Manchester by the Sea é um filmaço, uma beleza, uma maravilha. Drama familiar denso, pesado, tristíssimo, o filme, no entanto, é de encher os cinéfilos de alegria e esperança: sucesso de público e crítica, ele veio comprovar, mais uma vez, que há espaço, sim, para filmes sérios, voltados para platéias maduras.
Aleluia!
Que maravilha ver o sucesso de um filme sobre seres humanos, gente como a gente, e não sobre super-heróis, bandidos ou civilizações imaginárias à la Game of Thrones.
Um dos filmes com várias indicações ao Oscar de 2017, o ano de La La Land, Manchester by the Sea ainda tem mais esta bela característica: assim como o musical de Damien Chazelle, é um filme de um diretor novo, ainda pouco conhecido. O bom cinema americano se renova, mostra vitalidade.
Não que Kenneth Lonergan, o autor da história e do roteiro e diretor do filme, seja tão jovenzinho como Damien Chazelle. Não é. Lonergan nasceu em Nova York em 1962 – mas este aqui é apenas seu terceiro filme, depois de Conte Comigo/You Can Count on Me, de 2000, e Margaret, de 2011, dois dramas sobre pessoas comuns, exatamente como Manchester by the Sea.
Que beleza ver sangue novo, diretor ainda em início de carreira fazendo filmes adultos para adultos.
O filme rendeu 7 vezes mais o que custou e ganhou 111 prêmios
O filme custou US$ 8,5 milhões – uma bagatela, uma mixaria, se comparado às grandes produções do cinemão americano. Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) custou US$ 257 milhões. Exatamente o mesmo orçamento de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada (2012). O Espetacular Homem-Aranha (2012) custou 236 milhões.
Estreou nos Estados Unidos em novembro de 2016, e, em apenas seis meses, até abril de 2017, havia faturado US$ 47 milhões só no mercado americano. Com US$ 14,5 milhões no resto do mundo, rendeu em meio ano US$ 62 milhões, mais de 7 vezes o que custou.
Para um filme sério, um drama familiar para público maduro, isso é um fenômeno. Um maravilhoso fenômeno.
Foram 6 indicações ao Oscar: ator para Casey Affleck, roteiro original, filme, diretor, atriz coadjuvante para Michelle Williams, ator coadjuvante para Lucas Hedges. Casey Affleck levou o Oscar de melhor ator e Lonergan, o de melhor roteiro original.
Casey Affleck também levou o Globo de Ouro de melhor ator em drama, e ainda o Bafta. O roteiro também levou o Bafta.
Os números totais são acachapantes: o filme conquistou 111 prêmios ao redor do mundo, fora outras 234 indicações.
Lee, o protagonista, é trabalhador, mas tem acessos de grande violência
Kenneth Lonergan conta a história de Lee Chandler (o papel de Casey Affleck), um homem simples, trabalhador braçal de Massachusetts, o rico Estado da Nova Inglaterra, entremeando fatos do passado aos da época atual.
Fatos do passado e do presente são apresentados sem qualquer aviso de que há um longo espaço de tempo entre uns e outros. Os tempos se misturam, e isso – o espectador percebe logo – é absolutamente proposital.
A primeira sequência mostra Lee Chandler brincando com um garoto aí de uns seis anos de idade. Veremos que o garoto, Patrick, é sobrinho dele, filho de seu irmão Joe (Kyle Chandler). Estão os três, nessa sequência de abertura, num barco de pesca, pilotado por Joe.
O garoto Patrick é interpretado por Ben O’Brien.
A sequência mostra que tio e sobrinho se dão muitíssimo bem, se gostam, são íntimos.
Corta, e vemos várias sequências de Lee Chandler trabalhando duro. Tira pesadas camadas de neve da frente de um prédio; em um apartamento, desentope a privada; em outro, cuida de problemas de encanamento.
É zelador e faz tudo de um conjunto de três prédios em um bairro periférico de Boston, a capital de Massachusetts e a maior metrópole da região da Nova Inglaterra.
No terceiro ou quarto apartamento em que o vemos, chamado para resolver mais um problema, diante de uma mulher chata, insistente, um tanto grosseira, Lee perde a paciência, a polidez, e responde com dureza.
Logo é chamado às falas pelo seu superior.
Num bar, depois de beber um tanto, cava uma briga com dois sujeitos, parte para cima deles com violência incontrolável.
Com bem menos de dez minutos, o filme já conseguiu dar ao espectador um bom retrato desse Lee Chandler. É um sujeito que trabalha muito, trabalha duro – mas tem pavio curto, e é dado a ataques de violência descomunal.
Quando estamos aí com pouco mais de dez minutos de filme, Lee recebe um telefonema: Joe, seu irmão mais velho, está internado no hospital de Beverly, cidade bem próxima de Manchester by the Sea, a cidade da família Chandler.
Lee rapidamente arranja com colegas um jeito de cobrirem sua ausência no trabalho no prédio, e faz a viagem de duas horas e meia entre Boston e o lugar onde sempre viveu.
Lee saiu de sua cidade faz muito tempo, mas seu nome ainda é conhecido lá
Ao chegar ao hospital, Lee já é recebido com a notícia de que Joe havia morrido.
Havia muitos anos que os médicos diagnosticaram que Joe tinha um problema de coração. Ele havia sido hospitalizado algumas vezes. Dessa vez não resistiu.
Lee vai pegar o sobrinho Patrick na escola. Será ele que dará a notícia da morte do pai. Patrick agora já é um adolescente, um garoto altão, que aparenta até mais que os 16 anos que tem.
Patrick adolescente é interpretado por Lucas Hedges, jovem ator de talento.
Não há referência a datas, não se fala explicitamente quando foi que Lee deixou Manchester by the Sea e foi morar e trabalhar em Boston.
Como as sequências de Patrick garotinho o mostram com uns 6 anos, e ele agora está com 16, dá para o espectador inferir que Lee pode ter se mudado para Boston, e ficado distante do irmão e do sobrinho por um período longo, ao redor de dez anos.
O espectador é levado a perceber que há pessoas ali na pequena Manchester by the Sea que se lembram muito bem de Lee, que seu nome é conhecido. Duas pessoas da cidade, ao saber que ele está lá, se referem a ele como “o Lee Chandler” – com imenso realce para o artigo.
No entanto, não fica claro para o espectador, de forma alguma, por que motivo é que o nome diz algo para os moradores, mesmo ele tendo saído da cidade há bastante tempo.
A história simplesmente não poderia ser contada na ordem cronológica
Kenneth Lonergan construiu seu roteiro de tal forma a muito propositadamente não abrir de cara as informações para o espectador. As peças do passado de Lee só vão sendo apresentadas bem aos poucos.
O filme vai deixando extremamente claro que há algo no passado de Lee Chandler que é muito importante. Algo um tanto secreto, talvez. Mas que há algo estranho, disso não há dúvida – algo que explica por que ele é aquela pessoa tão amargurada, tão fechada, tão solitária, e sujeita aos súbitos ataques de violência.
Fiquei achando que Lee Chandler poderia ter cometido um crime, ter passado um tempo na cadeia. Bem provavelmente muitos espectadores poderão pensar isso.
O grande crítico Roger Ebert, que com toda certeza teria aplaudido entusiasticamente Manchester by the Sea, gostava de falar mal dos roteiros que usam e abusam dessa coisa de ir e voltar no tempo, de a toda hora interromper a narração dos fatos do presente para mostrar flashbacks.
Também não gosto do excesso de idas e vindas no tempo, esse pingue – mas a verdade é que há histórias que perderiam muito do seu impacto caso fossem contadas na absoluta ordem cronológica. A história da trágica vida de Lee Chandler é um exemplo perfeito disso.
Manchester by the Sea não poderia contar sua história de outra maneira senão a escolhida pelo autor.
É só quando o filme está com 50 minutos, quase a metade de seus 137 minutos de duração, que o espectador fica sabendo qual foi a tragédia que aconteceu na vida do protagonista da história.
É uma tragédia grande demais, inimaginável, inominável.
Revelar o que aconteceu seria muito mais que spoiler: seria um crime.
Só gostaria de registrar que naquele momento, quando o filme está com 50 minutos, a interferência de imagens de flashbacks na narrativa aumenta demais – mas não é sem sentido, não é gratuito. Muito ao contrário. É o momento de um grande, um enorme clímax dramático.
É também naquele mesmo momento que se revela o cerne do que haverá a partir daí na vida de Lee Chandler: ele terá que assumir a responsabilidade de cuidar do sobrinho menor de idade.
Ele, que não sabe sequer cuidar de si mesmo.
Um filme em que é marcante a qualidade de todo o elenco
Uma das maiores qualidades deste grande filme são as interpretações.
Manchester by the Sea é um daqueles filmes que impressionam demais pela excelência do elenco como um todo.
É uma coisa extraordinária. É algo que faz lembrar, só para dar uns poucos exemplos, A Última Sessão de Cinema (1971), de Peter Bogdanovich, Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn (1945), de Elia Kazan, 12 Homens e uma Sentença/12 Angry Men (1957), de Sidney Lumet.
Os três diretores citados aí são dos mais sensacionais diretores de atores da História. Vinte e um atores foram indicados para o Oscar em filmes dirigidos por Kazan; nove deles levaram a estatueta para casa. Não achei essa estatística referente a Lumet, mas seguramente os números também são estrondosos. Bogdanovich, que fez menos filmes que Lumet e Kazan, dirigiu seis atores em atuações que mereceram indicações ao Oscar, e três deles ganharam o prêmio.
Com uma filmografia de apenas três títulos, Kenneth Lonergan já dirigiu quatro atores em atuações indicadas ao Oscar. Laura Linney foi indicada ao prêmio por Conte Comigo, o primeiro longa de Lonergan. E nada menos que três atores de Manchester by the Sea tiveram indicações aos prêmios da Academia, como já foi dito acima – Casey Affleck levou, e Michelle Williams e Lucas Hedges também foram indicados.
A última sequência de Casey Affleck e Michelle Williams é de chorar – e muito
Quis citar aqueles três diretores e esses números do Oscar como uma prova, uma demonstração clara, cabal, do talento de Lonergan como diretor de atores. O Oscar não é infalível (muitíssimo ao contrário), mas serve como um ótimo indicador – e a comparação com os nomes respeitabilíssimos de Kazan, Lumet e Bogdanovich serve perfeitamente para colocar esse diretor de poucos títulos num patamar elevadíssimo.
Faço aqui um testemunho pessoal: não gosto desse rapaz Casey Affleck. Tive por ele, desde que o vi pela primeira vez, uma antipatia grande, forte. Não saberia dizer por quê, não saberia dar razões lógicas. Foi uma coisa de santo que não combina com o do outro – uma coisa gratuita, sem explicação.
(É uma coisa até interessante, porque simpatizo com o irmão mais velho dele, Ben – gosto dele como ator e acho muitos bons dois filmes que dirigiu, Atração Perigosa, de 2010 e Argo, de 2012. E Ben Affleck, nem sei bem por que, virou saco de pancada de boa parte da imprensa americana…)
Já Michelle Williams, admiro e respeito como uma das grandes atrizes de sua geração, uma geração especialmente rica em boas atrizes. (Ela é de 1980, da geração de Sarah Poley, Rosamund Pike, Deborah Secco, Christina Ricci, Natalie Portman, Bryce Dallas Howard, Anne Hathaway, para citar só algumas.)
Michelle Williams aparece bem pouco em Manchester by the Sea.
Casey Affleck aparece na maior parte das sequências. É absolutamente natural: o filme é a história de Lee Chandler.
Já Michelle Williams aparece em não mais que cinco sequências, creio. Talvez sejam apenas quatro. Não fiz uma conta rigorosa.
A última sequência em que Michelle Williams aparece, uma sequência bem longa, ela contracenando com Casey Affleck, já mais para o final do filme, é acachapantemente bela – e acachapantemente triste.
É uma sequência poderosa. Como cinema, é antológica. Mas aí o que mais importa não é um julgamento estético – naquele diálogo, o espectador é envolvido pelos personagens. É como se ele estivesse presenciando um diálogo de um grande amigo dele com a ex-mulher. Ou vice-versa, como se ela, a espectadora, estivesse junto de uma amiga que conversava com o ex dela.
Ali do meu lado, Mary depois comentou que, durante aquele diálogo, chorou desbragadamente.
Não é para menos.
O filme foi um projeto que envolveu um grupo de amigos
É fascinante saber que este filme sobre um homem a quem a vida reservou uma tragédia inimaginável, incomensurável, indizível, e por causa disso se transformou em pessoa amargurada, fechada, solitária, seja um projeto que envolveu amigos, amizade, simpatia.
Kenneth Lonergan assina sozinho argumento e roteiro: “Written and directed by Kenneth Lonergan”, dizem os créditos. E quando os créditos dizem writen by, escrito por, eles querem dizer que o cara é o autor do argumento – a história, a trama original – e do roteiro que permite transformar a história em um filme, imagens em movimento, moving pictures, movies, cinema.
Segundo atesta a página de Trivia do IMDb sobre o filme – uma página imensa, com 74 itens –, a idéia básica a partir da qual mais tarde foi escrito o roteiro de Manchester by the Sea foi de Matt Damon e John Krasinski.
Damon e Krasinski são contemporâneos e conterrâneos, ambos nascidos em Massachusetts, a poucos quilômetros de distância um do outro, o primeiro em Cambridge, o segundo em Newton. Consta que, em 2011, durante as filmagens de Os Agentes do Destino/The Adjustment Bureau, em que Matt Damon contracena com a inglesa Emily Blunt, mulher de Krasinsky, este veio com a idéia de uma história em que um personagem volta para sua cidade natal para cuidar de um parente que tinha ficado órfão.
Consta também que Matt Damon gostou tanto da idéia que pensou em fazer o papel do protagonista da história e dirigir o filme a ser produzido a partir daquele ponto de partida.
Aqui acho que é bom lembrar que lá atrás, bem atrás, Matt Damon e seu amigo de infância Ben Affleck criaram uma história e a partir dela desenvolveram um roteiro. Gus Van Sant pegou o roteiro dos garotos e transformou-o em Gênio Indomável/Good Will Hunting, lançado em 1997, os dois autores do roteiro trabalhando como atores num elenco encabeçado por Robin Williams. Na cerimônia do Oscar de 1998, Robin Williams levou a estatueta de melhor ator, e a dupla Damon-Affleck, a estatueta de melhor roteiro original.
Matt Damon planejava produzir o filme e fazer o papel principal
Tendo trabalhado no primeiro filme dirigido por Kenneth Lonergan, Matt Damon, com o apoio do amigo John Krasinski, chamou o outro amigo para participar do projeto. Sugeriu que Lonergan – que paralelamente aos trabalhos no cinema tinha uma premiada carreira como dramaturgo – trabalhasse a partir daquela idéia, fizesse o roteiro de um filme.
Lá pelas tantas, o plano era que Lonergan dirigisse, com Matt Damon – um grande astro, bilheteria garantida – no papel central e também como produtor. Montes de outros compromissos afastaram Damon do projeto. E o papel central acabou caindo no colo do irmão mais novo de Ben Affleck.
A vida é assim. Às vezes uma sorte grande cai sobre uma pessoa – como caiu sobre Casey Affleck o papel que Matt Damon tinha pensado que seria seu.
Às vezes cai sobre um uma pessoa que não é má, que de forma alguma não é má, um tragédia absolutamente inimaginável, inominável, como a que cai sobre esse pobre, pobre, pobre Lee Chandler.
E nós sabemos de nada, não compreendemos coisa alguma do que está acontecendo, por que está acontecendo.
Kenneth Lonergan poderia ter botado num rádio de carro, de bar, a canção de Paul Simon que é tão desesperadoramente triste como a história de Lee Chandler contada no filme: “God makes his plan / The information’s unavailable to the mortal man / We’re workin’ our jobs, collect our pay / Believe we’re gliding down the highway, when in fact we’re slip sliding away”.
Perde demais, mas é mais ou menos assim: Deus faz seu plano. A informação não está acessível ao homem mortal. Trabalhamos em nossos empregos, recebemos nossos salários. Acreditamos que estamos brilhando pelo caminho, quando na verdade estamos apenas deslizando de lado.
Anotação em maio de 2017
Manchester à Beira-Mar/Manchester by the Sea
De Kenneth Lonergan, EUA, 2016
Com Casey Affleck (Lee Chandler)
e Lucas Hedges (Patrick), Michelle Williams (Randi), Kyle Chandler (Joe Chandler), Gretchen Mol (Elise), C.J. Wilson (George), Kara Hayward (Silvie), Anna Baryshnikov (Sandy), Ben O’Brien (Patrick menino)
e, em participação especial, Matthew Broderick (o novo marido de Elise)
Argumento e roteiro Kenneth Lonergan
Fotografia Jody Lee Lipes
Música Lesley Barber
Montagem Jennifer Lame
Casting Douglas Aibel
Produção Amazon Studios, K Period Media, Pearl Street Films, The Media Farm.
Cor, 137 min (2h17)
****
Disponível no Now
Olá Sérgio!
Interessante que não vi este filme porque não simpatizo com esse ator! Lendo seu excelente texto vi que vc também tem o mesmo sentimento a esse ator! Eu também, e não sei o por quê dessa antipatia gratuita!
vou tentar assistir! Abraço Sérgio!
Olá Sérgio!
Realmente achei excelente esse filme! Que história triste, muito bem contada e nos deixa com o coração na mão!
Abraços
Acabei de ver o filme e fiquei tão fascinada, q vim correndo ler o q as pessoas escreveram sobre ele, e se alguém tinha sentido o mesmo q eu. Foi qdo achei o teu maravilhoso texto , com o qual estou absolutamente de acordo, exceto em ter citado a Débora Secco no rol das grandes atrizes. Isso destoou de tudo! Mas só foi um detalhe. O importante foi como vc transmitiu de maneira tão clara a sua compreensão do filme, as intenções do autor, etc. Eu tbém adoro filmes q mostram gente como a gente, q dão esse passeio pela alma humana,e tenho esperança q estes voltem a reinar no mundo do cinema!