As Amigas / Le Amiche

Nota: ★★★☆

Em As Amigas, de 1955, seu quarto longa-metragem como realizador, Michelangelo Antonioni já antecipava as características básicas do que deixaria críticos e cinéfilos do mundo inteiro de queixo caído – e um monte de gente surpresa e indignada – cinco anos depois, com A Aventura, e logo em seguida A Noite (1961) e O Eclipse (1962).

Exatamente como os filmes que ficariam conhecidos como a Trilogia da Incomunicabilidade, As Amigas focaliza um grupo de pessoas da classe média alta, sem qualquer problema material. Burgueses. Algo esquisito, estranho, pouco usual, chocante mesmo para o cinema italiano, que, desde o fim da guerra em 1945, o país se recompondo, saindo das ruínas, produzia obras que mostravam a dureza, o sofrimento, a miséria dos trabalhadores, dos mais pobres, os deserdados.

O neo-realismo italiano, surgido dos escombros deixados pelos anos de fascismo e pela derrota na Segunda Guerra Mundial, foi muito provavelmente o movimento mais importante e influente de toda a História do cinema. Deixou marcas profundas que não pararam de ecoar ao longo das décadas; influenciou a nouvelle-vague francesa iniciada no finalzinho dos anos 1950, o cinema dos angry young men ingleses e o cinema novo brasileiro do início dos anos 60. Esteve na base do renascimento do cinema do Irã nos anos 90 e também no da Romênia pós-comunismo.

E os heróis do neo-realismo eram os homens do povo, os humilhados e ofendidos, os despossuídos. Jamais os burgueses, os opressores.

No começo da carreira, ligações com o neo-realismo

Antonioni começou a relação com o cinema da mesma maneira que os jovens franceses da nouvelle-vague: na crítica. Formado em Economia pela Universidade de Bolonha, mudou-se para Roma em 1939, o ano do início da guerra, e trabalhou no jornal Cinema, enquanto estudava direção no Centro Sperimentale. Sua primeira experiência foi como um dos roteiristas de Um Piloto Retorna (1942), de Roberto Rossellini – que viria a ser um dos principais nomes do neo-realismo, ao lado de Vittorio De Sica, Giuseppe De Santis, do escritor Cesare Zavattini, da roteirista Suso Cecchi D’Amico.

A romana Suso Cecchi D’Amico (1914-2010), provavelmente uma das melhores roteiristas da História do cinema, 130 títulos na filmografia, em filmes de praticamente todos os grandes realizadores italianos do pós-guerra, assina o roteiro de As Amigas ao lado de Antonioni. O roteiro é uma adaptação – parece que bastante livre – do romance Tra Donne Sole, de Cesare Pavese. Vou falar de Pavese mais adiante, mas era fundamental falar desde já da ligação que Antonioni teve com Rossellini, um dos papas do neo-realismo, e com a própria Suso Cecchi D’Amico – uma das autoras, só para dar um exemplo, de Ladrões de Bicicleta (1948), de De Sica, um dos maiores marcos do movimento, e de vários, vários filmes de Luchino Visconti, como Belíssima (1951), Sedução da Carne/Senso (1954) e Rocco e Seus Irmãos (1960).

É preciso ressaltar isto: Antonioni esteve próximo do neo-realismo. Nem poderia ser diferente. Seria impossível iniciar uma carreira no cinema italiano naqueles anos do pós-guerra sem estar de alguma forma ligado ao movimento.

Ainda como crítico, havia feito vigorosa defesa de A Terra Treme, de 1948, o filme em estilo documental que Luchino Visconti fez mostrando a duríssima vida dos pescadores na região de Catânia, na Sicília. Ele mesmo fez sua estréia na realização com um documentário – Gente do Pó, de 1947 – sobre a duríssima vida dos moradores das margens do Rio Pó, que corta o Norte da Itália de Oeste a Leste, e passa perto tanto de Turim quanto de Ferrara. Ferrara foi onde Antonioni nasceu, em uma família classe média, em 1912; Turim é a cidade industrial onde se passa a ação de As Amigas.

Em 1952, colaborou com outro iniciante na criação da história daquele que seria seu segundo filme como realizador, Abismo de um Sonho/Lo Sceicco Bianco. O iniciante, oito anos mais jovem que Antonioni, chamava-se Federico Fellini.

A partir dos anos 60, aqueles três – Visconti, Fellini e Antonioni – seriam unânime e globalmente considerados três dos maiores realizadores de todos os tempos. Cada um com seu estilo próprio, é claro – e estilos bem diferentes. Mas, naquele início dos anos 50, estavam todos ligados, de uma forma ou de outra, ao neo-realismo.

Para o cinema italiano, rico não presta, é porcaria

Pode talvez parecer que estou insistindo demais nesse tema, mas é que ele é fundamental para se compreender o contexto.

Um filme sobre os probleminhas bobos de um monte de burguesas em um filme italiano em 1955 era uma absoluta heresia. Tanto quanto seria, numa reunião do Partido Comunista Italiano – que, aliás, era o mais forte, poderoso e influente partido comunista do Ocidente –, denunciar o grande companheiro Stálin como genocida. Apenas em 1956, com a invasão da Hungria pelos tanques do Exército Vermelho, e com a denúncia dos crimes stalinistas pelo novo secretário-geral do PCURSS Nikita Kruschev, começaria a haver as primeiras dúvidas, entre os comunistas ocidentais, sobre a falibilidade do Deus Stálin.

O próprio Antonioni recuaria um tanto: no seu filme seguinte, O Grito, de 1957, o personagem central era um homem do povo, um mecânico. É verdade que Aldo sofre de problemas de coração e da mente, e não da falta das coisas materiais básicas, comida, teto – mas pelo menos é um mecânico, um homem do povo.

Em As Amigas, assim como em A Aventura, A Noite e O Eclipse, é tudo burguês, essa coisa horrorosa, nojenta. Como eu digo sempre: para o cinema italiano dos anos 50 (e também dos 60, e 70…), bom é trabalhador, gente do povo, que luta para ter as coisas mais básicas. Se neguinho tiver um pouco de dinheiro no banco já não é confiável. Rico, então, esse é filho da mãe, ruim da cabeça e doente do pé.

Uma moça chega de Roma para dirigir loja de moda

Momina De Stefani (o papel da francesa Yvonne Furneaux, que trabalhou nos cinemas francês, inglês e italiano entre 1952 e 1984) é a mais perfeita dondoca. Está separada de seu rico marido, que nunca vemos e não sabemos o que faz na vida, e torra à vontade o dinheiro dele. Tem amantes e frequenta festas. Na noite anterior ao dia em que a ação começa, havia ido a uma festa com sua amiga Rosetta (Madeleine Fischer). Por algum motivo que o filme não nos explica, a jovem Rosetta, em vez de voltar para casa, a bela casa em que vive com os pais, talvez um pouco distante da região central de Turim, foi dormir em um hotel.

É naquele hotel que a ação começa. A mulher que será a personagem principal da história (veremos que se chama Clelia, e é interpretada pela maravilhosa Eleonora Rossi Drago) está se preparando para tomar um banho quando uma camareira bate á sua porta. Explica que está tentando falar com a moça do quarto ao lado, mas ela não responde, e sua porta da frente está trancada. Poderia usar a porta interna que separa os dois quartos?

Mal Clelia autoriza a camareira a usar a porta, ela já está de volta, atravessando correndo o quarto da moça rumo ao corredor, gritando que ela está morta.

Clelia vai até o quarto ao lado, sente o pulso da moça deitada na cama, Rosetta. Não, ela não está morta. Clelia pega o telefone, pede ajuda.

Na tomada seguinte, Clelia está sendo interrogada por um policial. Rosetta havia ingerido um monte de pílulas. Aparentes tentativas de suicídio podem esconder crimes, e então ali está o policial.

Nesse momento, chega ao hotel para visitar Rosetta a elegante, cheia de si Momina. Fica conhecendo no quarto da amiga que já não estava ali, e sim em um hospital, o policial, que não tem qualquer importância na história, e a moça que ocupa o quarto ao lado, Clelia.

Vão ficar amigas, a cheia de si, dadivosa, egocêntrica Momina e a moça Clelia – que, saberemos em seguida, veio de Roma para administrar uma loja de exclusivas roupas femininas, filial de marca romana que está sendo aberta então ali em Turim.

Rapidamente Clelia ficará conhecendo as amigas de Momina. A começar pela própria Rosetta, a que tentou o suicídio – e saberemos que tentou o suicídio por amor a Lorenzo, um artista plástico (o papel de Gabrielle Ferzetti). Lorenzo vive com outra das amigas de Momina, Nene, também artista, escultora (o papel da grande diva Valentina Cortese). Há ainda uma outra amiga de Momina, Rosetta e Nene, chamada Mariella (Anna Maria Pancani), de quem ficaremos sabendo pouca coisa, além do fato de que é linda, loura e doida pra dar pra quem passar na frente dela.

Por uma dessas coincidências de que é feita a vida, o amante de Momina naquele momento é Cesare (o papel de Franco Fabrizi), o arquiteto que está cuidando da reforma de um antigo imóvel onde vai funcionar a loja de roupas que Clelia veio dirigir.

Que audácia perder tempo com burgueses!

Momina, uma absoluta dondoca. Rosetta, moça que não faz nada na vida, a não ser tentar se matar por amor. Nene, artista plástica. Mariella, loura linda dadivosa.

Cesare, arquiteto malandrão que trabalha pouco ou quase nada, deixando todo o trabalho duro para o chefe de obras Carlo (Ettore Manni). E que no momento é amante de Momina, a dondoca. Lorenzo, artista plástico que tem problemas de insegurança, e até uma certa inveja da mulher, que talvez tenha mais talento do que ele.

Convenhamos: não é lá uma galeria de personagens assim propriamente heróicos. Muito ao contrário. Um monte de uns inúteis, desprezíveis, arghhh! – burgueses!

(Jamais me esqueci da frase de Jean Sorel como Gianni para sua irmã Sandra-Claudia Cardinale, em Vagas Estrelas da Ursa, de Luchino Visconti, de 1965, que vi várias vezes na época do lançamento, adolescente cinéfilo em Belo Horizonte: – “Tu sei una piccola borghesa, Sandra, ma io, no!”)

Das cinco mulheres da história, apenas duas trabalham – Clelia e Nene. Mas Nene é artista, escultora, não tem patrão. A única das cinco que tem um emprego é Clelia, não à toa a protagonista, a figura central.

Clelia, o espectador fica sabendo quando o filme já está ali se aproximando da metade de seus 104 minutos, não é romana, não é da capital. Nasceu ali mesmo em Turim – num bairro de classe média baixa. Mudou-se para Roma, deve seguramente ter dado duro, ralado muito, trabalhado – e agora é uma mulher bem de vida, numa posição de gerente de uma loja de moda de respeito, bom nome.

Clelia se sentirá atraída por Carlo, o chefe da obra. Chegarão a ter um caso – mas o fato de que hoje é uma assalariada muito bem paga a distancia daquele sujeito que veio das classes populares.

As Amigas é um filme que fala sobre os probleminhas pessoais de gente horrorosa, burgueses, arghhhh! Mas fala também de questões de diferenças de classe – e fala com propriedade e sensibilidade.

Mas isso é a minha opinião hoje – e eu sou um sujeito velhinho, e portanto já muito mais maleável, condescendente. Que enxerga imensa coragem em um filme que foge da maré de seu tempo – até mesmo por ter como personagens centrais mulheres, numa sociedade tão machista quanto a italiana daqueles anos 1950.

Se fosse crítico de cinema em 1955, seguramente teria metido o pau em Antonioni – vigorosamente. Ora, mas que audácia do bofe perder tempo falando de burgueses, quando é necessário organizar a sociedade para derrotar o capitalismo!

É preciso compreender: este é um filme feito com coragem

Cesare Pavese nasceu em 1908, quatro anos, portanto, antes de Michelangelo Antonioni, e morreu, com apenas 42 anos, em 1950, em Turim – na mesma cidade das amigas de seu romance Tra Donne Sole, e da mesma causa da triste Rosetta, o suicídio.

Da mesma maneira que o conde Luchino Visconti, que Ettore Scola, que tantos e tantos e tantos diretores, atores, músicos e demais artistas italianos, foi filiado ao Partido Comunista.

O título da obra que Antonioni e Suso Cecchi D’Amico adaptaram para o cinema, Tra Donne Sole, tem um significado dúbio, diz o IMDb, em um dos cinco únicos itens da página de Trivia: “The literal translation of Cesare Pavese’s novella Tra Donne Sole is either ‘Among Women Only’ or ‘Among Lonely Women’.”

É bem verdade. Tra Donne Sole tanto pode ser “apenas entre mulheres” quanto ‘entre mulheres solitárias”, “entre mulheres sozinhas”.

Embora correndo o risco de ser repetitivo demais, insisto: fazer um filme sobre mulheres na machista Itália de meados dos anos 50 é uma atitude de grande coragem.

Fazer um filme sobre mulheres burguesas” na machista e filo-socialista Itália de meados dos anos 50 é algo para ser aplaudido de pé como na ópera.

“Desvendar os pensamentos mais secretos dos personagens”

Revi As Amigas para escrever sobre ele em novembro de 2020, e faço as contas – o filme foi feito 65 anos atrás! Diacho, é tempo demais. Não me lembro quando vi pela primeira vez – mas o fato foi que, ao rever agora, me preocupei muito mais com o conteúdo do que com a forma.

Sim: a partir de A Aventura, Antonioni se dedicou intensamente à forma. Há longos planos em que simplesmente não há ação – planos de lugares, de detalhes, de coisas, sem pessoas, sem personagens.

Confesso, não sem um pouco de vergonha, que ao rever As Amigas nem prestei tanta atenção a esse tipo de coisa.

A única exceção, creio, foi a longa, bem longa tomada da rua estreita e escura de Turim, quase ao final, depois da sequência do grupo todo reunido em um restaurante popular, simples, após Rosetta e Lorenzo terem uma dura conversa.

Aquela tomada – longa, e fulgurantemente bela – me impressionou demais. Mas confesso que, de resto, preocupado com a história, os personagens, os diálogos, nem percebi direito que Antonioni já estava refinando seu estilo, o estilo que exporia com perfeição cinco anos depois, em A Aventura.

Percebi que não soube prestar atenção à forma quando fui ver o que o Dicionário de Filmes do historiador Georges Sadoul fala sobre As Amigas.

Georges Sadoul afirma que “Antonioni disse ter gostado sobretudo, no romance (no qual se inspirou livremente), de seus personagens femininos, e seu tipo de vida interior”. Em seguida, o mestre transcreve um depoimento do próprio realizador:

“Falou-se de uma certa analogia entre Pavese e eu. As experiências intelectuais dele coincidiram tragicamente com suas experiências pessoais (ele se suicidou em 1950). Pode-se dizer o mesmo de mim? Não estou aqui fazendo filmes, prova de otimismo? Quanto a mim, quis situar meus personagens em seus quadros, não os separando de seus ambientes cotidianos. Também não se encontrará um só plano-contraplano em As Amigas. A técnica é instintiva e ligada ao desejo de acompanhar os personagens para desvendar seus pensamentos mais secretos.”

Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre Femmes Entre Elles, que é como Le Amiche se chamou na França:

“Antonioni analisa o comportamento de um grupo de mulheres e suas relações com os homens. Clelia serve de mediadora. Típico ainda do neo-realismo, este filme não deixa de ser importante, e trata de um tema maior na obra do cineasta: a dificuldade dos relacionamentos humanos.”

O crítico Stéphan Krezinski diz o seguinte, no Le Petit Larousse des Films: “É neste filme que (Antonioni) domina pela primeira vez seu estilo tão particular, dando preferência à dinâmica do enquadramento sobre a lógica psicológica dos deslocamentos de seus personagens. E se este filme se distingue dos seguintes, é que se trata de filmes de solidões, enquanto aqui Antonioni descreve um grupo de maneira orgânica, seguindo sua evolução e suas disposições, exatamente como se se tratasse de um processo químico.”

Ah, a linguagem dos críticos de cinema…

Mas isso não importa. Le Amiche é um bom filme, fascinante para quem se interessa pelos trabalhos mais maduros e mais famosos deste cineasta maior.

Anotação em novembro de 2020

As Amigas/Le Amiche

De Michelangelo Antonioni, Itália, 1955

Com Eleonora Rossi Drago (Clelia, a gerente da loja de roupas), Gabriele Ferzetti (Lorenzo, o artista plástico), Franco Fabrizi (Cesare Pedoni, o arquiteto), Valentina Cortese (Nene, a mulher de Lorenzo), Yvonne Furneaux (Momina De Stefani), Madeleine Fischer (Rosetta Savoni), Anna Maria Pancani (Mariella, a cuca fresca), Ettore Manni (Carlo, o chefe da obra), Maria Gambarelli (a patroa de Clelia), Luciano Volpato (Tony)

Roteiro Suso Cecchi D’Amico & Michelangelo Antonioni, com a colaboração de Alba De Cespedes

Baseado no romance Tra Donne Sole, de Cesare Pavese

Fotografia Gianni Di Venanzo

Música Giovanni Fusco

Montagem Eraldo da Roma

Produção Giovanni Addessi, Trionfalcine, Titanus . DVD Versátil.

P&B, 104 min (1h44)

Disponível em DVD

R, ***

Título na França: Femmes Entre Elles.

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