Terra Prometida, de 2012, tem o selo de qualidade de Gus Van Sant, esse diretor que não desaponta nunca. É um filme muito bom, mas seu tema é bem distante ainda dos brasileiros, a não ser os especialmente interessados em fontes de energia e ecologia: a exploração do gás de xisto, que tem sido cada vez mais comum nos Estados Unidos, e seus efeitos sobre as comunidades rurais.
Matt Damon e John Krasinski fazem dois dos papéis principais, assinam o roteiro e estão entre os produtores do filme, uma co-produção EUA-Emirados Árabes Unidos.
Não que seja novidade Matt Damon, hoje um dos atores mais famosos e respeitados do cinema americano, assinar roteiros. É dele e de seu amigo Ben Affleck o roteiro de Gênio Indomável/Good Will Hunting, que o mesmo Gus Van Sant dirigiu em 1997. Na época, Matt Damon era um garotão de 27 anos, e Ben Affleck tinha apenas 25.
Mas é bem interessante que sejam dois atores os responsáveis pelo roteiro deste Terra Prometida – um roteiro corretíssimo, escrito com maturidade, experiência.
O elenco tem ainda a maravilhosa Frances McDormand, a bela Rosemarie DeWitt e o bom veteraníssimo Hal Holbrook.
O protagonista é ótimo no que faz porque conhece a fundo a vida rural
Quando a narrativa começa, Steve (o papel de Matt Damon) está recebendo dos chefes a missão de ir para uma pequena cidade rural específica para fazer seu trabalho: convencer os fazendeiros a assinar um contrato de cooperação para explorar gás de xisto ali. A empresa, a Global, é uma das maiores dessa atividade cada vez mais importante nos Estados Unidos; tem um valor de mercado – como um dirigente explica a Steve e ao espectador na sequência inicial – de US$ 9 bilhões.
Fica muito claro que conquistar os fazendeiros daquela cidade, especificamente, é algo importantíssimo nos planos da gigantesca empresa de gás. E fica muito claro também que Steve tem larga experiência no trabalho de campo, no trabalho de convencimento de fazendeiros. Seus números são recordes.
Nessa sequência inicial, o dirigente da corporação pergunta como ele consegue resultados tão bons – e Steve explica que ele conhece muito bem o assunto, conhece o mundo dos pequenos fazendeiros, porque ele mesmo é de Eldridge, Iowa, uma cidade rural exatamente igual a centenas e centenas de outras no interiorzão americano; foi criado na fazenda do avô, conhece profundamente aquele universo.
O nome da pequena cidade para onde ele viaja não é mencionado – a melhor forma de dizer que não importa, que poderia ser qualquer uma pequena cidade rural do país.
Lá Steve se encontra com Sue (o papel de Frances McDormand, na foto abaixo), sua colega de muitos trabalhos como aquele que vão iniciar agora.
Os representantes da corporação não mostram sinal de riqueza
O filme vai então mostrando como é o modus operandi dos representantes das grandes empresas exploradoras de gás. É fundamental que eles não aparentem riqueza; Sue havia alugado um carro velho; ficam hospedados num motel simples; vão a uma loja da cidade para comprar roupas locais, iguais às que os pequenos fazendeiros usam.
Vemos Steve negociando com um fazendeiro, e Sue negociando com uma mulher.
Eles oferecem a perspectiva de muito, muito dinheiro para aquelas pessoas, pelo uso de suas terras para a perfuração à procura do gás.
Steve tem um encontro com Gerry Richards (Ken Strunk), um político local. (Não fica muito claro, ou então não fui capaz de entender direito, se Gerry é o prefeito ou o presidente da Câmara de Vereadores, mas isso não importa.)
Depois de um início de conversa cordial, Gerry quer saber quanto ele vai levar. Steve estipula US$ 30 mil, Gerry acha ridículo – mas Steve demonstra firmeza, apresenta números, proporções, explica que as outras cidades da região também farão negócios com a Global e que ele pode ficar para trás, perder o bonde da História.
Consegue dobrar Gerry.
À noite, no bar da cidadezinha, Steve conhece Alice (o papel de Rosemarie DeWitt, na foto abaixo). O diálogo inicial entre os dois é gostoso.
Alice: – “Deixe eu adivinhar: 40, casado, marketing, dois filhos.
Steve: – “38, stripper/garçonete, mas nascido/a para ser cantor/a.”
Alice: – “Vá se foder, sou professora!”
Steve: – “Eu estava falando de mim! Quer ver uma dança? São cem paus.”
Nessa noite, Steve toma um porre homérico. Tão homérico que acorda na manhã seguinte na casa de Alice – e é informado por ela de que nada aconteceu entre os dois, até porque ele dormiu depois de vomitar.
Veremos depois, ao longo de toda a narrativa, que Steve bebe além do aceitável; é um profissional competente, mas tenso, e bebe muito.
Um jovem chega à cidade para falar dos malefícios da procura do gás
E então Steve chega numa ressaca horrorosa para uma reunião dos fazendeiros, convocada pelo político Gerry, no ginásio de esportes da cidade.
Gerry fala ao microfone para a assembléia. Parece que vai ser fácil – mas um senhor bem idoso, Frank Yates (o papel de Hal Holbrook), pede a palavra e alerta para os problemas causados pela perfuração das rochas subterrâneas até chegar aos veios de gás.
Steve pede a Gerry para assumir o microfone. Tem certeza de que sua argumentação será sólida. Frank Yates – que se apresenta ao forasteiro como sendo professor de Ciências da escola local – o derruba por nocaute.
Em uma teleconferência com superiores via laptop, Steve e Sue são informados do que Frank Yates não é apenas um professorzinho naquela cidedezinha; está agora aposentado, dá aula mais por diversão, mas é um cientista renomado, com passagem pelo MIT, o Massachusetts Institute of Technology, entre outras coisas.
A situação de Steve e Sue piora ainda mais, e muito, com a chegada á cidade de um jovem que se identifica como de uma entidade ambientalista. Chama-se Dustin (é o papel de John Krasinski, na foto abaixo), e vai se demonstrar muitíssimo bem treinado, muitíssimo preparado – e com muitos, muitos, muitos recursos materiais – para demonstrar aos fazendeiros os imenso prejuízos provocados pelo fracking (este é o nome do método de busca do gás de xisto, que vem de hydraulic fracturing – fraturamento hidráulico).
É uma luta de Golias contra Davi – mas o filme foge do maniqueismo
Como sempre, me estendi ao relatar o início da trama – mas isso aí não tem spoiler. Tudo isso aparece nos primeiros 15, no máximo 20 minutos do filme. Muita coisa virá a seguir.
De um lado, uma corporação gigantesca, bilionária. No caso específico, uma corporação de US$ 9 bilhões de dólares, como é salientado já na primeira seqüência. Corporações gigantescas, que buscam o lucro não se importando com mais nada. Do outro lado, pequenos fazendeiros, gente trabalhadora, a América profunda, a América dos filhos dos desbravadores.
A luta entre os gigantes Golias e os pequenos Davis é uma das mais puras tradições do cinema americano, desde os grandes westerns. Outra das mais puras tradições é o fato de que os filmes sempre defendem o lado mais fraco – e os ambientalistas.
Uma das coisas fascinantes deste Terra Prometida é que ele apresenta a luta do gigante Golias contra os pequenos Davis, na maior parte da narrativa, de uma maneira cheia de nuances. O roteiro dos jovens Matt Damon e John Krasinski e a direção segura de Van Sant evitam o maniqueísmo.
O personagem central, o Steve interpretado por Matt Damon, é uma figura pela qual o espectador dificilmente deixará de sentir simpatia. O próprio Steve diz várias vezes ao longo do filme que ele não é um cara ruim: “I’m not a bad guy”. Ele acredita no que faz. Entende que é necessário investir em energia alternativa ao petróleo e ao carvão; está convencido de que a agressão ao ambiente com o fracking não é tão grande quanto alardeiam os ambientalistas. E crê, sinceramente, que o contrato de cessão de parte das fazendas para a perfuração vai melhorar a vida dos fazendeiros.
Steve tem o exemplo de sua própria cidade natal, em Iowa: quando uma fábrica de tratores da região que dava centenas de empregos fechou, na época em que ele fazia faculdade, as cidades murcharam, esvaziadas economicamente.
Não há longa discurseira sobre esses temas ao longo do filme; as informações são passadas nos diálogos, na própria ação.
Embora não haja discurseira, propaganda ideológica, o filme mostra que os pequenos fazendeiros não têm mais condições de manter uma vida confortável, com dinheiro para mandar os filhos para boas escolas, apenas com sua pequena produção local.
Não há apenas preto e branco: a zona cinzenta entre o Bem e o mal é imensa
Achei essa característica do filme fantástica: o representante da grande corporação não é um safado, um filho da mãe que está ali para escorchar aquela pobre gente – gente que afinal é igual a ele e a seus amigos de infância e adolescência. Steve é um sujeito bem intencionado. Sim, deve ganhar os tubos, tem em vista uma promoção a vice-presidente de alguma coisa no corporação – mas, sobretudo, ele acredita no que faz.
Não há apenas preto e branco, no filme de Gus Van Sant – ou não seria um filme de Gus Van Sant. A zona cinzenta entre o Bem e o Mal é imensa.
O autor da história original, Dave Eggers, e os dois atores-roteiristas encontraram uma forma de levar a um desfecho que é ao mesmo tempo impactante – embora não imprevisível.
Como o tema é complexo, e pouco conhecido, reproduzo o que diz um especialista
Eu, quieto aqui no meu cantinho, confesso que não tenho opinião formada sobre essa coisa do fracking, do gás de xisto. Em primeiro lugar, por pura falta de conhecimento sobre o assunto. Em segundo lugar, porque, assim como o filme de Van Sant, a realidade sobre essa fonte de energia não é tão simples, tão banal quanto a divisão clara entre o Bem e o Mal.
Petróleo e carvão são fontes de energia altamente poluidora. Quanto a isso, não cabe discussão – e, portanto, é mesmo necessário encontrar fontes alternativas.
Isto aqui é um site sobre filmes, e não sobre economia ou ecologia. Sei disso. Mas, como Terra Prometida é muito provavelmente o primeiro filme a discutir a questão do gás de xisto, e o tema é complexo, acho que vale a pena transcrever parte de um artigo do professor José Goldemberg sobre o assunto, publicado no Estadão este ano. Goldemberg é um dos maiores especialistas em energia do país, é um técnico preparadíssimo, e portanto sua opinião não tem viés político-ideológico. Como é técnico, está acima da gritaria dos ambientalistas xiitas, para os quais qualquer ação humana é criminosa:
“A possibilidade técnica de usar esse gás é conhecida há muito tempo, mas o custo de exploração só a tornou viável nos últimos anos. A partir do ano 2000 houve uma ‘explosão’ no aumento da produção: em 2000 o gás de xisto representava 1% do gás natural produzido nos Estados Unidos, em 2010 eram 20% e existem previsões de que em 2035 serão quase 50%.
“Com isso os Estados Unidos, que até recentemente importavam gás, estão começando a exportar. Além disso, os preços do gás caíram drasticamente nesse país, que está importando menos petróleo, uma vez que aquele combustível vem substituindo derivados do petróleo tanto na indústria quanto no transporte.
“Havendo mais petróleo disponível no mundo, os seus preços tenderão a cair, tornando inviáveis projetos para sua produção, muito caros. Até a exploração do pré-sal no Brasil poderia ser afetada por essa queda de preços.
“Estamos, pois, diante do que poderá ser uma nova revolução energética e da ascensão de uma ‘era do gás’, como foi a do carvão no século 19.
“Quão realista, todavia, é essa possibilidade?
“Xisto é uma camada de mineral situada a três ou quatro quilômetros abaixo da superfície do solo, na qual gás se encontra aprisionado. É preciso “fraturar” o xisto para libertar o gás, o que é feito com jatos de água a alta pressão, a qual se adicionam certas substâncias químicas. É nessa área que muitos progressos tecnológicos ocorreram entre os anos de 1980 e 2000. Existem camadas de xisto no subsolo em muitos países do mundo, o Brasil incluído.
“Há, porém, problemas para a sua utilização, que são de diversos tipos: viabilidade econômica, que depende do tamanho da reserva de gás; duração da produção de gás, uma vez que os depósitos de xisto são finitos; problemas regulatórios na autorização para perfurar poços; e problemas ambientais.
“Nos Estados Unidos houve uma combinação favorável de fatores que permitiu o rápido sucesso da exploração. Em primeiro lugar, naquele país o subsolo é propriedade do dono da terra e a decisão de perfurar é dele; no Brasil, por exemplo, o subsolo é da União e a exploração exige autorização do governo federal. Em segundo lugar, as exigências ambientais eram poucas no início da exploração e existiam grandes depósitos de xisto.
“É essa combinação que explica por que num curto período de dez anos foram abertos cerca de 20 mil poços de gás de xisto nos Estados Unidos. Mas é pouco provável que todas essas condições favoráveis se repitam tanto na Europa como em outras partes do mundo. Problemas ambientais já levaram até os Estados de Nova York, da Pensilvânia e do Texas a introduzir regulamentações mais exigentes. Na França a exploração de gás de xisto foi proibida.
“Os problemas ambientais originam-se no fato de que grande quantidade de água tem de ser usada, misturada com areia e um “coquetel” de substâncias químicas (cuja composição tem sido mantida confidencial pelas empresas) para ‘fraturar’ o xisto. Cerca de 50% a 70% da água injetada é recuperada e trazida de volta para a superfície, onde é colocada em lagoas que podem poluir o lençol freático. Além disso, o gás liberado do xisto não é metano puro, vem acompanhado de nitrogênio (que não queima) e de várias impurezas, como sulfato de hidrogênio (que é tóxico e corrosivo), tolueno e outros solventes.”
A discussão sobre esse tema árido vai ser cada vez mais necessária
Não é só no Brasil recente que tudo se transforma em Fla x Flu. Nos Estados Unidos – eternamente dividido entre os contra e os pró-direito ao aborto, entre os contra e os pró-pena de morte, entre os contra e os pró-morte com dignidade, nos últimos anos também entre evolucionistas e criacionistas, há já uma clara divisão entre os contra e os pró- fracking.
Segundo uma matéria do New York Times citada no IMDb, quando Terra Prometida estreou, em janeiro de 2013, havia espectadores com buttons protestando contra a exploração do gás de xisto, cartazes sobre a catástrofe ambiental que seria gerada por ela, e, de outro lado, cidadãos com cartazes defendendo o fracking, dizendo que ele traz dinheiro e empregos.
Definitivamente, não há nada simples na vida.
Terra Prometida é um belo filme. E a discussão sobre o tema – embora ele seja árido, duro, difícil, até chato – vai ser cada vez mais necessária.
Ah, sim: vai para a galeria das Coisas que Jamais Conseguirei Compreender a frase que os caras de marketing da Universal botaram na capa do DVD do filme no Brasil, atribuída a um tal de film.com: “Fantasticamente divertido”.
Como assim, divertido? Tudo neste filme é de uma seriedade total, absoluta!
Anotação em dezembro de 2012
Terra Prometida/Promised Land
De Gus Van Sant, EUA-Emirados Árabes, 2012
Com Matt Damon (Steve Butler), John Krasinski (Dustin Noble), Frances McDormand (Sue Thomason), Rosemarie DeWitt (Alice), Hal Holbrook (Frank Yates), Ken Strunk (Gerry Richards)
Roteiro John Krasinski e Matt Damon
Baseado em história de Dave Eggers
Fotografia Linus Sandgren
Música Danny Elfman
Montagem Billy Rich
Produção Focus Features, Participant Media, Image Nation Abu Dhabi . DVD Universal
Cor, 106 min
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2 Comentários para “Terra Prometida / Promised Land”