Dúvida / The Suspect

Nota: ★★★☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 9/2021.)

No YouTube, onde está disponível, grátis como um passeio no parque, Dúvida/The Suspect, que Robert Siodmak lançou em 1944, é definido como “clássico noir”. Noir realmente se tornou um rótulo, um selo atraente, que vende bem, que chama o consumidor, perdão, o espectador.

Propaganda enganosa.

Os anos 40 eram a época áurea do filme noir. E Robert Siodmak (1900-1973), alemão de Dresden, um dos tantos e tantos realizadores europeus que foram para Hollywood nos anos 30, fugindo do nazismo enquanto era tempo, de fato fez belos filmes noir, como Dama Fantasma/Phantom Lady (1944) e Assassinos/The Killers (1946), para dar apenas dois exemplos.

Mas este Dúvida/The Suspect não tem absolutamente nada a ver com noir. Não tem femme fatale, não tem pato que se perde pela paixão absoluta e absurda por uma femme fatale, não tem aquela atmosfera asfixiante de mundo corrupto, de lama, que é a mais pura expressão do noir.

A rigor, a rigor, Dúvida, mais que um filme policial, é simplesmente um drama. Um drama romântico, se for necessário especificar mais o rótulo. Uma triste história sobre um casamento falido, errado desde sempre, passada numa época em que era extremamente difícil romper um casamento falido, errado desde sempre.

A história se passa na Londres eduardiana, de 1902 – mas, no cinema americano daquele final da Segunda Guerra Mundial, casos extra-conjugais ainda eram um tema tabu. Estava em pleno vigor o Código Hays, o conjunto de regras de autocensura respeitado pelos estúdios de Hollywood.

Imposto a partir de 1933 para atender aos apelos das “ligas de decência”, dos grupos religiosos mais moralistas e reacionários, o Código Hays tinha normas assim:

“Nenhum filme deve ser produzido de maneira a rebaixar os princípios morais daqueles que o vêem. Desta forma, a simpatia da audiência não deve nunca ser lançada para o lado do crime, do erro, do mal ou do pecado.”

“A santidade da instituição do casamento e do lar deve ser respeitada. Os filmes não deverão inferir que baixas formas de relacionamento sexuais são aceitas ou comuns.”

“O adultério, às vezes necessário como material da trama, não deve ser tratado explicitamente, ou justificado, ou apresentado atrativamente.”

O pobre Philip é casado com uma bruxa, uma megera

O roteiro deste The Suspect dá uma aula de como abrir uma narrativa, de como apresentar personagens e situações de maneira efetiva e rápida.

Há um curto letreiro logo após os rápidos créditos iniciais: “Era uma rua despretensiosa, mas tinha um nome pretensioso. Era a moda na Londres de 1902. Era chamada de Laburnum Terrace”.

Vemos um homem gordo, volumoso, vestido à moda da Londres de 1902 – terno, sobretudo, chapéu, com uma bengala –, chegando à sua casa, um sobrado sólido, em uma rua de sobrados sólidos. Charles Laughton, aos 45 anos, já então um ator absolutamente consagrado, faz o protagonista da história. Veremos que é Philip Marshall, o gerente de uma empresa de produção e venda de tabaco, a Frazer & Nicholson, “provedora de tabaco para Sua Majestade Edward VII”.

Antes de entrar em casa, Philip pára para cumprimentar a vizinha do lado, Mrs. Simmons (o papel de Molly Lamont), uma jovem senhora bonita, simpática, que está ajoelhada cuidando das plantas no pequenino jardim entre seu sobrado e a calçada. Trocam algumas palavras – percebe-se que têm simpatia um pelo outro.

Um táxi-charrete pára naquele instante junto da calçada, diante da casa de Philip. O condutor diz que o chamaram para estar ali exatamente às 18h.

Havia sido chamado por John, o filho único de Philip e Cora. (John é interpretado por Dean Harens; Cora, por Rosalind Ivan, na foto acima.)

John, rapaz sério, esforçado, que pretendia conseguir na empresa em que trabalhava a oportunidade de ser escolhido para uma vaga promissora no Canadá, havia decidido sair de casa, morar com um amigo, porque não suportava mais a convivência com a mãe.

Assim que John se despede dos pais, Philip vai até seu quarto, apanha um monte de roupas e avisa à peste da mulher que está se mudando para o quarto que o filho acabava de desocupar. – “Cora, agora que John se foi, está tudo terminado, você compreende? Vou sair daqui e você não poderá fazer nada para impedir.”

Ela protesta com veemência. Parece uma bruxa especialmente feia e especialmente cruel.

Basta essa sequência inicial para o espectador ver todo o quadro: Cora é uma mulher absoluta e totalmente intolerável, uma chata de galocha, uma megera, uma coisa absurda.

Na sequência seguinte, quando o filme está com 7 dos seus curtíssimos 85 minutos, entra na sala de Philip Marshall na empresa Frazer & Nicholson uma moça que vem pedir emprego. Chama-se Mary Gray, e veremos que é uma jovem que precisa desesperadamente de um meio de ganhar a vida. É o papel de Ella Raines – e, portanto, Mary Gray é uma jovem deslumbrante, maravilhosamente bela.

Um homem terrivelmente infeliz no casamento, uma jovem lindérrima. Pronto: antes de chegar aos 10 minutos, o filme já colocou o drama todo diante do espectador.

Há poucas informações sobre o autor do livro

O roteiro é assinado por Bertram Millhauser, que se baseou em romance de James Ronald, adaptado por Arthur T. Horman. Essa forma de assinatura é interessante, porque não é muito usual nos filmes americanos; os franceses sempre explicitam o nome de quem fez a adaptação de um livro – uma tarefa intermediária entre o livro e a redação do roteiro, a forma final de como se vai filmar. No cinema americano isso de fato não é o mais comum: o próprio roteirista, ou roteiristas, faz/fazem a adaptação.

Eu não conhecia nenhum desses três. Vejo agora que Bertram Millhauser nasceu em Nova York, em 1892, e morreu em Hollywood, em 1958; sua filmografia como escritor tem 69 títulos – aí incluídos filmes cujos roteiros são dele e também os que se baseiam em histórias originais dele. Numa passada rápida de olhos pelos títulos, nenhum me chama muito a atenção.

James Rolland, o autor do romance, estranhamente não mereceu um verbete na Wikipedia em inglês, e, no IMDb, quase não há informação sobre ele, a não ser o fato de que nasceu na Inglaterra em 1905 e que foram feitos filmes com base em cinco de seus livros.

É uma lacuna da Wikipedia, sem dúvida alguma. Até porque a fantástica enciclopédia tem longo verbete sobre The Suspect, em que conta até mesmo o detalhe interessante de que o filme – após uma première mundial em 22 de dezembro de 1944, em San Francisco, e uma estréia nacional em 26 de janeiro de 1945 – foi escolhido para exibição na Casa Branca em 17 de março de 1945. A exibição aconteceu após um pequeno jantar celebrando os 40 anos de casamento de Eleanor e Franklin D. Roosevelt, e entre o seleto grupo de convidados estava a princesa Juliana da Holanda.

Fico me perguntando se o cerimonial da Casa Branca não cometeu um pequeno equívoco ao escolher para exibição no dia do 40º aniversário da primeira-dama e do presidente um filme que fala de um casamento profundamente infeliz. Bem diferente, é verdade, do casamento de Eleanor e Franklin, pelo que se sabe.

Por que raios a civilização caminha tão devagar?

Um casamento profundamente infeliz. Um casamento que não teve, muito certamente, um único dia de alegria – mas que foi se prolongando, prolongando, prolongando.

Quando finalmente aquele pobre, infeliz homem pede, suplica, implora que a mulher lhe dê o divórcio – ali pela metade do filme –, a resposta é pior do que um não. Cora ameaça Philip: diz que vai contar a seus patrões, Frazer e Nicholson, que seu impoluto gerente é na verdade um pecador, um criminoso, que tem um relacionamento adúltero com uma mulher mais jovem.

E o pobre, infeliz Philip treme de medo, de pavor, diante da ameaça. Aquilo seria um absoluto escândalo, aquilo destruiria sua reputação, faria com que ele perdesse o emprego.

O filme mostra que o divórcio, embora já existisse legalmente na Grã-Bretanha desde meados do século XIX, ainda era considerado por muitos como algo pecaminoso, ofensivo aos bons costumes. Sabemos que a família real britânica só passou a admitir que o divórcio é algo absolutamente normal já na segunda metade do século XX. Aqui, neste nosso triste, periférico, atrasado, muitas vezes patético país de Terceiro Mundo, o divórcio só passou a existir legalmente em 1977 – o Brasil, se não estou enganado, foi um dos dez últimos países a legalizar o fim do casamento com a permissão de que os cônjuges pudessem se casar novamente.

Ao ver este filme lançado no penúltimo ano da Segunda Guerra Mundial, que conta uma história passada em 1902, a gente é acometido por imensa tristeza.

Por que raios a civilização caminha tão devagar, meu Deus do céu e também da Terra?

Na Grã-Bretanha, a mais antiga e estável democracia do planeta, o lugar mais civilizado do mundo, na minha opinião e na opinião de muita gente boa, até meados dos anos 1960 a homossexualidade era crime que dava cadeia.

Nos Estados Unidos, desde o fim da Segunda Guerra a maior potência do mundo, o país mais rico que já houve ao longo da História, até meados dos anos 1960 leis de vários Estados garantiam a segregação entre brancos e negros, exatamente como no regime do apartheid da África do Sul.

Neste ano de 2021, o aborto só é permitido no Brasil em uns poucos casos específicos – e nos Estados Unidos, onde é garantido por decisão da Suprema Corte, começa a sofrer ataques de legisladores reacionários, seguidores de regras religiosas ditadas milênios atrás.

A tristeza infinita desse pobre Philip Marshall me fez pensar nessas coisas todas – e a ficar imaginando que, daqui a uns 50 anos, no máximo, no máximo uns 100, se a Humanidade não tiver se destruído antes, as gerações que virão depois de nós vão considerar que éramos todos uns homens e mulheres da idade da pedra lascada nesta segunda década do século XXI, porque ainda discutíamos o direito de cada pessoa decidir quando quer acabar com sua própria vida.

Pode parecer que tergiversei, que viajei para longe. Mas este Dúvida/The Suspect traz para o espectador esses questionamentos todos.

Montes de filmes sobre dúvida, suspeita

Dúvida, suspeita, o suspeito. Meu Deus do céu e também da Terra, quantos filmes há sobre esse tema, com essas palavras no título.

Só Alfred Hitchcock tem dois: Suspeita/Suspicion (1941), seu longa-metragem de número 27, e A Sombra de uma Dúvida/Shadow of a Doubt (1943), o opus 29.

Peter Yates fez Sob Suspeita/Suspect (1987), um bom filme, aliás. Dois anos antes, em 1985, Richard Marquand havia feito O Fio da Suspeita/Jagged Edge, outro bom filme. Há dois Acima de Qualquer Suspeita – um de 1990, de Alan J. Pakula, no original Presumed Innocent, e outro de 2009, de Peter Hyams, no original Beyond a Reasonable Doubt.

Que era uma refilmagem de Beyond a Reasonable Doubt, que o grande Fritz Lang dirigiu em 1956, e no Brasil teve o título de Suplício de uma Alma.

Outro grande, Sidney Lumet, lançou em 2006 Sob Suspeita/Find me Guilty. Lumet havia estreado como diretor de longa com um dos melhores filmes jamais feitos sobre a dúvida, a dúvida razoável sobre se aquele determinado acusado de um crime é mesmo o criminoso ou não – 12 Homens e uma Sentença/12 Angry Men, de 1957.

A lista de filmes sobre suspeitos/suspeitas (adjetivo), suspeitas (substantivo), dúvida, é imensa, praticamente sem fim.

Interessante é verificar que…

Bem, mas aqui vou – embora com algum cuidado – revelar coisas que Dúvida/The Suspect só revela depois que chegamos à metade de seus 85 minutos. A rigor, portanto, são spoilers.

O eventual leitor que caiu aqui e ainda não viu o filme não deveria continuar lendo.

Atenção: a partir daqui, spoilers!

Interessante é verificar que o título escolhido pelos exibidores brasileiros, Dúvida, não é propriamente adequado.

O diretor Richard Siodmak não deixa muita dúvida na cabeça do espectador quando, ali na exata metade do filme, Philip Marshall-Charles Laughton se vê diante da ameaça de Cora de destruir sua reputação, seu emprego, sua vida.

Há um corte, é claro. Uma elipse. A câmara não mostra o que aconteceu – mas, diabo, dúvida é algo que não fica na cabeça do espectador.

E, nesse sentido, a forma com que o roteiro de Bertram Millhauser havia indicado, e com que Siodmak conduz seu filme, é algo bastante hitchcockiano.

Costumo lembrar sempre que há duas formas de contar histórias que incluem algum mistério policial – uma é a da velhinha inglesa louca, outra é a do velhinho inglês louco.

Nas histórias de Agatha Christie, toda a questão é saber quem fez, quem matou. A língua inglesa tem o termo exato para isso, o whodunit, uma corruptela, à la Minas Gerais, de who has done it. Quem fez. A velhinha esconde do leitor alguns fatos fundamentais, que só serão revelados nos capítulos finais, quando ela, na voz de Hercule Poirot ou de Miss Marple, contará para todos os personagens da história e para nós, o público, quem foi afinal de contas que matou.

Nos filmes de Alfred Hitchcock, em geral já sabemos quem foi. O que importa, o que cria o suspense, é saber todo o resto – como, onde, quando, por que raio de motivo, diabo!

Dúvida/The Suspect conta tudo para o espectador. Desde que a coisa acontece. Conta quem foi, como foi, por que foi.

O que importa, o que cria o suspense, é saber o que virá depois.

E aí? Quando vai acontecer o que a gente acha que vai acontecer? Em que momento? Por quê?

O crítico acha estranho a mocinha gostar de um gordo!

O verbete da Wikipedia em inglês sobre The Suspect traz trechos de críticas da época do lançamento – uma maravilha.

No New York Times, o crítico Bosley Crowther deu o spoiler completo e absoluto, e depois afirmou: “The Suspect não é de maneira alguma um filme enfadonho, mas ele parece não possuir aquela qualidade de excitação que num bom melodrama mantém as pessoas no limite. Em uma palavra, ele é muito genteel.”

E aí tive que usar a palavra original. Genteel é gentil, sim, claro, mas é também, ou sobretudo, frio, educado – com um sentido um tanto negativo, um tanto depreciativo.

E o crítico do Times continuou: “Henry Daniell, como o chantagista, e Rosalind Ivan, como a exasperante esposa, estão esplêndidos, e Ella Raines está muitíssimo atraente como a segunda esposa. Deve ser registrado, no entanto, que sua escolha de se casar com uma pessoa das dimensões de Mr. Laughton é um tanto estranha”.

Ô meu Deus do céu e também da Terra! Isso aí é uma coisa absurda, puro preconceito, não admitir que uma mulher jovem possa querer se casar com um homem mais velho e gordo. Mary, a personagem da bela e jovem Ella Raines, vai se envolvendo com Philip porque ele a trata bem, dá a ela afeição, atenção, conforto, amizade. Para ela, o fato de ele ser mais velho e mais gordo não importa, diacho!

Bem, mas o próprio estúdio, a Universal, concordava com o crítico que acha estranho Mary gostar de um homem gordo. O cartaz do filme dizia que o amor dela era estranho! (E ainda fazia questão de avisar que aquele não era um filme adequado para todo tipo de pessoa!)

Mas vamos em frente.

A Variety elogiou o filme: “Nas mãos talentosas de Charles Laughton, seu personagem fica fascinante. Há menos barulho e nenhuma vilania que existia nos personagens anteriores de Laughton. Ele apresenta uma performance impecável como um cidadão correto, obediente às leis. À altura de seu hábil retrato está Ella Raines como a jovem steno com quem ele se casou após a morte de sua esposa.”

Ahnnn… Steno.. Estenógrafa,

Vai aí um erro conceitual da revista Variety, aquela bíblia do show business americana. Mary Gray não é uma estenógrafa, uma taquígrafa. Ela apenas sabia datilografia. Quando, aos 7 minutos de filme, ela pede emprego para Philip Marshall, o gerente da empresa que é a “provedora de tabaco para Sua Majestade Edward VII”, explica que sabe manejar as novas máquinas de escrever. Ao que Philip responde que a empresa Frazer & Nicholson não tinha qualquer necessidade de usar tais modernas invenções.

Confesso que, depois que vi Dúvida/The Suspect, este filme do qual jamais tinha ouvido falar, me deu uma vontade imensa (como já havia acontecido várias outras vezes) de só ver os filmes da era de ouro de Hollywood – esses maravilhosos preto-e-brancos dos anos 30, 40 e 50.

E parar com esse negócio de ter que escrever sobre filmes.

Bobagem. Besteira danada.

Bom mesmo é ver os filmes. E não há nada como os filmes da era de ouro de Hollywood – quem não concorda que me perdõe, ou então vá ver um Hal Hartley, um Chabrol, um Lars Von Triers.

Anotação em setembro de 2021

Dúvida/The Suspect

De Robert Siodmak, EUA, 1944.

Com Charles Laughton (Philip Marshall), Ella Raines (Mary Gray)

e Rosalind Ivan (Cora Marshall, a esposa), Dean Harens (John Marshall, o filho), Stanley Ridges (inspetor Huxley), Henry Daniell (Mr. Simmons, o vizinho imprestável), Molly Lamont (Mrs. Simmons, a vizinha simpática), Raymond Severn (Merridew, o garotinho da firma), Eve Amber (Sybil, a namorada de John), Maude Eburne (Mrs. Packer, a mãe de Sybil), Clifford Brooke (Mr. Packer, o pai de Sybil), John Berkes (sargento detetive Pennyfeather)

Roteiro Bertram Millhauser

Baseado em romance de James Ronald

Adaptação Arthur T. Horman 

Fotografia Paul Ivano

Música Frank Skinner

Mntagem Arthur Hilton

Produção Islin Auster, Universal Pictures.

P&B, 85 min (1h25)

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Título na França: Le Suspect. Em Portugal: Eu Matei!

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