Boy Erased: Uma Verdade Anulada / Boy Erased

Nota: ★★★½

(Disponível na Netflix em 8/2021)

Boy Erased, co-produção Austrália-EUA de 2018, não é um filme fácil de se ver. Muitíssimo ao contrário. Ver seus 115 minutos é algo extremamente doloroso, angustiante, apavorante.

Saber que aquela história é baseada em fatos reais, saber que a experiência trágica, absurda, inimaginável, inconcebível daquele protagonista, Jared, interpretado por Lucas Hedges, é verdadeira, é chocante, deprimente, quase enlouquecedor.

Pensar que toda aquela dor acontece com um rapaz de 18 anos de uma cidade do interior do Arkansas, no país mais rico que já houve no planeta, um rapaz simpático, bonito, inteligente, bem educado, que jamais passou pela privação de qualquer dos confortos materiais, deixa o espectador atordoado.

Pensar que ele é apenas um exemplo, entre dezenas, centenas, milhares, dezenas, centenas de milhares de jovens norte-americanos fortes, saudáveis, bem alimentados, bem agasalhados, que são submetidos àqueles horrores todos, é inconcebível – e os adjetivos começam a se repetir, porque não há tantos adjetivos assim para qualificar aquilo que Boy Erased mostra, e acontece com centenas de milhares de jovens.

E não só nos Estados Unidos, mas seguramente em muitos outros países ricos, e também em outros não tão ricos, e naqueles em que a riqueza é miseravelmente mal dividida, como este nosso pobre Brasil.

Isso tudo que Boy Erased mostra, nos joga na cara – coisas que já sabíamos que existia, mas sobre as quais nunca tínhamos propriamente nos debruçado, sobre o que nunca tínhamos parado para pensar direito – é doloroso, angustiante, apavorante. Trágico, absurdo, inimaginável, inconcebível. Chocante, deprimente, quase enlouquecedor.

Boy Erased mostra como funcionam as “clínicas” de “cura gay” – no filme chamadas de centros de conversão.

Na verdade, elas são semelhantes a campos de concentração nazistas, a gulags soviéticos, que submetem jovens homossexuais a todo tipo de tortura até que confessem que não são mais homossexuais.

O filme é doloroso, angustiante, apavorante. Trágico, absurdo, inimaginável, inconcebível. Chocante, deprimente, quase enlouquecedor.

Assim como essa realidade que existe, a gente sabe que existe, mas não conhece, e tenta afastar do pensamento, para poder dormir à noite, para poder ser capaz de acordar e tocar a vida no dia seguinte.

O filme foge do apelativo. É absolutamente sóbrio

O roteiro de Boy Erased: Uma Verdade Anulada, foi escrito pelo australiano Joel Edgerton (à direita na foto abaixo), que também produziu e dirigiu o filme, e ainda interpreta o líder do centro de conversão Love in Action, para onde o rapaz Jared é levado. É um roteiro sem firulas, invencionices – e absolutamente sóbrio. Trata o tema explosivo com calma, distanciamento, quase com discrição. Foge do apelativo, do dramático, do lacrimoso.

É muito impressionante: o filme trata aquela coisa maluca, irracional, da maneira mais lógica, mais racional possível.

Apenas se permite uma pequena fuga da ordem cronológica rígida. Faz algumas idas e vindas no tempo – não demasiadamente, no entanto. E de uma forma calma, que dá facilmente para o espectador acompanhar.

Num dos momentos de volta ao passado recente, vemos uma sequência em que Jared está com a namoradinha de high school em um carro, á noite, provavelmente voltando de um programa, um cinema, um bar. Chloe (Madelyn Cline) é quem toma a iniciativa, aproxima-se do garoto, o beija. Vemos que procura pegar no pau dele, diz que pode ajudar – mas Jared diz que quer esperar.

Uma rápida sequência, quando o filme está ainda bem no início, e fica absolutamente claro: Jared não tem interesse sexual pela namorada.

Mas sente-se atraído por um colega de faculdade, Henry (Joe Alwyn). E por um rapaz que fica conhecendo numa galeria de arte, Xavier (Théodore Pellerin).

Acostumado a não mentir, educado para ser sempre honesto, Jared diz para o pai e a mãe que sente atração por homens.

O pai, Marshall Eamons, é um pastor batista. Rígido, duro, muito próximo do fanatismo puro e simples. A mãe, mulher doce, suave, é no entanto, conforme manda aquele figurino, uma fiel serva do marido.

O pastor Eamons ouve dois homens de sua comunidade por quem tem o maior respeito, o pastor Wilkes (Frank Hoyt Taylor) e o dr. Muldoon (Cherry Jones), O aconselhamento que eles dão é a “cura gay”.

O casal de pais é interpretado por dois grandes nomes, Russell Crowe e Nicole Kidman. Por coincidência, dois velhos amigos, ambos criados na Austrália, tendo começado as carreiras na Austrália, embora nascidos fora de lá – ela no Havaí, ele na Nova Zelândia.

Uma beleza de interpretação de Lucas Hedges

Esse rapaz Lucas Hedges, que faz o protagonista da história, é um ator muito bom, e já tem experiência, quilometragem. Nascido em Nova York em 1996, estava portanto com 22 anos em 2018, o ano de lançamento do filme; sua filmografia tinha 25 títulos em meados de 2021, entre eles vários filmes bons e/ou importantes: Meus Dias Incríveis (2012), Anestesia (2015), Manchester à Beira-Mar (2016), Ladybird: A Hora de Voar (2017), Três Anúncios para um Crime (2017), Let Them All Talk (2020).

Já recebeu 15 prêmios e teve 67 outras indicações – inclusive ao Oscar de ator coadjuvante por aquela beleza que é Manchester à Beira-Mar.

Está ótimo no papel – e sua bela interpretação mostra claramente para o espectador que Jared chega à tal Love in Action, o “centro de conversão”, de peito aberto, com boa vontade. Rapaz inteligente, sensível, mas criado sob a rigidez de um pai que tem um entendimento xiita, fanático da religião, Jared – é o que o filme nos mostra – não é um garoto rebelde, contestador. Muitíssimo ao contrário: seguiu os ensinamentos dos pais com docilidade, com legítimo respeito.

Jared chega à “clínica” de “cura gay” acreditando que poderá, sim, ser “curado” da “doença”.

Por que não dar aqui o título de Garoto Anulado?

Uma palavrinha sobre o título brasileiro do filme, Boy Erased: Uma Verdade Anulada.

Os exibidores brasileiros têm uma sólida tradição de escolher títulos ruins. Há vários tipos de ruindades, desde a pendência para o dramalhão (Fogueira da Paixão, Acordes do Coração, Lágrimas Amargas. A Mulher Que Vendeu Sua Alma) até o grandioso (Assim Caminha a Humanidade, Da Terra Nascem os Homens) e o simplesmente grotesco (Depois Daquele Beijo; Noivo Neurótico, Noiva Nervosa; Os Brutos Também Amam).

Nas últimas décadas, tem havido dois fenômenos: o acréscimo de alguma coisa ao título original (Silkwood, Retrato de uma Coragem; Wasp Network: Rede de Espiões) e a não-tradução, a preguiça de traduzir (Virgin River, Let Them All Talk, Pieces of a Woman, Rojst).

No caso deste belo filme, misturaram esses dois tipos de coisa: o acrescentar algo ao título original e a não tradução, a preguiça de traduzir.

Por que não Garoto Apagado? Menino Anulado?

Mistério neste mundo de mistérios.

Um registro necessário: no mesmo ano de 2018, foi lançado um outro filme sobre o mesmo tema, adolescente levado a centros de conversão: O Mau Exemplo de Cameron Post, no original The Miseducation of Cameron Post, foi dirigido pela jovem nova-iorquina Desiree Akhavan, e tem Chloë Grace Moretz no papel título.

Garrard Conley, o autor do livro de memórias Boy Erased, nasceu no interior do Arkansas, em 1984 ou 1985. (Não entendi por que não se conseguiu determinar o ano exato.) Seu pai era um pregador batista – um fundamentalista. E ele foi enviado para um centro de conversão chamado exatamente Love in Action.

Tinha 31 anos (ou 30) quando lançou Boy Erased: A Memoir, relatando sua experiência na Love in Action. Diz uma crítica do Washington Post sobre o livro, assinada por Jamie Brickhouse: “É uma poderosa convergência de eventos que Conley retrata eloquentemente, e talvez de maneira um tanto inocente. Conley era cheio de contradições confusas – tão imbuído dos ensinamentos da Bíblia quando na prosa da grande literatura”.

Os realizadores do filme contaram com todo o apoio do homem cuja experiência é retratada ali. Conley faz até um “cameo”, uma pequena participação, em uma sequência que mostra a chegada do garoto Jared ao Love Action, como um funcionário do lugar.

No final do filme, como acontece em tantas obras baseadas em histórias reais, vemos fotos de Conley com seus pais. Impressiona como a bela, fantástica Nicole Kidman se transformou em uma quase gêmea daquela senhora do interior de Arkansas casada com um religioso fundamentalista – mas isso é só um pequeno detalhe.

Nos letreiros mostrados ao final do filme, é dito que Garrard Conley vive hoje em Nova York com o marido. “Por meio de seus artigos e ativismo, Garrard segue sua luta pela comunidade LGBTQ.”

E aí os letreiros enumeram verdades chocantes:

“Até a conclusão do filme, 36 (dos 51) Estados permitiam a terapia de conversão. Até hoje, a terapia de conversão atingiu 700 mil pessoas LGBTQ nos Estados Unidos.”

Como pode, meu Deus do céu e também da Terra? Como pode?

A página de Trivia do IMDb sobre o filme traz um item que poderia perfeitamente estar nos letreiros ao final do filme:

“Todas as associações médicas respeitáveis dos Estados Unidos já condenaram a prática da ‘terapia de conversão’ e mostraram que a idéia de que a orientação sexual possa ser mudada é falsa e médica e psicologicamente perigosa. Organizações que já divulgaram conclusões censurando a prática incluem (e creio que não é necessário traduzir os nomes – as palavras são muito facilmente inteligíveis) a American Medical Association, a American Psychiatric Association, a American Psychological Association, o American College of Physicians, a American Academy of Pediatrics, a American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, a American Counseling Association, a American Psychoanalytic Association, a American School Counselor Association, a National Association of Social Workers, e muitas outras.”.

Pois é. Sendo assim, como pode?

Como pode haver taliban, jihad, fanatismo muçulmano, fanatismo cristão, Donald Trump, Jair Bolsonaro?

Anotação em agosto de 2021

Boy Erased: Uma Verdade Anulada/Boy Erased

De Joel Edgerton, Austrália-EUA, 2018

Com Lucas Hedges (Jared Eamons),

Nicole Kidman (Nancy Eamons, a mãe),

Russell Crowe (pastor Marshall Eamons, o pai)

e Joel Edgerton (Victor Sykes, o líder do centro de conversão), Madelyn Cline (Chloe, a namoradinha), Troye Sivan (Gary, o rapaz louro do centro de conversão), Britton Sear (Cameron, o rapaz gordo do centro de conversão), Joe Alwyn (Henry, o colega de faculdade), Théodore Pellerin (Xavier), Victor McCay (Aaron), David Joseph Craig (Michael), Emily Hinkler (Lee), Devin Michael (Anders), Matt Burke (Simon), Lindsey Moser (Tina), Jesse LaTourette (Sarah), David Ditmore (Phillip), William Ngo (Carl), Xavier Dolan (Jon), Tim Ware (Big Jim), Flea (Brandon), Randy Havens (o pai de Lee), Frank Hoyt Taylor (Pastor Wilkes), Cherry Jones (Dr. Muldoon),

Roteiro Joel Edgerton

Baseado nem “Boy Erased”, livro de memórias de Garrard Conley

Fotografia Eduard Grau

Música Danny Bensi e Saunder Jurriaans

Montagem Jay Rabinowitz

Casting Carmen Cuba, Tara Feldstein

Direção de arte Chad Keith

Produção Joel Edgerton, Kerry Kohansky-Roberts, Focus Features, Perfect World Pictures, Anonymous Content. Distribuição Universal

Cor, 115 min (1h55)

***1/2

2 Comentários para “Boy Erased: Uma Verdade Anulada / Boy Erased”

  1. “Como pode? como pode? como pode?”

    Podendo, uai!

    Aqui perto de casa um super gay, “se cansou de ser gay”, e dizem que casou com uma mulher, e “parou” de ser gay. Virou hetero? Sei lá, nunca mais soube dele, nunca mais o vi. Dizem que é impossível. Eu vou saber? voce vai saber? Deus sabe.

    Como pode? Como pode?
    Só sabe falar isso? rsrs.

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