The Undoing

Nota: ★★★☆

Nos cinco primeiros de seus seis episódios, The Undoing, dirigido pela extraordinária realizadora dinamarquesa Susanne Bier, é o que toda minissérie sonharia ser: uma absoluta, perfeita maravilha.

É drama familiar, é estudo psicológico de personagens; tem as questões sérias da injustiça social, do fosso entre os ricos demais e os mais pobres, mostra os problemas de cor, etnia. E tem um mistério policial, um crime bárbaro, brutal, que, por envolver gente riquíssima em Manhattan, o centro, a capital do capitalismo mundial, se transforma em notícia de interesse de toda a imprensa. Tem então todo o circo da mídia – e maravilhosas sequências de tribunal.

Tudo o que uma minissérie poderia sonhar em ser.

No sexto e último dos episódios – cada um tem cerca de 60 minutos –, no entanto, tem perseguição de carro! Perseguição de carro, essa mania absurda, grotesca do cinema americano.

O que me deixou pensando: será que a doutora Grace Reinhart Fraser, uma das protagonistas da história (o papel de uma Nicole Kidman bela como deusa de Botticelli), psicóloga formada em Harvard, com especialização disso e daquilo mais, e 20 anos de prática em clínica, saberia explicar por que raios os filmes e/ou séries de cinema feitos nos Estados Unidos têm obrigatoriamente que ter perseguições de carro?

Saberia ela explicar qual é o tipo de neurose, psicose ou whatever que seja o nome da doença que leva os americanos a essa obsessão por perseguições de carro?

Bem…

A forma com que os realizadores deram o fecho à série de fato me desagradou profundamente. Achei todo o encaminhamento para as sequências finais forçado, exagerado, apelativo. Apelativo – acho que o adjetivo mais adequado é este. Apelativo.

Mas não tem jeito. Nem mesmo isso consegue tirar o brilho da série.

The Undoing é uma maravilha. Merece todas as loas que vem recebendo – e parece que vem recebendo mesmo muitas, muitas loas.

Uma família muito privilegiada – e que parece feliz

É uma trama absolutamente fascinante. Ela nos fisga no primeiro episódio, e só faz melhorar nos quatro episódios seguintes. O espectador chega ao sexto e último episódio inteiramente envolvido com o drama que se abateu sobre aquela família.

É uma família privilegiada, do topo da escala social na maior metrópole do país mais rico do mundo. Ele, Jonathan (o papel de Hugh Grant), é um conceituado médico, um oncologista especializado no tratamento de crianças. Ela, Grace (o papel de Nicole Kidman, como já foi dito), é uma psicóloga também bastante conceituada, daquelas que cobram uma fortuna por sessão. O pai dela, Franklin Reinhart, viúvo, apaixonado pela filha, é um bilionário – o papel de Donald Sutherland. O filho do casal, Henry (Noah Jupe, extraordinário, excelente), de 12 anos, estuda num colégio exclusivérrimo, a Reardon School, e tem aulas de violino com um professor particular.

É uma família privilegiada, rica – e, pelo que vemos no primeiro dos seis episódios, uma família feliz. Henry é um garoto tranquilo, centrado, educado, gentil. Seus problemas na vida são poucos e pequenos: gostaria de ter um cachorro, mas o pai diz que tem alergia; o pai prometeu fazer uma viagem de carro com ele, só os dois, e ainda não rolou; e o professor de violino não tem se mostrado muito entusiasmado com ele, embora Henry de fato goste de estudar violino.

Grace e Jonathan se tratam com gentileza, com carinho, tudo indica que de fato se amam.

Pelo que vemos na tela, no primeiro episódio, são de fato uma família feliz.

Na semana em que a ação começa, o casal tem dois compromissos: tem que comparecer a um leilão beneficente para arrecadação de fundos para a escola de Henry (Grace faz parte do comitê organizador do leilão) e, no dia seguinte, há um jantar marcado com Franklin, o pai dela. Jonathan demonstra que não gosta especialmente de nenhum dos compromissos, mas está disposto a comparecer, na boa.

A existência de um leilão beneficente, e o fato de Grace fazer parte do comitê de senhoras ricas que o organiza, serve para vários propósitos na trama da série. É bom para mostrar como são riquíssimas aquelas famílias que podem colocar os filhos na escola; aliás, a Reardon é uma escola fictícia, mas, como mostra uma rapidíssima pesquisa na internet, é absolutamente idêntica às escolas que existem de fato para os muito ricos de Nova York. É bom para mostrar que, além das mensalidades caríssimas, a escola ainda precisa arrecadar dinheiro de outras formas, para poder se manter, manter seus professores – e até mesmo para dar bolsas de estudos para um pequeno número de jovens cujos pais não são tão privilegiados assim.

E é numa reunião das ricas mães de alunos do comitê de organização do leilão que surge pela primeira vez na tela, ainda nos primeiros 14 minutos do primeiro episódio, outra das personagens centrais da trama, a personagem chave, Elena Alves (o papel de Matilda De Angelis, nas duas fotos abaixo).

Uma das ricas mães reunidas no apartamento de uma delas conta para Grace – e para os espectadores, é claro – que Elena quis participar do comitê, e então havia sido admitida. O filho dela, Miguel (Edan Alexander), de uns dez anos, está na Reardon com uma bolsa de estudos.

As ricas mães estão todas aí na faixa dos 40 e muitos; já Elena é bem mais jovem, ainda não deve ter 30. Tinha tido um segundo filho, uma garotinha ainda bebê, e a levou para a reunião do comitê. Numa hora lá, dá de mamar para a filhinha.

Aquilo – algo tão absolutamente normal, natural – deixa as ricas mães surpresas, admiradas; tirar os seios e dar de mamar para um bebê não era, de forma alguma, algo normal, natural, entre elas, num evento social.

Mas a verdade é que ela tem seios lindíssimos, fofoca depois com Grace uma de suas melhores amigas, Sylvia Steineitz (Lily Rabe).

A verdade – o espectador verá poucos minutos depois – é que Elena Alves tem um corpo absolutamente escultural, belíssimo, uma perfeição, uma obra de arte, um tesão absoluto.

Quando o primeiro episódio está com apenas 18 minutos, a câmara focaliza Elena Alves inteiramente nua – de pé, de frente, depois de costas.

Elena Alves, quer dizer, a atriz Matilda De Angelis, que a interpreta, é uma monstruosidade de mulher gostosa.

Um crime – e a vida da família vira um inferno

Matilda de Angelis, quer dizer, Elena Alves surge peladinha no vestiário da academia de ginástica frequentada por Grace. Aos 18 minutos do primeiro dos seis episódios de The Undoing, Grace está sentada em um banco do vestiário, após ter feito seu treino, preparando-se para se aprontar para sair, quando Elena surge diante dela, de pé, e absolutamente nua – e conversa com ela com a maior naturalidade. Senta-se no banco, ao lado dela, e continua a conversar. Agradece muito pela gentileza com que Grace a tratou na reunião do comitê organizador do leilão; insiste em que Grace foi a única daquelas mulheres que realmente a tratou bem.

Grace comenta sobre isso com Jonathan, no carro que os leva para o local onde se daria o tal evento social – um coquetel, depois o leilão, depois um jantar. Conta que a moça ficou lá, nua, inteiramente nua, à vontade. Jonathan brinca com a mulher, pergunta se ela ficou excitada.

Elena está no evento. Usa um vestido decotado, que chama a atenção de qualquer frade de pedra para seus belos seios (na foto abaixo).

Numa hora em que vai ao banheiro, Grace se encontra com ela. Conversam um pouco. Elena diz que às vezes se sente sufocada. Grace diz que, caso ela queira, poderiam conversar – ela não cobraria, diz, e logo depois percebe que falou algo esquisito, impróprio, indelicado.

Daí a pouco Elena se dirige ao elevador – e Grace vai atrás dela. Pergunta se pode ajudar, se quer que seu motorista a deixe em casa. Elena recusa, diz que não é necessário, que mora no Harlem, que seria mais rápido pegar o metrô.

Pouco tempo depois, Jonathan diz para Grace que recebeu uma mensagem do hospital, precisa ir atender um paciente que teve uma piora. Ele sai, Grace continua no evento.

No dia seguinte, as mães dos alunos do Reardon ficam sabendo, por uma série de mensagens enviadas pelo WhatsApp, que a mãe do garoto Miguel, Elena Alves, havia sido encontrada morta em seu estúdio. Assassinada.

Não vai demorar muito para o espectador saber – ainda no primeiro episódio – que ela havia sido assassinada de modo bárbaro, cruel – com seguidos golpes no rosto desferidos com um machadinho de metal, do tipo usado por escultores.

A partir daí, a partir do início do segundo episódio, as vidas de Jonathan, Grace e seu filho Henry, aquela família rica, bela, privilegiada, feliz, vai se transformar no mais terrível inferno.

Já Devias Saber… Agora é Tarde De Mais

The Undoing. A HBO, que é uma das produtoras da série, não mexeu no título para a exibição no Brasil. Manteve o original. No IMDb, a série aparece como The Undoing: Já Devias Saber. You Should Have Known, você já devia saber, é o título do romance de Jean Hanff Korelitz em que o roteiro se baseia. Quem assina o roteiro é David E. Kelley, que é também um dos produtores e é creditado como o criador da série.

Como sua criatura Grace Fraser, Jean Hanff Korelitz – romancista, dramaturga, produtora de teatro, ensaísta – é nova-iorquina; nasceu em 1961 na grande metrópole, graduou-se em Inglês e continuou estudos em Cambridge, Inglaterra. Da mesma maneira com que Grace conheceu Jonathan numa prestigiosa universidade, Harvard, Jean conheceu em Cambridge o homem com quem viria a se casar, o poeta e professor irlandês Paul Muldoon; tiveram dois filhos, e vivem em Nova York.

You Should Have Known foi o quinto romance publicado pela autora, e foi lançado em março de 2014. Já foi traduzido em 18 línguas. Em dezembro de 2020, o livro não havia sido lançado no Brasil; havia uma edição portuguesa, da Editorial Presença, com o título de Já Devias Saber..Agora é Tarde de mais;

Já Devias Saber… Agora é Tarde De Mais já teve nova edição com foto de Nicole Kidman e Hugh Grant na capa, com o título The Undoing em letras grandes.

Undoing, a palavra escolhida pelos realizadores para o título original da série, é o substantivo para designar a ação de undo, desfazer. O desfazimento, portanto, em Português; embora exista, esteja nos dicionários, desfazimento não é uma palavra muito usada na linguagem normal, coloquial.

Uma diretora que mistura drama familiar com thriller

É fundamental lembrar que Susanne Bier – que acabou cometendo uma sequência de perseguição de carro no último episódio de The Undoing – é uma realizadora de filmes sérios, densos, pesados, para platéias adultas, maduras.

Fiquei encantado com essa realizadora nascida em Copenhagen em 1960 com Depois do Casamento / Efter Brylluppet, de 2006, baseado em história criada por ela mesma. Escrevi quando vi o filme em 2008: “Eis aí um belíssimo filme – uma história de família, relações familiares, que vai surpreendendo o espectador com o impacto de um thriller bem feito e a profundidade de uma grande obra de arte.”

A história é fascinante: ”Jacob, um médico dinamarquês, administra na Índia um centro de auxílio a crianças pobres e órfãs; viaja para o país natal, após muitos anos, para se encontrar com Jorgen, um milionário disposto a doar uma fortuna para seu trabalho social. Jorgen o convida para o casamento da filha – e, lá, Jacob vê que a mulher de Jorgen, Christian, é a mulher com quem ele foi casado, cerca de 18 anos atrás. E mais: fica sabendo que a noiva não é filha de Jorgen, e sim dele mesmo. E ainda haverá várias – e marcantes – novas descobertas.”

(Depois do Casamento teve uma refilmagem americana com este mesmo título aqui, em 2019, dirigida por Bart Freundlich, com Julianne Moore e Michelle Williams.)

Susanne Bier nos brindou depois com, entre outros, Coisas Que Perdemos Pelo Caminho / Things We Lost in the Fire (2007), co-produção EUA-Inglaterra, Em um Mundo Melhor / Hævnen (2010) e Segunda Chance/En Chance Til (2014), co-produções Dinamarca-Suécia – todos eles dramas sobre vida em família que contêm elementos de thriller.

Deve ter sido, seguramente, por essa sua qualidade – a competência com que mistura drama famíliar com o clima de thriller – que os produtores escolheram a diretora dinamarquesa para realizar este The Undoing, uma produção cara, de primeira linha, com grandes nomes no elenco.

E ela fez um belíssimo trabalho.

Há, várias, várias vezes, o uso de um tique, uma bobagenzinha formal: a cada momento em que Grace é surpreendida por uma nova informação inesperada, inquietante, a câmara do diretor de fotografia Anthony Dod Mantle faz super-hiper-big-close-ups dos olhos de Nicole Kidman – em geral com a câmara torta.

Como Grace é surpreendida por uma nova informação inesperada, inquietante várias, várias vezes, aquele tique, aquela frescurinha formal se repete ad nauseam.

Mas isso é apenas um detalhinho.

No bom elenco, atenção para Noah Jupe e Noma Dumezweni

É uma bela trama, é uma bela série, dirigida com segurança, competência, talento.

O elenco é uma maravilha. O veteraníssimo e sempre ótimo Donald Sutherland nada de braçada no papel do pai milionário – parece que foi feito para fazer pais milionários.

O garoto que faz Henry, o filho de 12 anos que vivia no paraíso e de repente cai no quinto dos infernos, esse Noah Jupe (na foto acima), é um surpreendente talento. Fiquei muito impressionado com ele. Vejo agora que é inglês de Londres, onde nasceu em 2005. Diabo, o que será que as mães dos futuros atores ingleses botam na mamadeira que os transforma nos melhores do mundo? Aos 15 anos em 2020, Noah Jupe tem já 21 títulos na filmografia, 4 prêmios e 14 outras nomeações. Ô louco, meu…

Bem, do também londrino Hugh Grant não se pode dizer que é assim um Laurence Olivier, um John Guilgud, um Michael Redgrave, um Albert Finney, um Alec Guiness, um Michael Caine, um Jude Law.

Hugh Grant é belo e charmoso como outro inglês, Cary Grant, mas, diacho, não dá para não admitir: ele é chegado a uma careta. Mas é belo e charmoso como Cary Grant, e esse dr. Jonathan Fraser tinha que ser interpretado por um homem belo e charmoso como Cary Grant, e então…

Não me lembrava de Noma Dumezweni, que interpreta Haley Fitzgerald, a tão cara quanto competente criminalista. Brinquei com Mary que, se eu fosse matar alguém, queria ter Haley Fitzgerald como minha advogada. Ela é ainda melhor do que Annalise Keating, a também excelente criminalista interpretada por Viola Davis em How To Get Away With Murder.

Annalise Keating, como tantos outros grandes criminalistas do cinema, é um tanto prima donna, um tanto teatral, um tanto exagerada. Haley Fitzgerald, não; ela é, o tempo todo, no seu escritório assim como no tribunal, calma, controlada. Quase fria – ou com a aparência de fria mesmo, sem o quase. Em duas ocasiões diferentes – uma falando com Grace, outra com Jonathan –, diante da pergunta assustada tipo “Você está brincando comigo?”, ela responde, o rosto absolutamente sem expressão: – “Eu nunca brinco. Não sou engraçada”.

É dela a que talvez seja a melhor fala de todas as falas de uma série que tem muitos bons diálogos. Para uma Grace inquieta, insegura, toda cheia de dúvidas, a advogada diz que os policiais acham que ela está escondendo alguma coisa. E, quando Grace indaga por que, ela explica:

– “Porque é o que os privilegiados sempre fazem ao se sentirem ameaçados. Eles escondem as verdades horríveis para se proteger, proteger suas famílias, seu status na sociedade, sua imagem pública. E acham que podem se safar porque são ricos.”

Que brilho.

Noma Dumezweni (na foto abaixo) é uma premiada atriz do teatro inglês; já venceu o Olivier Award em 2006 e teve outra indicação àquele prêmio e também ao Tony, o Oscar do teatro americano. Tem mais de 35 títulos na filmografia, inclusive o maravilhoso Coisas Belas e Sujas (2002) de Stephen Frears e O Menino Que Descobriu o Vento (2019), dois filmes que já estão aqui neste site.

Ela nasceu na Suazilândia, filha de sul-africanos; viveu na Botsuana, no Quênia e em Uganda antes de chegar à Inglaterra em 1977 como refugiada. Agora não me esqueço mais dessa atriz impressionante.

Para essa moça Matilda De Angelis, o céu é o limite

É também uma atriz impressionante essa moça Matilda De Angelis, que faz Elena Alves.

Aliás, antes de falar de Matilda De Angelis, uma palavrinha sobre os Alves. O marido de Elena se chama Fernando Alves e é interpretado por Ismael Cruz Cordova, nascido e criado em Porto Rico; o filho, Miguel, é interpretado por Edan Alexander. Pelos traços faciais, pelo biotipo, pelo sobrenome, Alves, os três personagens são, muito obviamente, descendentes de latino-americanos. Ismael Cruz Cordova e Edan Alexander, os atores, são, com certeza.

Matilda de Angelis, a atriz escolhida para o papel importantíssimo de Elena Alves, não tem, no entanto, nada a ver com América Latina. É italiana de Bolonha, nascida em 1995 – estava, portanto, com 25 no ano da produção e lançamento da série.

“Nata a Bologna, frequenta il liceo scientifico Enrico Fermi”, começa o verbete sobre ela na Wikipedia em italiano. “Aproxima-se da música estudando violão e violino a partir dos 11 anos e aos 13 começa a compor canções. Aos 16 anos começa como cantora no grupo musical Rumba de Bodas, com o qual grava um álbum publicado em 2014, Karnaval Fou, e se exibe em concertos em turnê pela Itália e pela Europa.”

(Gozado: para a Wikipedia em italiano, Itália e Europa são coisas distintas, uma não está dentro da outra. Mas vamos em frente…)

“Nesse mesmo ano, um amigo sugere a ela que se apresente em uma audição para um filme com Stefano Accorsi. Logo após a audição, é contratada pelo diretor Matteo Rovere para o papel da protagonista feminina do filme Veloce Come il Vento, em que a atriz interpreta a personagem de Giulia De Martino e pelo qual, em julho de 2016, recebe no Taormina Film Fest o prêmio de melhor revelação. Vence também o Prêmio Guglielmo Biraghi. Torna-se candidata ao David di Donatello 2017 e é ainda indicada ao prêmio de melhor canção original, ‘Seventeen’, sempre por Veloce come il vento.”

Uau! Que rapidez, meu!

É. A moça é mesmo um espanto.

A câmara de Susanne Bier e seu diretor de fotografia fazem diversos close-ups do rosto de Elena Alves-Matilda De Angelis – além daquelas tomadas no vestiário da academia de ginástica, em que a câmara parece babar diante da nudez total da moça.

O corpo, como já foi dito, é a absoluta perfeição. É tudo milimetricamente exato, sem nada a mais, nada a menos do que a perfeição. Já o rosto, não. Não é uma beleza perfeita, exata, padrão, tipo Barbie. De forma alguma. Não é nem de longe o que a gente identificaria como uma deusa grega, uma deusa renascentista – como aliás é o rosto de Grace Fraser-Nicole Kidman.

É uma beleza forte, impactante, impressionante. Fora do padrão, fora do esquadro – mas absolutamente impressionante.

Por uma dessas coincidências fantásticas, vimos Matilda De Angelis em outro papel no exato mesmo dia em que vimos também os três primeiros dos seis episódios de The Undoing. Em A Incrível História da Ilha das Rosas/L’incredibile Storia dell’Isola delle Rose, produção italiana do mesmo ano de 2020, a jovem atriz faz o principal papel feminino, o de Gabriella, a ex-namorada e paixão eterna de Giorgio Rosa, o protagonista da história. E a Gabriella do filme italiano (moradora, por outra grande coincidência, exatamente em Bolonha, a cidade natal da atriz) não se parece nada com a Elena da minissérie americana.

Nada. Nadica. Coisa alguma. De jeito nenhum.

Não é apenas que Elena seja uma artista que vive em Nova York, e é uma mulher absolutamente sensual, sedutora, envolvente – e talvez, ou até com certeza, com problemas psiquiátricos e comportamentais um tanto graves. E que Gabriella seja uma advogada e professora de Direito séria, compenetrada, quase careta, piccola borghesa.

Os modos são diferentes, o gestual é diferente. Diabo, o rosto é diferente. Parecem duas atrizes diferentes.

Ator que tem vários rostos é ator bom. Para essa moça Matilda De Angelis, o céu é o limite.

Os créditos iniciais formam um clipe belíssimo

E o que falar de Nicole Kidman?

Dessa moça australiana que nasceu no Havaí (no ano de 1967, quando eu terminava o então curso colegial em Curitiba, e me preparava para mudar para São Paulo), tem 1 metro e 80 de perfeição, quatro filhos, quase 90 títulos na filmografia, 101 prêmios, incluindo um Oscar, mais 219 outras indicações, incluindo três ao Oscar, é como Gilberto Gil diz do luar: “Do luar não há mais nada a dizer / A não ser que a gente precisa ver o luar”.

Bem, achei interessante ver, na página de Trivia do IMDb sobre The Undoing, que esta foi a segunda vez que o canadense Donald Sutherland faz o papel de pai da australiana nascida em Honolulu. A primeira havia sido em Cold Mountain, o belo drama passado durante a Guerra Civil Americana.

Foi também a segunda vez que Nicole Kidman trabalhou ao mesmo tempo como atriz principal e produtora em uma produção da HBO. A primeira tinha sido Big Little Lies. O que permite dizer que esta aqui foi também a segunda vez em que Nicole Kidman fez papel de uma mulher muito rica em uma série da HBO.

Mais uma gostosa trívia do IMDb: esta foi a quarta vez em que Nicole Kidman interpretou uma personagem chamada Grace. Ela já havia sido Grace em Os Outros (2001), o ótimo, fascinante suspense do espanhol Alejandro Amenábar, em Dogville (2003), aquela chatice do dinamarquês Lars von Trier, e em Grace de Mônaco (2014), a reconstituição de parte da vida de Grace Kelly dirigida por Olivier Dahan. (Que eu ainda não vi, e gostaria muito de ver.)

A mais interessante de todas as informações da página de Trivia do IMDb sobre a série, para mim, foi a de que quem canta “Dream a Little Dream of Me”, nos créditos iniciais, é a própria Nicole Kidman.

Não percebi que era a voz dela. Não saquei. Vimos a apresentação, os créditos iniciais, seis vezes, já que eles se repetem, idênticos, em cada um dos seis episódios – mas na verdade vi mais, porque repeti os créditos algumas vezes, para checar um nome e outro, um nome ou outro.

Formam na verdade um belo clipe os créditos iniciais de The Undoing – e, como acho créditos iniciais um elemento importante, gostaria de falar sobre esses da série, apesar de o texto já estar longo demais.

Os realizadores optaram por fazer, nos créditos iniciais dessa série que trata de um crime bárbaro, brutal, e do imenso sofrimento de uma família que cai do paraíso direto no pior dos infernos, um clipe musical doce, suave, terno, amigável, amoroso. Uma beleza de paz & amor.

Muito provavelmente a opinião de Susanne Bier contou bastante nessa decisão – e foi uma bela decisão. A abertura de todos os episódios é assim um oásis de doçura naquele mar de amargura, de dureza, de dor, de violência.

Há uma tomada, bem rápida, bem rápida mesmo, que mostra sangue, nos créditos iniciais. Mas todo o resto do tempo é ocupado por imagens lindas, ternas, doces, idílicas, de uma garotinha brincando num jardim.

São imagens de fato idílicas. Tudo o que a gente sonharia para uma filha da gente.

Bolhas de sabão. Bolhas de sabão rementem a alegria infantil, pureza infantil. É bem verdade que, ao final do clipe que é a apresentação o dedinho da garotinha explode uma bolha de sabão – e o explodir de uma bolha de sabão pode ser o prenúncio de algo bem ruim.

Mas durante quase todo o tempo que duram os créditos iniciais, com exceção da rapidíssima aparição de uma imagem em que há sangue, e desta última tomada em que a bolha de sabão é furada, é tudo o mais perfeito sonho.

Uma criança lindíssima, de cabelinhos encaracolados, enrolados, brincando num jardim.

Os cabelinhos da criança podem levar o espectador a pensar que aquela é Grace. Deve ser mesmo. Linda, doce, suave Grace, filha de pais riquíssimos, o paraíso dos contos de fada.

E, ao fundo, “Dream a Little Dream of Me”, na voz linda, doce, suave, da atriz que interpreta Grace.

“Dream a Little Dream of Me”, de Fabian Andre-Wilbur Schwandt-Gus Kahn, para a minha geração, para as gerações próximas da minha, de gente nascida digamos entre 1945 e 1955, é uma das mais lindas, doces, suaves canções dos Mama’s and Papa’s, o conjunto californiano de quatro vozes harmoniosas que é a quintessência do Flower Power, do lado calmo da contracultura, do hippismo.

Susanne Bier veio logo após a minha geração, e é bem provável que tenha ouvido Mama’s and Papa’s na juventude. Foi dela, segundo o IMDb, a idéia de que fosse a própria Nicole Kidman, a protagonista da história, que cantasse a música nos créditos iniciais.

Atenção, cuidado: fala-se aqui do final da série

Esta anotação já está gigantesca demais até para meus padrões, mas ainda gostaria de falar sobre o final da história, o desfecho da série.

Como vou falar sobre o final de uma série que mostra um crime, um julgamento em júri popular, é óbvio que, se o eventual leitor ainda não tiver visto The Undoing, não deveria, de forma alguma, continuar lendo a partir daqui.

Embora eu não vá dar abertamente o spoiler de quem foi, afinal de contas, que matou, porque aí seria demais.

Vi, no IMDb, na seção “Questões feitas frequentemente”, o seguinte: “Que favor Grace pediu a Sylvia? Não entendi isso”.

Diabo: as pessoas não prestam atenção ao que estão vendo?

Uns meses atrás publiquei um texto aqui sobre a série belga (da região de Flanders, de fala neerlandesa) Doze Jurados, de 2019. Umas 30 pessoas (não é exagero, não) enviaram mensagens para o site perguntando o que significavam, afinal, as últimas cenas da série – quem era o criminoso?

Diabo: a série deixava bem claro quem era o criminoso.

“Que favor Grace pediu a Sylvia? Não entendi isso.”

Como é que é isso? A pessoa viu a série enquanto ao mesmo tempo trocava freneticamente mensagens no zap?

Diacho: a série deixa claríssimo por que Grace pede um favor à sua amiga Sylvia, que havia sido, na faculdade, colega da promotora do caso no tribunal!

Mas, deixando de lado o fato de que muita gente não presta atenção ao que é mostrado na tela, quero ainda falar sobre a questão do whodunit – o quem afinal de contas cometeu o crime.

Já disse e repeti que ver, no final do último episódio de uma série tão maravilhosa até ali, sequências de perseguição de carro, me parece um absoluto horror. É baixaria, é apelação – é uma tentativa desesperada de tentar atrair a atenção daquela imensa faixa de espectadores imbecis que tem obsessão por perseguição de carro.

Mas isso não tem nada a ver com o whodunit. O quem afinal de contas cometeu o crime.

Diz o IMDb – e isso me impressionou demais – que a reação à identidade do autor do crime foi de grande revolta. “Muitos (espectadores) sentiram que era ‘escrita preguiçosa’, e fazia o show ‘ao final de contas ficar sem sentido’. A revista Time escreveu uma crítica dizendo que ‘o final não apenas chocava os espectadores como os insultava’”.

Cada cabeça, uma sentença.

Achei ruim a forma com que se revela enfim quem é o criminoso.     A forma. O jeito de encenar. Aquilo que os franceses chamam de mis-em-scène. Aquilo que Susanne Bier sabe fazer – e talvez tenha sido forçada pelos produtores a deixar de lado, para tentar agradar às platéias americanas.

Quanto à identidade do autor do crime, não vejo nada errado, problemático. De forma alguma. Tudo está bem colocado, tudo está claro, não há erro algum. Com exceção da perseguição de carro, The Undoing faz tudo certinho, certinho. Joga com as emoções, os sentimentos, as sensações do espectador. Primeiro manda que o espectador sinta, veja as coisas numa direção – e depois inverte tudo. De tal forma que, quando afinal a série mostra que era aquilo mesmo que estava tudo muito claro no início, o espectador, que havia sido levado a crer no contrário, se surpreende. Fica até bravo.

You should have known. Você deveria ter sabido.

Anotação em dezembro de 2020

The Undoing

De: David E. Kelley, criador, Susanne Bier, diretora, EUA, 2020

Com Nicole Kidman (Grace Fraser),

Hugh Grant (Jonathan Fraser)

e Noah Jupe (Henry Fraser, o filho), Donald Sutherland (Franklin Reinhardt, o pai de Grace), Matilda De Angelis (Elena Alves), Ismael Cruz Cordova (Fernando Alves, o marido de Elena), Edan Alexander (Miguel Alves, o filho), Lily Rabe (Sylvia Steineitz, a amiga de Grace), Edgar Ramírez (detetive Joe Mendoza), Michael Devine (detetive Paul O’Rourke), Noma Dumezweni (Haley Fitzgerald, a advogada), Jeremy Shamos (Robert Connaver, o diretor do Reardon School), Madeline Faye Santoriello (a filha de Sylvia), Irma-Estel LaGuerre (a empregada de Franklin), Sofie Gråbøl (Catherine Stamper), Billy Lake (porteiro de Franklin), Douglas Hodge (Robert Adelman), Clint Jung (juiz Martin Shepley), Jason Kravits (dr. Stuart Rosenfeld, o colega de Jonathan)

Roteiro David E. Kelley

Baseado no livro “You Should Have Known”, de Jean Hanff Korelitz

Fotografia Anthony Dod Mantle

Música Evgueni Galperine e Sacha Galperine

Montagem Ben Lester

Casting Ellen Chenoweth, Jina Jay

Direção de arte Lester Cohen

Produção Blossom Films, David E. Kelley Productions, HBO Original Programming, Made Up Stories.

Cor, 337 min (5h37)

***

Disponível no HBO GO em dezembro de 2020…

4 Comentários para “The Undoing”

  1. Adoro seus textões que falam de tudo da série ou filme. Desta vez, porém, não cheguei até o fim, seguindo seu conselho!
    Amanhã mesmo começo a ver Undoing.
    Um abraço e obrigada pelo texto.

  2. Nossa, Stella, que mensagem mais absolutamente gentil e simpática a sua!
    Muitíssimo obrigado!
    Fez muito bem em não ler aquela coisa imensa até o fim. É isso mesmo: muito melhor ver a série. Acho que você vai gostar.
    Depois me conte, por favor!
    Um bom fim de semana.
    Sérgio

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