Paixão Proibida / Onegin

Nota: ★★★☆

Há carradas de histórias de amor trágicas, na arte e na vida real, e sempre houve, desde os clássicos gregos, 400 anos antes de Cristo, até os jornais de hoje ou ontem: amor que rima com extrema dor, morte, horror.

“Amor pirraça, Amor veneno, Amor cachaça, Amor debaixo d’água, Amor no meio dos infernos, Amor de meter susto ao padre eterno”, como cantou o zoólogo mais poeta do mundo, Paulo Vanzolini.

O amor de Fedra por Hipólito, de Julieta por Romeu.

Claro, há as histórias de amor felizes – mas essas não dão muito samba. Tango, então, jamais houve um sobre amor feliz. No cinema, não dá bilheteria.

E há as histórias de amor tristes. Uma das mais tristes de tantos milhões de histórias de amor tristes talvez seja a de Onegin e Tatiana.

Em Paixão Proibida/Onegin, co-produção Inglaterra-Estados Unidos de 1999, que teve estréia mundial na cidade em que se passa parte de sua ação, São Petersburgo, há uma sequência longa e linda, inquietente, poderosa: sozinha, perambulando por sua grande casa no campo russo, Tatiana, uma jovem bela como uma Primavera de Boticelli, se corrói de amor por Onegin.

Se fosse num filme de Nagisa Oshima, ou num de roteiro escrito por Joe Eszterhas, a sequência iria até o clímax óbvio em que Tatiana se masturbaria. Como aqui não tem Oshima nem Eszterhas, e esta é uma história de amor escrita por Alexander Sergueievitch Pushkin (1799-1837), não há obviedade: há uma tristeza profunda, infinita.

Bem mais tarde no filme, muitos anos depois na história, o mesmo Onegin está sentado atrás de Tatiana, em um salão dos aristocratas e muitíssimo ricos da capital imperial de todas as Rússias, enquanto uma cantora apresenta um trecho lírico no palco. Onegin não vê cantora, não ouve nada: seus olhos, seu desejo, sua vida toda está centrada nos ombros de Tatiana, na nuca de Tatiana, em todo o pouco que ele pode ver da pele de Tatiana.

Ao final da apresentação, ela se levanta para aplaudir, e deixa na cadeira o xale que usava. Rapidamente, Onegin pega o xale, oferece a ela – que recusa, porque não sente necessidade de usar o xale naquele momento, e porque não quer nada, absolutamente nada que tenha a ver com aquele homem.

E então Onegin – horror absoluto, humilhação suprema – pega o xale que recobriu os ombros da mulher que ele um dia desprezou, leva-o até o nariz, e inspira o ar que vem dali como o mais tresloucado viciado inspiraria um pó depois de anos de abstinência.

Uma realização dos Fiennes – e são muitos os Fiennes que fizeram o filme

Paixão Proibida/Onegin é uma realização dos Fiennes – os filhos de Jennifer Anne Mary Alleyne, uma escritora, e Mark Fiennes, um fotógrafo. Ralph Fiennes, o filho mais velho e o mais famoso de todos os seis do casal, 36 prêmios, fora outras 102 indicações, inclusive duas ao Oscar (por A Lista de Schindler e O Paciente Inglês), faz o papel central, o de Eugene Onegin. E é também um dos produtores executivos.

Sua irmã Martha dirigiu o filme – e dirigiu, na minha opinião, com a segurança e a tranquilidade de uma realizadora experiente, madura, embora tenha sido seu primeiro longa-metragem como diretora, e ela tenha dirigido apenas dois outros filmes depois deste aqui.

E outro irmão, Magnus Fiennes, escreveu a trilha sonora – uma bela trilha, em que ele conseguiu botar muito da sonoridade da música russa mais antiga, mais tradicional. O tema apresentado nos créditos finais (como é usual nas últimas décadas, o filme não tem créditos iniciais) é belíssimo, impressionante.

Como se não bastasse, participaram ainda da produção do filme outra irmã, Sophie Fiennes, mais o marido de Martha, George Tiffin, e a mulher do compositor Magnus, Maya Fiennes.

É Fiennes a dar com o pau, num filme de tristeza a dar com o pau.

Acho isso fascinante, o envolvimento de toda a família com o projeto de filmar a história criada por Pushkin. E é igualmente fascinante lembrar que Ralph Fiennes, esse ator extraordinário, em sua carreira como diretor bissexto, fez uma adaptação de Shakespeare (Coriolano, 2001) e um retrato de parte da vida de Charles Dickens (O Nosso Segredo/The Invisible Woman, 2013). Um artista, filho de gente do mundo da arte, que obviamente é apaixonado pela literatura.

Eugene Onegin é a obra que deu origem à literatura russa que viria depois

No longo, rico texto sobre Eugene Onegin, a novela em versos escrita por Alexander Sergueievitch Pushkin e lançada em 1833, a Wikipedia diz que “a versão cinematográfica foi criticada por diversos erros e inconsistências”.

Nenhuma versão de Eugene Onegin para o cinema deixaria de ser criticada. Se eventualmente Orson Welles e Federico Fellini – dois dos mais idolatrados realizadores de todos os tempos, além de exímios marqueteiros de si mesmos – se unissem para fazer uma versão de Eugene Onegin, sempre haveria quem descesse a lenha.

Porque Eugene Onegin é a obra tida unanimemente como a que deu origem à literatura russa que viria a partir daí – e isso se refere simplesmente, apenas e tão somente, a Tolstói, Dostoiévski, Turguéniev, Tchekhov e depois Pasternak, para citar apenas alguns dos maiores escritores de todos os tempos.

“O maior poeta russo, Alexander Pushkin foi também o fundador da literatura moderna de seu país”, diz a augusta Encyclopaedia Britannica. “Seu uso da linguagem, assombroso em sua simplicidade e profundidade, formou a base do estilo dos novelistas Ivan Turgueniev, Ivan Goncharov e Liev Tolstói. Sua novela em versos Eugene Onegin, a primeira obra russa a tomar a sociedade contemporânea como tema, apontou o caminho da novela realista russa do século XIX.”

(Um esclarecimento, ou, no mínimo, uma tentativa de esclarecimento: procuro usar a grafia dos nomes russos na passagem para o português, deixando de lado a grafia usada em inglês, totalmente diferente, em que o nome da obra, por exemplo, é Yevgeny Onegin, e o do autor, Aleksandr Sergeyevich Pushkin. Mas também deixo de lado a grafia mais rigorosamente portuguesa usada em Portugal, por achá-la feia demais – Púchkin, Moscovo. Ai também é demais.)

 O romance em versos virou ópera, bailados – mas poucos filmes

Eugene Onegin, a obra de Pushkin, foi transformada em ópera por Tchaikovski, em 1879, e ela viria a ficar famosérrima, com apresentações nas grandes capitais européias e depois com diversas gravações em disco.

Vários balés foram criados a partir da ópera.

O ator e dramaturgo inglês Christopher Webber se baseou na obra de Pushkin para criar a peça Tatyana, que estreou em Londres em 1989.

Para o cinema, no entanto, as adaptações não foram muitas – e nenhuma delas foi um grande sucesso de público e/ou de crítica.

A primeira versão cinematográfica veio em 1911 – uma produção russa, com o título de Eugene Onegin, dirigida por Vassili Goncharov.

Os alemães fizeram um Eugene Onegin em 1919, com direção de Alfred Halm.

Em 1958 houve Eugene Onegin feito na Rússia soviética, com direção de Roman Tikhomirov, mas era uma versão para o cinema da ópera de Tchaikovski, e não uma adaptação do romance em versos.

Em 1972 houve um filme musical Eugene Onegin feito na Alemanha.

Em 1988 houve nova adaptação da ópera de Tchaikovski, feito na Inglaterra, com direção de Petr Weigl. E em 1994 os ingleses fizeram nova adaptação da ópera em filme feito para a TV, com direção de Humphrey Burton.

Esta versão de Martha Fiennes com Ralph Fiennes e trilha de Magnus Fiennes é a terceira adaptação diretamente da obra literária original para o cinema – deixando de lado as adaptações da ópera. E a primeira desde que o cinema aprendeu a falar, em 1927.

Onegin conhece Tatiana, moça lindíssima, leitora vorar – mas não cai de quatro por ela

Ralph Fiennes é sem dúvida alguma um grande ator, e fez um excelente Eugene Onegin – um rapaz endinheirado, que vivia no meio da alta sociedade de São Petersburgo, a capital da Rússia czarista, na primeira metade do século XIX, um tanto entediado com aquela existência de muitas festas, muitos concertos e óperas, muita bebida, muita comida, muita fartura de tudo.

Mas um dos grandes acertos do filme, uma de suas maiores qualidades, foi a escolha da atriz que faz Tatiana, a outra personagem central desta história de amor triste demais. Liv Tyler estava com 21 aninhos durante as filmagens, em 1988, e meu Deus do céu e também da terra, como era bela!

A câmara de Martha Fiennes e do diretor de fotografia inglês Remi Adefarasin baba, simplesmente baba por Liv Tyler. Quase se derrete diante da beleza de Liv Tyler.

Quando a ação do filme começa, Eugene Onegin está viajando com seu valet em uma carruagem-trenó por uma imensidão sem fim de terra coberta de neve. Vem de São Petersburgo, vai para as remotas e amplas terras pertencentes a seu tio, irmão de seu pai, que, muito doente, havia mandado chamá-lo.

Chega tarde demais: o tio acabara de morrer.

Não tinha filhos. No testamento, deixa tudo para seu único sobrinho. Como Pietr Bezukhov em Guerra e Paz, que Liev Tolstói terminaria de publicar em 1869, 36 anos portanto depois de Eugene Onegin, o protagonista da história criada por Pushkin fica podre de rico com a herança.

O espectador ouve o notário ler o testamento que enumera os bens. Fazendas, lagos, casas e mais casas, 500 vassalos…

Ao contrário do que se poderia esperar, Onegin não volta logo para as festas e o luxo de São Peterburgo. Enfadado com aquilo tudo, deixa-se ficar na magnífica propriedade do tio. Um dia qualquer, passeando pelos campos que agora eram dele, surpreende-se com um jovem que canta a plenos pulmões um trecho de Schubert, se não estou enganado. É um vizinho da propriedade que herdou, chama-se Vladimir Lensky (Toby Stephens, na foto acima), é jovem, jovial, cheio de vida, lê muito, escreve versos. Tornam-se amigos.

Lensky convida Onegin para ir com ele à casa de sua namorada, Olga (Lena Headey), que mora numa propriedade da região. Onegin aceita o convite, fica conhecendo Olga, sua mãe, Madame Larina (Harriet Walter) e sua irmã mais jovem, Tatiana.

Na verdade, Onegin já havia visto Tatiana uma vez, bem de longe. Estava junto a uma janela, na sede da fazenda do tio, uma casa ampla, maravilhosa, quando viu a governanta conversando com uma moça. Depois, perguntou à serviçal quem era ela, e foi informado de que era uma vizinha que vinha às vezes conversar com o Onegin tio, e pegar um livro dele emprestado. O Onegin tio era um homem de muita leitura, possuía uma vastíssima biblioteca.

Onegin sobrinho ficará encantado com a beleza da moça do campo que gosta de ler romances. Mas, sujeito chato que nem gato de hotel, cheio de tédio, enfado, não se apaixona, não cai de quatro diante daquele monumento.

A vida imita a arte. Pushkin escreveu um duelo – e depois morreu por um duelo

Há momentos deste Paixão Proibida/Onegin que nos fazem pensar que a vida dos muito ricos no interior do Império Russo não era assim tão diferente da vida dos muito ricos no interior inglês, o centro do Império Britânico, conforme a descrevem tantos livros clássicos e tantos filmes baseados neles.

De fato, há momentos em que Onegin e Tatiana não parecem tão  diferentes assim de Elizabeth e Mr. Darcy de Orgulho e Paixão de Jane Austen.

Os personagens de Paixão Proibida/Onegin liam principalmente os autores franceses, muito mais que os ingleses. As pessoas da alta sociedade da Rússia ao longo do século XIX, conforme mostra a literatura, aprendiam francês desde sempre, copiavam muito da cultura francesa, liam o que se escrevia na França.

Com o próprio Pushkin, filho de gente rica da aristocracia, foi assim: aprendeu francês desde cedo. Por sua boa educação, conseguiu um emprego no Ministério de Relações Exteriores, e frequentou – assim como sua criatura Eugene Onegin – os grandes salões da sociedade de São Petersburgo. Mas cedo também enamorou-se por idéias progressistas demais para os padrões do império dos czares, e acabou sendo exilado para o Cáucaso e a Criméia, no extremo Sul do Império Russo.

Foi lá que passou a ler a poesia romântica de Lord Byron (1788-1824), uma das grandes inspirações para suas obras.

Pushkin morreria jovem demais, com apenas 37 anos, devido a um ferimento de bala recebido em um duelo com um sujeito que tentou seduzir sua mulher, Natalia.

A vida imita a arte, a arte imita a vida: em Eugene Onegin há um duelo, pedido por um homem que se sentiu ofendido em sua honra por um comentário feito a respeito da mulher amada.

Acho isso absolutamente incrível: no romance em versos que concluiu em 1833, Pushkin criou um duelo por uma questão de honra envolvendo uma mulher amada. O destino o faria morrer em 1837 dois dias depois de um duelo por uma questão de honra envolvendo uma mulher amada.

No filme, a sequência do duelo é bastante longa – e de uma terrível, dolorosa beleza visual.

“Nunca houve uma literatura mais tempestuosa e apaixonada quanto a russa do século XIX”

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme, que chama de “história de amor visualmente bela, dirigida com sensibilidade”. Explica que se baseia na obra de Pushkin passada em São Petersburgo dos anos 1820, elogia os “muitos toques agradáveis, sutis” – mas afirma que Liv Tyler não foi uma boa escolha para o papel.

E não justifica essa sua afirmação – algo que eu simplesmente não consigo compreender.

Já Roger Ebert…

Roger Ebert é o que há.

Eis como o grande crítico que amava ver filmes e amava ver qualidades nos filmes que via começa seu longo texto sobre Onegin:

“Onegin é um homem perplexo com sua própria inutilidade. Ele foi cuidadosamente preparado por sua educação aristocrática do século XIX para ser desnecessário – um homem de fora, que fica de longe observando a vida dos outros. Mesmo quando é dada a ele a oportunidade de desempenhar um papel, depois que ele herda a propriedade de seu tio, sua reação é alugar a terra a seus vassalos. Se fosse com um outro homem, seria liberalismo. Com Evgeny Onegin, é mais indiferença.

“Onegin é uma versão suave, elegante, distante da novela épica em versos de Alexander Pushkin, com Ralph Fiennes como o herói. É o tipo de papel que seria automaticamente oferecido a Jeremy Irons. (…) ‘Eu não sou do tipo feito para o amor e o casamento’, o Onegin de Fiennes diz, de forma comovente.”

Mais para o final do texto, Ebert diz:

“Há uma elegância suave, rebuscada, neste filme de que eu gosto, mas ele é morto no seu centro. Não há uma sensação de que sentimentos reais correm risco aqui. (Liv) Tyler parece sincera o bastante, mas Fiennes se retém demais. E a direção, de sua irmã Martha Fiennes, é deliberada e distante quando deveria mergulhar na história. O visual é excelente, mas o drama é silenciado.”

Não concordo com isso, não: acho que o drama está todo lá, os sentimentos, as sensações estão todas lá. Mas é uma delícia ver a forma com que Ebert trata os filmes que vê com respeito.

“Há uma tendência a embalsamar os clássicos, mas nunca houve uma literatura mais tempestuosa e apaixonada quanto a russa do século XIX. Os personagens pulam alegremente das páginas de Pushkin, Dostoiéviski e Tolstói, o coração à vista de todos, divididos entre os professores franceses que ensinaram a eles boas maneiras, e a terra em que aprenderam paixão – respiraram paixão, absorveram ainda no útero. Eu sei que Eugene Onegin é uma obra-prima, mas a história que ele conta é melodrama romântico, e requer um pouco do mesmo entusiasmo de novela que há no Dr. Jivago de David Lean. Este filme tem o mesmo problema de seu herói: suas maneiras são tão boas que ele não sabe o que ele na verdade sente.”

De novo, não concordo – mas o jeito de Ebert expressar sua opinião, tão diferente da minha, é uma maravilha.

Para mim, Paixão Proibida/Onegin é um belo filme. Uma bela maneira de conhecer um pouco da obra-prima de Pushkin.

E aqui vai um detalhe absolutamente precioso sobre a penúltima sequência deste filme rodado em parte lá mesmo, em São Petersburgo. O detalhe é revelado no IMDb – e não chega a ser um spoiler.

Naquela que é exatamente a penúltima sequência do filme, em que Onegin aparece na varanda de sua casa em São Petersburgo, num inverno rigorosíssimo, um copo de vodca à sua frente, o espectador pode ver, do outro lado da rua, um belo prédio. É o prédio em que morou Alexander Sergueievitch Pushkin.

Anotação em novembro de 2017

Paixão Proibida/Onegin

De Martha Fiennes, Inglaterra-EUA, 1999

Com Ralph Fiennes (Eugene Onegin), Liv Tyler (Tatiana)

e Toby Stephens (Vladimir Lensky), Lena Headey (Olga, a irmã de Tatiana), Martin Donovan (príncipe Nikitin), Alun Armstrong (Zaretsky), Simon McBurney (Triquet), Harriet Walter (Madame Larina, a mãe de Tatiana e Olga), Jason Watkins (Guillot), Irene Worth (princesa Alina), Gwenllian Davies (Anisia), Margery Withers (Nanya), Geoffrey McGivern (Andrey Petrovitch)

Roteiro Peter Ettedgul e Michael Ignatieff

Baseado na novela-poema de Alexander Sergueievitch Pushkin

Fotografia Remi Adefarasin

Música Magnus Fiennes

Montagem Jim Clark

Casting Mary Selway

Produção 7 Arts International, Baby Productions, CanWest, Global Television Network, Rysher Entertainment, Starz!. DVD Alpha Filmes.

Cor, 106 min (1h46)

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