapateado, à la Gene Kelly, como se eles fosse, cacete, como se eles fossem Gene Kelly, Stanley Donen, Vincente Minnelli!

É de babar.

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A homenagem mais hilária que jamais foi ou será feita ao spaghetti-western

Nesse número de dança do grande grupo de marinheiros no bar, que remete de fato a Gene Kelly (em quantos filmes Gene Kelly dança com aquela farda branca de marinheiro, Jussara Osmond?), fiquei boquiaberto e de queixo caído com a atuação desse rapaz Channing Tatum.

(Para o eventual leitor que não reconheceu o nome, Jussara Osmond é uma das maiores especialistas em Gene Kelly que há no mundo. Eu me lembro de Gene Kelly com farda branca de marinheiro em Marujos do Amor/Anchors Aweigh, 1945, e Um Dia em Nova York/On the Town, 1949. A Jussara sabe todos.)

Channing Tatum é um jovem ator que, parece, desperta paixões entre as mulheres americanas. Pelo que eu tinha visto até então, era um sujeito grandalhão que tem tido papéis em filmes românticos com alta dosagem de açúcar, tipo Querido John/Dear John (2010), e em policiais, tipo Anti-Heróis/Sons of No One (2011). Bem, tinha tido também uma bela interpretação em Foxcatcher (2014).

Pois aqui ele canta e dança e sapateia como se tivesse tido muitas, muitas aulas com Frank Sinatra & Gene Kelly & Fred Astaire. Impressionante.

Há uma sequência especialmente deliciosa que é necessário registrar. O ator bom de westerns mas que não sabe interpretar nada fora de westerns, Hobie Doyle (o papel, repito, de Alden Ehrenreich), sai à noite para jantar com a bela estrela Carlota Valdez (Veronica Osorio). Os dois jovens atores, astros em ascensão, saírem juntos na noite, e serem vistos pelas colunistas de fofocas, é parte de uma ação de marketing arquitetada por Eddie Mannix. Mas os dois se dão bem, e conversam animadamente. Lá pelas tantas, Hobie Doyle pega um fio de espaguete e, na mesa, faz com ele belas acrobacias, como se o espaguete fosse uma corda com a qual ele, o eterno cowboy, iria laçar animais.

Nunca haverá outra homenagem mais engraçada que essa ao spaghetti-western!

Este texto já está grande demais, e em algum momento é preciso botar um ponto final. Que seja. Mas a verdade é que escrever sobre Ave, César! deu vontade de ver o filme de novo.

Anotação em setembro de 2016

Ave, César!/Hail, Caesar!

De Joel e Ethan Coen, EUA-Inglaterra-Japão, 2016.

Com Josh Brolin (Eddie Mannix), George Clooney (Baird Whitlock), Alden Ehrenreich (Hobie Doyle), Ralph Fiennes (Laurence Laurentz), Scarlett Johansson (DeeAnna Moran), Tilda Swinton (Thora Thacker / Thessaly Thacker), Channing Tatum (Burt Gurney), Frances McDormand (C.C. Calhoun), Jonah Hill (Joe Silverman), Veronica Osorio (Carlotta Valdez), Heather Goldenhersh (Natalie, a secretária), Alison Pill (Mrs. Mannix), Max Baker (o chefe dos roteiristas comunistas), Fisher Stevens (roteirista comunista), Patrick Fischler (roteirista comunista), Tom Musgrave (roteirista comunista), David Krumholtz (roteirista comunista), Greg Baldwin (roteirista comunista), Patrick Carroll (roteirista comunista), Fred Melamed (roteirista comunista), John Bluthal (Professor Marcuse), Alex Karpovsky (Mr. Smitrovich), Aramazd Stepanian (clérigo ortodoxo), Allan Havey (clérigo protestante), Robert Pike Daniel (clérigo católico), Robert Picardo (o rabino), Natasha Bassett (Gloria DeLamour),

Christopher Lambert (Arne Seslum) e a voz de Michael Gambon (o narrador)

Argumento e roteiro Joel e Ethan Coen

Fotografia Roger Deakins

Música Carter Burwell

Montagem Joel e Ethan Coen, sob o pseudônimo de Roderick Jaynes)

Produção Dentsu, Mike Zoss Productions, Working Title Films.

Cor, 106 min

***1/2