A Sombra de Stálin / Mr. Jones

Nota: ★★★½

(Disponível na Netflix em 12/2021.)

Em Katyn, de 2007, o mestre Andrzej Wajda reconstituiu, com a competência e o talento inigualáveis, um dos mais monstruosos crimes cometidos pela União Soviética chefiada por Josef Stalin: o massacre, intencional, planejado, de cerca de 12 mil oficiais poloneses, ocorrido em 1940. Neste Mr. Jones aqui, de 2019, a grande Agnieszka Holland, a  brilhante discípula de Wajda, desnuda outro dos mais monstruosos crimes do ditador-assassino: o Holodomor, o genocídio intencional, planejado, de milhões de pessoas pela fome na Ucrânia, nos anos de 1932 e 1933.

Entre o massacre de boa parte da inteligência, da elite militar da Polônia e o lançamento de Katyn passaram-se 67 anos. Entre o auge do Holodomor e o lançamento deste Mr. Jones, no Brasil A Sombra de Stálin, foram 86.

Não importa o número de anos que tenha passado: o que importa é não deixar cair no esquecimento essas monstruosidades. Ainda bem que existem Andrzej Wajda e Agnieszka Holland para ajudar a Humanidade a não esquecer jamais o que deve ser sempre lembrado.

Nascidos na Polônia – ele em cidade pequena, Suwalki, em Podlaskie, em 1926, ela em Varsóvia, em 1948 –, os dois têm fortes motivos para não nos deixar esquecer, para nos lembrar. Ela era apenas uma criança de 8 anos quando Nikita Kruschev denunciou os crimes do camarada Stálin no 20º Congresso do PCURSS, em 1956, mas já estava com 20 e estudava cinema em Praga quando, em 1968, Leonid Brezhnev mandou os tanques do Pacto de Varsóvia sufocarem aquela idéia maluca, sem pé nem cabeça, de a Checoslováquia ficar tentando o tal “socialismo de face humana”, com idiotices tipo liberdade de imprensa.

E Wajda, mais velho, conhecera bem o que era viver num país tornado satélite do regime stalinista. Com aquele excesso de arte e talento com que havia sido brindado, foi capaz – ainda em 1958, apenas dois anos após a tentativa da Hungria de se libertar do jugo da URSS – de driblar os censores e criar um filme genial, Cinzas e Diamantes, que mostrava a saída dos invasores nazistas da Polônia e a chegada dos salvadores que rapidamente se transformaram em novos invasores, os soviéticos.

Quem viveu sob ditadura não esquece. Wajda e Agnieszka não esqueceram jamais.

São poucos os filmes sobre crimes do stalinismo

Há trocentos filmes sobre o Holocausto, o Shoah, o genocídio dos judeus pelo nazismo. Os cálculos são de que 6 milhões de judeus foram brutalmente assassinados pela máquina de destruição nazista.

Eu, pessoalmente, acho que deveria haver mais filmes sobre a perseguição nazista aos outros, aos não judeus – ciganos, socialistas, comunistas, malformados, doentes, homossexuais. Mas é bom, é ótimo, é maravilhoso que haja trocentos filmes sobre o Holocausto, o Shoah. Quanto mais, melhor. Para que a gente não se esqueça jamais.

O absurdo é que haja tão poucos filmes sobre os crimes do stalinismo.

Claro que os números não podem ser exatos, mas os historiadores, pesquisadores calculam que a Grande Fome, o Holodomor, tenha matado entre 3,3 e 7,5 milhões de pessoas na União Soviética, em especial na Ucrânia. Diz a Wikipedia em português: “Uma declaração conjunta das Nações Unidas, assinada por 25 países em 2003, declarou que 7-10 milhões pereceram. Desde então, a investigação reduziu as estimativas para entre 3,3 e 7,5 milhões. Segundo as conclusões do Tribunal de Recurso de Kyiv em 2010, as perdas demográficas devidas à fome ascenderam a 10 milhões, com 3,9 milhões de mortes por fome direta, e mais 6,1 milhões de déficits de natalidade.” (Kyiv é a grafia defendida pelos ucranianos para sua capital, em vez de Kiev.)

Quando Mr. Jones foi exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, no ano de seu lançamento, 2019, uma moça chamada Isabel Wittmann conseguiu compor as seguintes frases: “Não é querer diminuir a brutalidade do genocídio testemunhado por Jones, longe disso. Acontece que Agnieszka Holland defende tanto que não existe agenda quando se trata da verdade, que seu recorte específico e discurso didático acaba por construir Mr. Jones como uma espécie contraditória de propaganda anti-comunista retroativa, que se caracteriza como essa mesma agenda. Esteticamente bem realizado, o filme não sustenta sua própria política.”

Chegamos então ao absurdo mais total. Não se trata mais de uma questão de haver corruptos prediletos, os de esquerda ou de direita, mas de haver genocídios prediletos. Falar do genocídio promovido pelo stalinismo é “propaganda anti-comunista”!

“A próxima guerra mundial já começou”

Mr. Jones. Gareth Jones, o personagem-título do filme – uma interpretação extraordinária do jovem James Norton –, era um jornalista nascido no País de Gales, inteligente, culto, aplicado, obstinado. Em 1933, ele trabalhava como consultor para assuntos internacionais de David Lloyd George (o papel de Kenneth Cranham), conde, rico, poderoso, que havia sido primeiro-ministro da Grã-Bretanha entre 1916 e 1922, e permaneceria como membro do Parlamento até sua morte, em 1945.

Logo na abertura do filme, após uma primeira sequência um tanto estranha, vemos Gareth Jones contando sobre sua recente ida à Alemanha para um grupo de senhores sisudos, todos na meia-idade, o que contrasta nitidamente com a sua juventude.

Jones havia estado no avião do recém-empossado chanceler da Alemanha, Adolf Hitler. – “No vôo” – ele conta para o grupo de seus colegas assessores de Lloyd George no Parlamento –, “Goebbels estava lendo o jornal, enquanto Hitler … Hitler estudava um mapa da Europa. E eu não pude evitar de pensar que, se aquele avião caísse, toda a História da Europa mudaria.”

Um dos senhores sisudos agradece a Jones pela sua “apresentação apaixonada” – e, com todo jeito de quem não está levando a sério nada do que o rapaz falou, refere-se a uma “agitação” que havia acontecido há pouco na Alemanha. Jones replica que o incêndio do Reichstag, o Parlamento – que Hitler e os nazistas atribuíam aos comunistas – não foi uma agitação, e sim uma tática: – “Agora os nazistas têm uma desculpa para dar fim a toda a oposição.”

– “Como você pode ter tanta certeza?” – pergunta um daqueles assessores do parlamentar.

– “Goebbels me contou”, Jones responde com firmeza. “Goebbels acredita que o Reich existirá por mil anos, o que significa que eles vão se expandir para o Leste, pela Polônia. A próxima guerra mundial, cavalheiros, já começou.”

Os sisudos senhores dão risada da grande bobagem que aquele fedelho está dizendo.

Pouco depois, uma secretária diz que há uma ligação de Moscou para o sr. Jones. O rapaz vai até a sala da secretária, pergunta, em russo, quem está falando – mas a ligação cai.

O primeiro ocidental a testemunhar a Grande Fome

Depois de ter ido à Alemanha e ter estado num vôo perto de Hitler e de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda, o jovem Jones – ele ainda não havia completado 30 anos – não apenas tinha certeza de que Hitler iria de fato iniciar uma segunda guerra mundial para dominar a Europa como acreditava piamente que seria necessário que o Reino Unido e os demais países europeus se unissem à União Soviética para enfrentar a ameaça nazista. Impetuoso, cheio de energia e determinação, queria porque queria visitar a União Soviética e entrevistar Stálin – nada menos que isso.

Queria descobrir de onde vinha o dinheiro com que o regime soviético estava investindo pesado na modernização do imenso conjunto de países, na criação de indústrias das mais diferentes áreas. E, de quebra, propor a união geral contra a Alemanha nazista.

– “Para resistir a Hitler, precisamos de uma aliança com Stálin. Um homem que opera milagres.”

As verbas para os parlamentares manterem suas equipes estavam sendo cortadas, e Lloyd George, apesar de gostar do jovem Gareth Jones, o demite.

Mas o rapaz é de fato determinado, obstinado – e consegue viajar para Moscou.

Para resumir o que vem a seguir: com base em informações que obtém de um grande amigo jornalista, Paul Kleb (Marcin Czarnik) e de uma boa repórter, Ada Brooks (o papel da ótima, impressionante Vanessa Kirby), Gareth Jones consegue a proeza de embarcar em um trem rumo à Ucrânia – embora os jornalistas estrangeiros fossem permanentemente vigiados, e estivessem proibidos de sair de Moscou.

E acontece de ele vir a ser o primeiro jornalista ocidental a testemunhar a horrorosa, pavorosa, inacreditável situação da grande fome no país. O primeiro a testemunhar – e o primeiro a retornar ao seu país para relatar o que viu.

Historiadora fala das causas da Grande Fome

“Holodomor é uma palavra de origem ucraniana composta por dois termos: ‘holod’, que significa fome, e ‘mor’, que significa praga ou morte. Juntas, elas significam aproximadamente ‘assassinato por fome’ e se referem ao brutal período de penúria alimentar imposto pelo regime soviético na Ucrânia entre 1932 e 1933.”

A definição é de Fernanda Paixão Pissurno, mestra em História pela UFRJ. Em um belo artigo, essa historiadora sintetiza assim as causas da Grande Fome na Ucrânia:

“Em 1928, Josef Stálin, líder soviético desde a morte de Vladimir Lênin em 1924, iniciou um grande processo de modernização nacional com o Primeiro Plano Quinquenal. Este tinha como objetivo principal impor a coletivização da agricultura privada, aumentando a produção para vender os excedentes para as potências interessadas; assim, planejava-se custear a industrialização nacional tão ambicionada pelo regime soviético.

“Tal projeto, porém, acabou por gerar uma grave crise na URSS, uma vez que os fazendeiros mais abastados – pejorativamente conhecidos como kulaks – tiveram que renunciar forçosamente a suas terras e ir embora dos campos, sendo tratados como inimigos da revolução caso se recusassem. No caso de resistência, as famílias eram arrancadas de suas casas e enviadas para locais inóspitos sem qualquer comida ou proteção, onde eram abandonadas à espera da morte. Também seriam deportados intelectuais e religiosos no mesmo período, de forma a quebrar qualquer organização mais veemente contra os planos do governo central.

“Paulatinamente, a base agrícola mais produtiva foi sendo aniquilada, enquanto a população cada vez mais pobre refugiava-se nas cidades. Neste cenário, apenas a Ucrânia conseguiria produzir bons resultados nas colheitas de 1930, quando o país produziu sozinho um terço do trigo de toda a URSS. Entretanto, logo no ano seguinte, os primeiros sinais do espectro da fome começaram a ser vistos. Primeiramente, graças aos resultados agrícolas ruins ocorridos no resto da União Soviética, o governo central confiscara quase metade da produção ucraniana de 1930, o que em grande medida prejudicava a alimentação da população das cidades.

“Além disso, historiadores ucranianos consideram atualmente que a corrente stalinista acreditava que o país, que passava por um movimento nacionalista desde os anos 1920 pela independência, deveria ser fragilizado para manter-se fiel ao governo central, procedendo então para negar qualquer ajuda nos anos que se seguiriam. Dessa forma, o Holodomor teria sido planejado por Stálin e seus aliados para melhor dominar um dos mais importantes membros da URSS. (…)

“No início de 1933, uma rebelião em larga escala sabotou a linha de produção da Ucrânia. O governo central viu o evento como o início de uma contrarrevolução, destruindo-a com severidade: cerca de 100.000 pessoas acabariam presas e enviadas aos gulags, os campos de trabalhos forçados soviéticos. No auge da fome, em meados do ano, 30.000 pessoas morreriam por dia na Ucrânia, embora a União Soviética continuasse a negar oficialmente que esse fosse o caso enquanto continuava a exportar toneladas de comida para o exterior. De acordo com relatórios soviéticos, na época tornou-se aceitável consumir carne humana na Ucrânia.”

Jornalistas que mentiam, escondiam a verdade

Quase tão espantoso, chocante, apavorante quanto a Grande Fome e a morte de milhões de pessoas foi o negacionismo – a insistência com que não apenas o governo da União Soviética como também de boa parte da imprensa, dos partidos políticos, dos meios intelectuais do Ocidente sempre negaram a existência do Holodomor.

O filme escolheu uma figura como o caso típico, exemplar do jornalista que mentia deliberada e deslavadamente para ocultar o que a ditadura stalinista não queria mostrar ao mundo. O Walter Duranty que Peter Sarsgaard (na foto abaixo) interpreta é o retrato do Mal em Si. Chefe do escritório do New York Times em Moscou, o cara parece uma caricatura; vive nababescamente, dá festas embaladas a heroína em que anda peladão entre os convidados e corta fora trechos imensos das matérias que os subordinados lhe apresentam com a cara de quem está fazendo um bem à humanidade.

Ele de fato parece acreditar que esconder a verdade e só mandar para a redação do jornal em Nova York elogios ao governo soviético é uma forma de ajudar a construção do Paraíso Comunista.

Walter Duranty (1884-1957) de fato existiu, e foi o chefe do escritório do New York Times em Moscou durante 14 anos, de 1922 a 1936. Em 1932 – apenas um ano antes dos fatos mostrados no filme –, recebeu o Prêmio Pulitzer, o mais importante do jornalismo americano, por uma série de reportagens sobre a União Soviética. Já nos anos 90, depois que o Império Comunista havia desabado como castelo de cartas, houve protestos contra ele pelo fato de ter sempre negado a existência da Grande Fome, e pedidos para que o comitê do Pulitzer retirasse o prêmio dado a ele. O prêmio não foi revogado.

Gareth Jones nunca ganhou um Pulitzer.

Como em boa parte dos filmes baseados em pessoas e fatos reais, ao final da narrativa, abrindo os créditos finais, há um letreiro dando ao espectador informações sobre o que aconteceu após os eventos retratados ali. Eis o que o filme informa:

“Em agosto do ano seguinte (ao dos últimos fatos mostrados, é claro), enquanto fazia reportagens no interior Mongólia, Gareth Jones foi sequestrado por bandidos. Ele viajava com um guia que, sem que ele soubesse, tinha conexões com a polícia secreta soviética. Ele foi assassinado a tiros um dia antes de seu 30º aniversário. Walter Duranty morreu aos 73 anos de idade na Flórida, em 1957. Seu Prêmio Pulitzer nunca foi revogado.”

E surge a dedicatória: “Em memória dos milhões mortos no Holodomor, a Grande Fome de Stálin”.

Uma jovem descendente de ucranianos fez o roteiro

As indicações são de que este filme foi realizado em boa parte devido a uma moça chamada Andrea Chalupa, uma jornalista californiana descendente de ucranianos que já escreveu para as revistas Time e Forbes, e tem uma profunda admiração por George Orwell e especificamente por Animal Farm, no Brasil A Revolução dos Bichos, em Portugal O Porco Triunfante e também O Triunfo dos Porcos.

Andrea aparece nos créditos do filme como a autora da história e do roteiro, e também como uma das produtoras.

Desde meados da primeira década deste século Andrea vinha pesquisando sobre a história de Gareth Jones. Ela procurou uma sobrinha dele, Margaret Siriol Colley, autora de uma biografia do jornalista, More Than a Grain of Truth, mais que um grão de verdade, lançado na Inglaterra em 2005, para obter mais informações sobre a vida dele. Já naquelas conversas, teria dito que pretendia que a história de Gareth Jones fosse transformada em filme.

Em seu roteiro, Andrea Chalupa misturou a história de Gareth Jones, o homem que primeiro contou ao Ocidente sobre a Grande Fome, e a paixão pelo livro de George Orwell.

Animal Farm, como se sabe, é uma virulenta sátira à política stalinista; conta como os bichos de uma fazenda, cansados de servirem aos humanos, promovem uma revolta e tentam criar uma sociedade igualitária, justa – mas acabam numa ditadura tão corrupta quanto a dos humanos.

A primeira sequência do filme, que eu chamei lá em cima de um tanto estranha, mostra porcos, porcos fazendo aqueles grunhidos de porcos, e um ator bastante parecido com George Orwell (o nome dele é Joseph Mawle) escrevendo à máquina uma carta e falando para o espectador o que está escrevendo:

– “Não quero comentar sobre a obra. Se ela não falar por si própria, então é um fracasso. Eu queria contar uma história que qualquer um pudesse entender. Uma história tão simples que até uma criança entenderia. A verdade foi muito peculiar para contar de outra forma. Não nasci para esta época. E você? O mundo está sendo invadido por monstros, mas acho que você não quer saber, não quer ouvir sobre isso. Eu poderia estar escrevendo livros românticos, que as pessoas gostam mais de ler. Talvez eu fizesse isso em outra época. Mas se eu usar animais de uma fazenda para contar a história do monstro, talvez você preste atenção, e compreenda. O futuro está em jogo, portanto leia com atenção as entrelinhas.”

Uma pequena pausa, e George Orwell interpretado por Joseph Mawle escreve e diz:

– “O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, fechou o galinheiro à noite…”

Aí corta, e vemos Gareth Jones falando com seus colegas assessores do parlamentar Lloyd George: “Hitler e Goebbels estavam lá. E logo depois estávamos no avião de Hitler, o Richthofen. No vôo, Goebbels estava lendo o jornal, enquanto Hitler … Hitler estudava um mapa da Europa.”
“O Sr. Jones, proprietário da Granja do Solar, fechou o galinheiro à noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias. Com o facho de luz da sua lanterna balançando de um lado para outro, atravessou cambaleante o pátio, tirou as botas na porta dos fundos, tomou um último copo de cerveja do barril que havia na copa, e foi para a cama, onde sua mulher já ressonava.”

Este é o primeiro parágrafo de Animal Farm na tradução brasileira de Heitor Aquino Ferreira, lançada pela Editora Globo de Porto Alegre.

O sobrinho-neto de Jones contesta o filme

Lá pelas tantas, quando o filme já passa bastante da metade, um amigo de Gareth Jones o apresenta a George Orwell.

O roteiro da moça Andrea Chalupa tenta nos fazer crer que foram as reportagens de Jones, suas descrições do que viu na Ucrânia, que inspiraram Orwell a escrever sua sátira sobre a revolução levada a cabo pelos porcos Major, Bola de Neve e Napoleão.

Não há provas de que isso seja verdade. Até porque as datas não batem. Animal Farm foi lançado pela primeira vez no Reino Unido em 1945, o ano em que terminou a Segunda Guerra Mundial. Qual seria o sentido de Orwell ter escrito sua triste fábula contra o totalitarismo soviético no início dos anos 30 para só publicá-la em 1945?

Esse é um dos muitos pontos do filme que foram duramente criticados por um sobrinho-neto de Gareth Jones, Philip Colley, como erros factuais cometidos pela roteirista Andrea Chalupa. Esse Philip Colley é filho de Margaret Siriol Colley, a sobrinha do jornalista que escreveu a biografia More Than a Grain of Truth e passou para Andrea muitas informações adicionais sobre Gareth Jones. Margaret está morta, e então seu filho assumiu a tarefa de cuidar da memória do jornalista, cultivada por uma ONG e um site na internet, garethjones.org.

Pelo que dá para perceber, o sobrinho-neto deu diversas entrevistas criticando o filme, apontando erros factuais contidos nele.

Em um longo artigo no site que preserva a memória de Gareth Jones, com o título de “A verdadeira história por trás da ‘Verdadeira História’ de Mr. Jones”, Philip Colley faz um histórico das relações entre sua mãe e Andrea Chalupa, e contesta diversos pontos mostrados no filme.

O artigo tem um inegável gosto de quem se sente prejudicado pela existência de um filme que afinal de contas pode render um bom dinheiro – afinal, é uma co-produção de três países, Reino Unido-Polônia-Ucrânia, assinada por uma das mais importantes realizadoras do cinema mundial. Em um certo momento, ele menciona que infelizmente sua mãe, ao passar informações para a jornalista americana, não assinou nenhum contrato – um indício claro de desgosto pelo fato de a família de Gareth Jones não ter recebido um centavo dos realizadores do filme.

Além disso, é preciso sempre compreender que os filmes – mesmo os que retratam eventos reais – são um trabalho de ficção, e uma certa liberdade poética, dramática, seja o que for, é permitida.

De qualquer forma, porém, o sobrinho-neto do protagonista da história levanta pontos que vale a pena mencionar:

* no filme se diz, mais de uma vez, que Gareth Jones entrevistou Hitler. Na verdade, segundo o sobrinho-neto, com base nos estudos da mãe, biógrafa do jornalista, Jones nunca afirmou isso; apenas contou que viajou no mesmo avião em que estavam Hitler e Goebbels;

* em um artigo publicado logo após essa visita à Alemanha em 1933, Jones escreveu aquela frase que é dita no início do filme: se aquele avião caísse, toda a História da Europa mudaria. A frase original, que Philip Colley cita é: “If this aeroplane should crash, the whole history of Europe would be changed”. O que para mim demonstra um belo gol (e não um erro) da roteirista Andrea Chalupa.

* foi na terceira viagem que fez à União Soviética (e não na única, que é o que o filme mostra) que Jones conseguiu visitar a Ucrânia – o que lhe permitiu divulgar pela primeira vez no Ocidente a extensão da Grande Fome no país. O sobrinho faz relatos sobre essa viagem para demonstrar que o que filme mostra não corresponde exatamente ao que de fato aconteceu. Garante de pé junto que, ao contrário do que aparece no filme, Jones não viu tantos cadáveres nos campos e nas ruas das cidades; não presenciou cenas de canibalismo, e muito menos houve uma situação em que lhe foi servida carne humana.

Ora, diacho, o filme não é um documentário, é uma obra de ficção baseada em fatos reais. Todas as sequências em que Jones está na Ucrânia assolada pela fome são fantasticamente belas e apavorantes – o diretor de fotografia conseguiu um fantástico efeito de mostrar a paisagem tomada pela neve num colorido sem cor, quase como se fosse mesmo um filme em preto-e-branco.

Diabo: não é um documentário!

* no filme, Jones fica próximo de Ada Brooks, a competente, brilhante repórter do New York Times interpretada por essa impressionante Vanessa Kirby, e os dois acabam tendo um caso. O sobrinho-neto de Jones afirma de pé junto que não houve caso feminino algum durante as viagens do jornalista à União Soviética.

De novo: diabo, não é um documentário!

“Andrea recebeu uma história incrível, dada a ela num prato”, diz o sobrinho-neto no artigo. “Ela poderia ter sido contada honestamente, como em outros grandes, genuinamente ‘verdadeiros’ filmes históricos, como A Queda! Em vez disso, ela inventou múltiplas ficções. Gareth foi uma testemunha da fome e não, como o filme indica, uma vítima. Na verdade, não houve nenhuma história de amor. Ele não testemunhou cadáveres ou qualquer canibalismo, quanto mais tomou parte; ele nunca viu requisição de grãos, trabalho forçado ou carrinhos carregando corpos; ele nunca foi caçado, nunca correu, nunca se escondeu ou se disfarçou nos trens. Ele nunca foi preso.”

E mais adiante:

“E, infelizmente, tiraram fora toda a participação da minha mãe no trabalho de trazer de volta a história de um grande herói galês. Se as pessoas estiverem interessadas em ler a história real de Gareth Jones, o lugar certo é o livro dela More Than a Grain of Truth (ou em  www.garethjones.org ). Hesito em dizer que seja a mais importante história que você jamais lerá, mas é com certeza uma história interessante, que não precisa de uma fabricação de ‘Hollywood’.”

Uma homenagem ao conterrâneo Kieslowski

Está muito bem registrada a posição do representante da família de Mr. Jones.

Falta apenas registrar três detalhinhos.

Logo na abertura do filme, antes da primeira sequência, há um agradecimento especial a Margaret Siriol Colley e seu filho mais velho Nigel Colley (que também já havia morrido na época do lançamento). Não houve pagamento à família pelas informações dadas, mas o reconhecimento está lá, direitinho.

Outro registro. O IMDb chama a atenção para o fato de que, quando o filme foi exibido em competição no Festival de Berlim, em 2019, ele tinha 141 minutos. A versão que foi lançada para o público em geral, em 2020 – e é a que foi apresentada pela Netflix – tem 119 minutos. “Nem os produtores nem a diretora informaram exatamente que sequências foram removidas (e por quê)”, diz o site, “embora o fato de que várias críticas iniciais tenham falado sobre o comprimento do filme seja possivelmente a razão”.

O último detalhinho: o cinéfilo atento certamente notará que não é original aquela rápida – e maravilhosa, belíssima – sequência, bem no início do filme, em que a câmara mostra os fios telefônicos, como se estivesse tentando perseguir as vozes que vão passando por eles na imensa distância separa o telefone usado por Jones em Londres do telefone em Moscou para o qual o jornalista está ligando.

Uma tentativa de filmar, de mostrar em imagens em movimento esse fantástico milagre que é a ligação telefônica internacional.

Claro, aquilo não é original. Nós já vimos uma sequência idêntica, em A Fraternidade é Vermelha/Trois Couleurs; Rouge (1994). É uma homenagem de Agnieszka Holland a seu conterrâneo Krzysztof Kieslowski.

E, para concluir. Com todo respeito pelos sentimentos da família de Mr. Jones, este Mr. Jones é um grande filme.

Anotação em dezembro de 2021

A Sombra de Stálin/Mr. Jones

De Agnieszka Holland, Polônia-Inglaterra-Ucrânia, 2019

Com James Norton (Gareth Jones)

e Vanessa Kirby (Ada Brooks), Peter Sarsgaard (Walter Duranty), Joseph Mawle (George Orwell), Kenneth Cranham (Lloyd George), Celyn Jones (Matthew), Krzysztof Pieczynski (Maxim Litvinov), Beata Pozniak (Rhea Clyman), Fenella Woolgar (Miss Stevenson, a secretária de Lloyd George), Martin Bishop (Sir Ernest Bennet), John Edmondson (J.E. B Seely), Michalina Olszanska (Yulia), Martin Hugh Henley (L. C. Thornton), Olena Leonenko (recepcionista do hotel), Edward Wolstenholme (Eugene Lyons), Marcin Czarnik (Paul Kleb, o jornalista amigo), Barry Mulkerns (John Cushny), Piotr Szostak (soldado soviético)

História e roteiro Andrea Chalupa

Fotografia Tomasz Naumiuk

Música Antoni Lazarkiewicz

Montagem Michal Czarnecki

Casting Colin Jones

Direção de arte Grzegorz Piatkowski

Produção Andrea Chalupa, Stanislaw Dziedzic, Klsufis Smieja,

Film Produkcja, Crab Apple Films, Film.ua, Kinorob, Studio Orka,

Polski Instytut Sztuki Filmowej, Krakowskie Biuro Festiwalowe,

Europe Creative Media de l’Union Européenne, Parkhurst, Ukrainian State Film Agency

Cor, originalmente com 141 min (2h21), exibida com 119 min (1h59)

***1/2

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