Pieces of a Woman

2.0 out of 5.0 stars

Pieces of a Woman, o filme lançado no Brasil sem título em Português pela Netflix, que vem rendendo à inglesa Vanessa Kirby elogios e prêmios merecidíssimos, descarta, joga fora no lixo uma característica que torna o cinema melhor que a vida real: a possibilidade de se dar um corte.

A qualquer momento, o cinema pode cortar uma cena – e segundos depois passar para outra. É a magia que se chama montagem em Português, editing em Inglês. Corta – a tela fica negra por meio segundo, dois segundos, quanto o montador quiser, no que é o fade out. Aí vem fade in, o negro da tela desaparece, surge outra cena, outra tomada.

Entre o fade in e o fade out pode-se passar um minuto – ou um ano, ou uma década. O quanto o roteirista e o diretor quiserem.

A pessoa é obrigada, por exemplo, a atravessar uma imensa distância em um terreno deserto, sem uma única árvore, num calor escaldante, céu sem uma única nuvem. A água acaba.

Se fosse na vida real, o desconforto, o desespero, o horror durariam o tempo que tivessem que durar. Horas e mais horas e mais horas. Se fosse um filme, bastaria um corte, um fade in, um fade out – e a pessoa já estaria em casa, se recuperando, uma garrafa de água gelada ao lado, ventilador ligado.

O cinema é melhor que a vida real porque você pode cortar o momento do sofrimento horrível e ir em frente.

Pois Pieces of a Woman joga essa mágica do cinema no lixo, e obriga o espectador a assistir, sem cortes, a longos, apavorantes, excruciantes, intermináveis 30 minutos de uma mulher tendo as horríveis dores do parto – essas dores que, todos dizem, são as mais fortes que um ser humano é capaz de suportar.

Pior: parece que as coisas não estão indo bem.

E aí, ao final desses 30 minutos, o espectador que tiver aguentado tanto sofrimento vê que o bebê morreu.

O filme vai entrar para a História, já entrou para a História. Nenhum outro ousou tanto.

Palmas para os realizadores. Palmas e prêmios, muito prêmios para Vanessa Kirby, ótima atriz, num desempenho extraordinário, desde já  histórico.

Muito bem. Agora convenhamos: assistir a Pieces of a Woman é uma experiência de masoquismo. Absoluto masoquismo.

O filme se baseia em experiência pessoal da roteirista

A autora do argumento e do roteiro, Kata Wéber, e o diretor, Kornél Mundruczó, passaram pela experiência terrível vivida no filme pelos personagens interpretados por Vanessa Kirby e Shia LaBeouf. Kata perdeu um filho. Segundo consta, diante da angústia da perda, de sua incapacidade de enfrentar a situação, Kata Wéber, húngara como o companheiro Kornél Mundruczó, deixou Budapeste e foi viver em Berlim durante uma temporada. E foi lá que escreveu o roteiro.

– “Eu tive que sair (de Budapeste, sua cidade) para me expressar, longe da minha filha e de Kornél”, diria ela, depois, em uma entrevista. “Eu sentia como se meu corpo tivesse sido tirado de mim, porque tantas pessoas à minha volta estavam dando suas opiniões sobre a perda da criança.”

(Ela usa em inglês miscarriage, que significa aborto espontâneo, natural.)

– “Meu corpo não pertencia mais a mim. Para consegui-lo de volta, tive que escrever, o que foi também uma espécie de terapia para mim.”

Além da sua experiência pessoal, a autora usou também, para escrever o roteiro, as idéias de Ágnes Geréb, uma famosa obstetra húngara que defende com firmeza que o parto seja natural, em casa – como o que o casal Martha e Sean tentam no filme.

Conta-se que Vanessa Kirby – essa atriz nascida em Londres em 1988, que Mary, eu e milhões de pessoas conhecemos interpretando a jovem princesa Margaret nas duas primeiras temporadas de The Crown, e  fez Zelda Fitzgerald em O Mestre dos Gênios – obteve uma cópia do roteiro e ficou tão fascinada que viajou até Budapeste para conversar com Kata Wéber e Kornél Mundruczó. Queria desesperadamente interpretar a protagonista, Martha. O casal ficou impressionado com o carisma da atriz, achou que o rosto dela fazia lembrar antigas estrelas do cinema europeu, e a contrataram para o papel.

Vanessa, 32 anos de idade em 2020, o ano de lançamento do filme, nunca havia passado pela experiência de ficar grávida e dar à luz. Dedicou-se a pesquisar sobre gravidez, viu documentário, vídeos, acompanhou os trabalhos de parteiras em um hospital em Londres.

O trabalho de pesquisa e o talento da atriz resultaram em uma interpretação impressionante. Ao longo de torturantes 30 minutos, o espectador se vê de fato diante de uma mulher grávida tendo as dores do parto.

Confesso que desviei os olhos da tela em alguns momentos, e cheguei mesmo a sair da sala por instantes, para evitar presenciar tanto sofrimento.

Interpretações de fato fantásticas. E é só. 

Enquanto o filme ainda estava rolando, Mary e eu comentamos que Sean, o marido de Martha, parecia estar ainda mais despedaçado com a perda da filhinha do que a própria mulher. Sean – uma bela interpretação de Shia LaBeouf – demonstra mais abertamente sua angústia, sua dor, sua inconformidade com a tragédia da perda.

Martha aparenta dominar mais os terremotos interiores do que o marido – e, nisso, Vanessa Kirby demonstra um talento extraordinário. O espectador vê o sofrimento em cada gesto, em cada expressão do rosto de Martha, enquanto ela tenta tocar a vida – e vê também que ela está fazendo uma força imensa, descomunal, para conseguir essa coisa que parece absurda depois de tamanha perda, tentar tocar a vida.

As interpretações de Vanessa, de Shia LaBeouf e também da grande, maravilhosa Ellen Burstyn, que faz Elizabeth, a mãe de Martha, são de fato excepcionais – e são o que há de bom em Pieces of a Woman. Porque, de resto, ele não me pareceu um bom filme.

Não é uma boa trama, um bom roteiro. Não me parece muito crível que uma mulher bem educada, bem formada, de boa situação financeira, vivendo uma metrópole como Boston, hoje em dia, faça a opção de dar à luz em casa, apenas com a ajuda de parteira. Menos crível ainda é Martha se recusar a ir para um hospital quando fica claro que algo não está correndo bem no trabalho de parto.

Dá para compreender que Elizabeth, a mãe, e também Sean queiram ir à Justiça acusando a parteira, Eva (Molly Parker, na foto do alto), de negligência – até porque ela não era a parteira que vinha acompanhando Martha durante a gravidez. Aconteceu de, na hora em que começaram as contrações, a parteira em que o casal confiava estava ocupada em outro parto – e então ela mandou Eva ir em seu lugar.

Dá para compreender que, na dor, a mãe e o marido de Martha tenham querido encontrar alguém para culpar pela tragédia.

Mas é absolutamente imoral – e isso assustou Mary demais, deixou-a indignadíssima – que Elizabeth, mulher muito rica, tenha oferecido uma grande soma de dinheiro para que Sean desaparecesse da vida de Martha.

É absolutamente imoral, é um absurdo – Mary tem toda razão de se indignar. E é inaceitável que aquelas pessoas consigam conviver com tamanha imoralidade, que nem Sean nem Martha reajam a ela.

Cinco prêmios, 59 indicações, boas críticas

É isso. Pieces of a Woman me parece um filme que parte de uma agressão inominável ao espectador, e depois nos conta uma história frágil, inconsistente – que acaba compactuando com uma decisão imoral.

Mas, obviamente, isso é apenas minha opinião, e minha opinião tem o mesmo valor de qualquer outra pessoa. Jamais quis ser dono da verdade.

Vanessa Kirby acabou não levando o Oscar de melhor atriz, que foi para Frances McDormand por Nomadland, da chinesa Chloé Zhao. Ela foi indicada também ao Globo de Ouro, ao Bafta e ao prêmio da SAG, o Sindicato de Atores. O filme obteve no total cinco prêmios, fora outras 59 indicações.

O site Rotten Tomatoes, que reúne as avaliações de dezenas e dezenas de críticos e também de leitores, mostra que o filme teve 75% de boas avaliações de críticos e 85% entre os leitores.

Anotação em abril de 2021

Pieces of a Woman

De Kornél Mundruczó, Canadá-Hungria-EUA, 2020

Com Vanessa Kirby (Martha),

Shia LaBeouf (Sean),

Ellen Burstyn (Elizabeth, a mãe de Martha), Iliza Shlesinger (Anita, a irmã de Martha), Benny Safdie (Chris, o marido de Anita), Sarah Snook (Suzanne, a prima advogada), Molly Parker (Eva, a parteira), Tyrone Benskin (o juiz), Frank Schorpion (Lane, o advogado de Eva)

Argumento e roteiro Kata Wéber

Fotografia Benjamin Loeb

Música Howard Shore

Montagem Dávid Jancsó

Casting Jessica Kelly, Bruno Rosato, Kate Yablunovsky

Produção BRON Studios, Creative Wealth Media Finance, Little Lamb,Proton Cinema.

Cor, 26 min (2h06)

Disponível na Netflix em abril de 2021.

**

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