Anestesia / Anesthesia

Nota: ★★★☆

Anestesia é um belo, sensível drama sobre opções, as escolhas que podemos fazer – e sobre como a vida a cada momento passa por cima de nós e de nossos planos, sem que possamos fazer nada para evitar isso.

Hum… Parece meio papo-cabeça? Pode parecer, sim – e o filme que o ator e aqui e ali diretor Tim Blake Nelson escreveu e dirigiu tem um tanto de papo-cabeça, de fato. Não à toa o personagem central da história, Walter – interpretado pelo ótimo Sam Waterston – é um professor de Filosofia numa universidade de Nova York.

É uma história de muitos personagens. Nos créditos iniciais, são mostrados os nomes, em ordem alfabética pelo sobrenome, de nada menos que 12 atores – e em seguida aparecem mais cinco duplas de nomes.

Vinte e dois atores – e só depois vem o letreiro “em um filme de Tim Blake Nelson”.

Vinte e dois personagens, interpretados por alguns atores bastante famosos, como Glenn Close e Kristen Stewart, outros nem tanto assim, como o próprio Sam Waterston e mesmo Tim Blake Nelson, e outros bem pouco conhecidos no Brasil, como Corey Stoll e Rob Morgan.

Vinte e dois personagens: quando o filme está aí com uns 10, 15 minutos, a sensação que se tem é de que estamos diante de uma daquelas obras tipo mosaico, à la Short Cuts (1993) de Robert Altman, ou, em linguagem de crítico de cinema, estrutura multiplot.

Em parte, é, sim, um mosaico, uma história com diversos personagens, diversas subtramas. Mas a trama criada por Tim Blake Nelson – com imaginação, talento, cuidado de ourives – a rigor gira em torno do professor Walter Zarrow. Todos os demais muitos personagens estão, de uma forma ou outra, ligados a ele. Ou estão, ou passam a ficar ligados a ele.

O veterano professor decide se aposentar. Uma semana depois, é esfaqueado na rua

Após 34 anos dando aula de Filosofia, o professor Walter toma a decisão de se aposentar. Conta a decisão para a mulher, Marcia (o papel de Glenn Close), numa noite de sexta-feira, em que, voltando para casa, no elegante Upper West Side de Manhattan, encontra-se com ela na rua – Marcia tinha decidido sair para comprar um chocolate.

E aí, enquanto caminham pelas calçadas de seu bairro à noite, ele revela sua decisão. Marcia fica surpresa – o marido nunca havia mencionado nada a respeito de aposentadoria antes.

– “E o que você vai fazer?” – ela pergunta.

Ele responde, sorridente, feliz, que vai passar a acordar a cada dia sem saber o que irá fazer. Que decidirá a cada dia o que vai fazer.

Uma semana depois Walter é vítima de um ataque de um homem armado de uma faca, cai no chão perdendo muito sangue, fica entre a vida e a morte.

Antes de morrer baleado por um idiota em uma calçada de Manhattan, John Lennon escreveu que “life is what happens to you while you’re busy making other plans”. Um de seus versos mais belos – talvez o mais belo que ele escreveu nos parcos 40 anos que lhe deram para viver. A vida é o que acontece com você enquanto você está ocupado fazendo outros planos.

Não cometi um spoiler. O professor Walter é esfaqueado na segunda sequência do filme, antes que se passem os cinco primeiros minutos.

O autor e diretor Tim Blake Nelson usa de forma primorosa o esquema da narrativa-laço

Tim Blake Nelson construiu o roteiro do seu filme seguindo a estrutura que chamo de narrativa-laço – aquela que começa com um fato acontecido agora há pouco, e depois volta para o passado, e aí vem vindo na ordem cronológica, até atingir o ponto inicial e avançar um pouco mais. Algo assim como mostrar o que acontece aos 42 minutos do segundo tempo de um jogo de futebol – um lance muito importante, impactante, um pênalti, por exemplo –, e aí dar um corte, e voltar para o início do jogo, mostrar todo o desenrolar da partida, até aquele ponto já visto na abertura, e prosseguir até o apito final.

É bem grande o número de filmes que usam esse tipo de coisa. A maneira com que Tim Blake Nelson usou o esquema de narrativa-laço neste Anestesia, no entanto, é primoroso.

A primeira tomada mostra o rosto de Sam Waterston-professor Walter chegando a uma esquina. A câmara pega o rosto dele em close-up. Então o farol abre, a câmara mostra Walter se distanciando dela, atravessando a rua – e a câmara fica parada, estática, estátua. Tudo o que a câmara mostra está um tanto distante, na esquina do outro lado.

Diante da câmara, do outro lado da rua, há uma banca de flores. Logo atrás dela, dando de frente para a rua que fica à direita da câmara, há um bar, pequeno mercado, algo assim.

O rapaz da banca de flores diz: – “O senhor está um pouco atrasado.”

Walter diz para ele que, durante todos aqueles anos, jamais havia dito o seu próprio nome. E revela enfim que é Walter, e diz que gostaria que o rapaz a partir de então passasse a chamá-lo pelo nome. O rapaz se levanta e também se apresenta: – “Inácio!”

Walter encomenda hortênsias e entra no mercadinho, ou bar, ou o que seja – o espectador não sabe o que é, porque a câmara permanece absolutamente estática, paradona, do outro lado da rua.

É nesse momento – enquanto Walter desaparece da vista da câmara, e Inácio prepara o buquê de hortênsias, e algumas pessoas trafegam à direita da tela, na rua que faz esquina com essa em que a câmara está fixada – que começam a rolar os nomes dos atores.

Doze nomes de atores! E em seguida vêm as cinco duplas de outros nomes, antes de vermos que este é um filme de Tim Blake Nelson.

E então, logo após o letreiro “em um filme de Tim Blake Nelson”, a tela fica inteiramente negra.

“Entreguem essas flores para minha mulher, ela se chama Marcia”

Toca o interfone em um apartamento – está tudo escuro no quarto. A mulher se levanta, acende uma luz, vai até o interfone. Uma voz de homem grita por socorro. No apartamento, o homem diz que pode ser uma armadilha. A mulher ouve novo grito por ajuda, aperta o botão que abre a porta externa do prédio, e manda o homem descer para ver o que está acontecendo.

O homem põe as calças às pressas. Veremos depois que ele se chama Sam, e é o papel de Corey Stoll, aquele ator de uns 45 anos, careca, que na série House of Cards interpretou Peter Russo, o deputado bêbado e drogado. Sam desce as escadas correndo, e, quando chega ao hall de entrada do prédio, encontra caído no chão, no meio de uma poça de sangue, um homem que ele jamais havia visto, mas que o espectador já conhecia desde a primeira tomada do filme, o professor Walter.

Outros moradores do prédio chegam até o hall de entrada. Já ligaram para a emergência, polícia e ambulância estão para chegar.

Sam se abaixa até ficar bem perto do rosto de Walter.

Walter, com imensa dificuldade, consegue articular algumas frases: entreguem essas flores para minha mulher, ela se chama Marcia.

A voz dele fica muito fraca. Sam se abaixa ainda mais – a câmara mostra o rosto de Sam, tentando ouvir o que poderiam ser as últimas palavras que o professor Walter pronunciaria na vida.

Corta. Câmara do lado de fora do prédio, policiais chegando – surge na tela o título do filme, Anesthesia.

Um momento de tela negra. O espectador não precisa saber, mas isso se chama fade out.

Nova sequência: o professor Walter está se dirigindo à sua grande classe – e portanto está absolutamente claro que voltamos no tempo, tivemos um flashback, vamos ver o que aconteceu antes daquele momento em que ele foi esfaqueado e caiu perdendo sangue no hall de um prédio que não era o seu.

Para aquele monte de alunos, o professor Walter está dizendo:

– “Um pensador anterior a Darwin se atreveu a sugerir que uma análise objetiva do que significa viver como um ser humano, um ser pensante e consciente, cuja trajetória é unicamente rumo ao túmulo…”

Aos poucos, vamos conhecendo os diversos personagens, todos ligados a Walter

A partir daí, vamos conhecendo os demais personagens da história.

* Adam (o papel do próprio autor e diretor Tim Blake Nelson, na foto acima) é o filho único do casal Walter e Marcia Zarrow. Na primeira vez que o vemos, ele está conversando com o pai e contando que acabaram de saber que sua mulher, Jill (Jessica Hecht), está com um quisto.

* Adam e Jill têm dois filhos adolescentes, Ella e Hal (Hannah Marks e Ben Konigsberg). Dão-se bem, embora de um jeito esquisito – afinal, são adolescentes. Fumam maconha juntos, várias vezes ao dia, e contam um para o outro como vão indo os respectivos namoros. São virgens ainda, e doidinhos para deixar de ser, claro. Cada um reagirá de um jeito à notícia da doença da mãe.

* Sarah (a bela Gretchen Mol) é uma mulher rica e profundamente chata. O marido, Sam – o homem que vemos tentando socorrer Walter –  ficou rico, e Sarah parou de trabalhar; quis sair de Manhattan, mudou-se para uma cidade pequena de Nova Jersey, e tem vida de dondoca: suas únicas tarefas são levar as duas filhas jovens para a escola e depois buscá-las. Como desconfia de que Sam a está traindo, e, embora rica, tem uma vida miserável, enche a cara.

* Sam de fato trai Sarah. Sua amante se chama Nicole (Mickey Summer), e é no prédio dela que, ao ser atacado na rua, Walter tenta entrar, acionando os botões do porteiro eletrônico.

* Walter está dedicando uma parte de seu tempo a Sophie, uma aluna especialmente brilhante – mas especialmente sofrida, amargurada, que não vê sentido na existência e adquiriu o hábito de se queimar com secador de cabelo. Sophie é interpretada por Kristen Stewart, essa moça que fez um sucesso espetacular na série Crepúsculo e parece fazer cinco filmes por ano. Sophie aceita consultar uma psiquiatra, mas pede que o veterano professor a acompanhe, para dar força. (A psiquiatra é interpretada por Lisa Benavides-Nelson, a mulher de Tim Blake Nelson na vida real.)

* O espectador demora bastante para saber por que Jeffrey e Parnell, dois amigos de infância (interpretados por Michael K. Williams e Rob Morgan), entram na história. São dois homens completamente diferentes um do outro. Parnell se deu muito bem na vida, é um advogado bem sucedido e bastante rico; Jeffrey, bem ao contrário, é um desajustado, um sujeito completamente perdido, que vive para ficar chapado de crack na veia.

Quando vemos Jeffrey e Parnell pela primeira vez, este último está tentando de todas as maneiras convencer o amigo a se internar para um período de desintoxicação.

Não há qualquer tipo de menção a isso, mas o espectador tem todo o direito de inferir que aqueles dois homens não são apenas amigos de infância, mas também amantes.

O elo entre Jeffrey e Walter só é revelado bem ao final da narrativa.

Este é o sétimo filme com roteiro de Tim Blake Nelso, e o sexto como diretor

Confesso que não sabia que Tim Blake Nelson tem já vários títulos na sua filmografia como escritor e diretor. Eu o conhecia apenas como ator – é impossível não lembrar dele em E aí, Meu Irmão, Cadê Você? (2000), a comédia impagável, hilariante dos irmãos Coen, em que ele interpreta um dos três protagonistas que escapam da prisão no Sul Profundo dos Estados Unidos durante a Grande Depressão, ao lado de George Clooney e John Turturro.

Ator em mais de 70 filmes e séries, Tim Blake Nelson tem sete títulos na sua filmografia como roteirista. E este Anestesia é seu sexto filme como diretor.

Não deixar para depois, porque depois pode ser tarde demais

Opções que a gente toma na vida.

Uma das frases mais brilhantes que já li fala de opções, escolhas:

“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”

Os personagens de Anestesia são, em sua grande maioria, ricos, desfrutam de todos os confortos materiais possíveis. E, diferentemente de Graciliano Ramos, o autor da maravilha citada acima, não lutam contra a ordem social vigente nem ganham o pão com o ofício da escrita, e portanto o espaço de que dispõem para se mexer é imenso.

Mesmo assim, muitas vezes optam pelo lado errado, pelo pior – como Jeffrey e Sarah pelo mergulho na droga, Sophie pelo mergulho na dor física, os irmãos adolescentes Ella e Hal por maconha em excesso.

Alguns deles acabarão, ao longo do filme, optando por lutar contra os vícios, lutar contra a própria opção pela infelicidade.

Walter opta finalmente por parar de trabalhar, para aproveitar melhor o tempo que lhe resta. “Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá”, cito, já que sou mesmo um citador inveterado.

Talvez Tim Blake Nelson tenha querido dizer, com este belo filme, que a gente deveria tentar fazer as opções corretas o quanto antes. Não deixar para depois, porque depois pode ser tarde demais.

Anotação em novembro de 2018

Anestesia/Anesthesia

De Tim Blake Nelson, EUA, 2015

Com (em ordem alfabética pelo sobrenome) Glenn Close (Marcia, a mulher de Walter), K. Todd Freeman (Joe, o drogado da rua), Jessica Hecht (Jill, a mulher de Adam), Gretchen Mol (Sarah, a mulher de Sam), Tim Blake Nelson (Adam, o filho de Walter), Gloria Reuben (Meredith, a amiga de Sarah), Kristen Stewart (Sophie, a aluna de Walter), Corey Stoll (Sam, o marido infiel de Sarah), Mickey Sumner (Nicole, a amante de Sam), Yul Vázquez (Dr. Barnes, o psiquiatra de Jeffrey), Sam Waterston (Walter Zarrow), Michael K. Williams (Jeffrey, o viciado)

e  Rob Morgan (Parnell, o amigo de Jeffrey), Hannah Marks (Ella, a filha de Adam e Jill), Ben Konigsberg (Hal, o filho de Adam e Jill), Lisa Benavides-Nelson (Dr. Pratt), Philip Ettinger (Roger), Natasha Gregson Wagner (Marta), Erica Cho (professora), J. Bernard Calloway (Cedar), Cameron Taylor (enfermeira), Scott Cohen (Dr. Laffer), Lee Wilkof (Ray), Julia Morrison (Shani), Katie Chang (Amy), Richard Thomas (Mr. Werth), Patrick Kerr (Jerry), Annie Parisse (Rachel, a advogada), David Aaron Baker (Devlin), Denise Burse (enfermeira), Lucas Hedges (Greg)

Argumento e roteiro Tim Blake Nelson

Fotografia Christina Voros

Música Jeff Dana

Montagem Mako Kamitsuna

Casting Avy Kaufman

Produção Grand Schema, Hello Please, Nicholson International Pictures, Red Barn Films.

Cor, 90 min (1h30)

***

4 Comentários para “Anestesia / Anesthesia”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *