Sob Suspeita / Suspect

Nota: ★★★☆

Para quem gosta de filme de tribunal, de trama que envolve crime e também política, altos escalões do poder, figurões poderosos que têm graves pecados escondidos no armário, Sob Suspeita/Suspect, de 1987, é uma beleza.

Tem clima, trama envolvente, inteligente, a direção firme de Peter Yates, um belo elenco: Cher, com aquela presença tão marcante quanto a beleza forte dela aos 41 anos (declaradamente, ao menos), e mais a carinha bonita e deliciosamente careteira de Dennis Quaid, mais um Liam Neeson ainda em início de carreira, apenas um ano após A Missão (1986), de Roland Joffé, talvez seu primeiro filme realmente importante, e sete anos de virar grande astro em A Lista de Schindler.

A ação se passa em Washington, D.C., a capital federal da maior potência do mundo, e os fatos se dão bem perto, perto demais, do centro do poder.

E no tribunal vai acontecer aquela coisa proibidíssima pela ética do mundo jurídico: um jurado – o papel de Dennis Quaid – vai se envolver com a advogada de defesa – Cher, é claro –, e ajudá-la a procurar pistas que inocentem seu cliente.

É bem verdade que há alguns exageros, algumas forçações de barra, mas a gente deixa barato, porque a trama é de fato certeira. É um roteiro original, uma história criada diretamente para o cinema, e o autor, Eric Roth, é um mestre. Nada menos de cinco títulos com roteiro dele foram indicados ao Oscar de melhor filme: Forrest Gump: O Contador de Histórias (1994), O Informante (1999), Munique (2005), O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) e Tão Forte e Tão Perto (2011).

Com menos de dez minutos de filme, dois mortos

O filme começa com uma sequência impressionante, surpreendente. Um juiz da Suprema Corte recebe em seu gabinete a visita de uma jovem que já foi assistente dele, de quem ele gosta muito. Chama-se Lowell (Thomas Barbour), parece ativo, jovial, bem-humorado. Quando a jovem Elizabeth Quinn (Katie O’Hare) sai do gabinete dele, o juiz Lowell está limpando uma espingarda que tirou da caixa. A secretária dele entra, pergunta se ele precisa de alguma coisa, o juiz diz que não, faz um comentário brincalhão sobre espingarda, caça.

A secretária sai do grande gabinete. O juiz põe a espingarda na boca e atira.

Corta, e vemos um grupo de senhores pulando nas águas do Rio Potomac. É inverno – toda a ação do filme se passa no inverno, os personagen estão sempre muito agasalhados e muitas vezes comentam sobre o frio. É inverno, mas aquele grupo de senhores se diverte enfrentando as águas geladas do Potomac.

Alguém caminha ali pela beirada do rio, de onde o grupo de homens pula na água. Junto de um deque de madeira, na margem, há o corpo de uma mulher morta. É da jovem Elizabeth Quinn.

Com menos de 10 minutos de filme, temos dois mortos|: o juiz da Suprema Corte que recebeu a visita da moça – e a moça.

Aquela área próxima do rio, uma área pública, um parque, está tomado por mendigos, homeless.

Um grande número de policiais examina a área, à procura de vestígios que possam levar ao assassino da moça cujo corpo foi lançado no rio.

Não demora nada a localizarem uma bolsa de mulher – a bolsa da jovem Elizabeth. Está junto de um homeless especialmente agressivo, furioso com os policiais que tentam prendê-lo. Tem o cabelo grande, assim como a barba – mal se vê seu rosto. Chama-se Carl Wayne Anderson – o papel de Liam Neeson.

O sujeito não diz uma palavra para os policiais que finalmente conseguem contê-lo e levá-lo preso, acusado de homicício.

Um juiz determina que Kathleen Riley, uma advogada da Defensoria Pública, assuma a defesa do sem-teto. Katy Riley, naturalmente, é a protagonista da história, o papel de Cher.

Ela tenta argumentar que não poderia pegar mais aquele caso, que está sobrecarregada, não tira férias faz um tempo enorme, mas não tem jeito.

O sem-teto ataca a mulher incumbida de defendê-lo. Os guardas têm que interferir. Mas Katy não desiste do caso. Acaba descobrindo que Carl é surdo e mudo, por isso não se comunicava com ninguém. Ele passa a se comunicar com ela escrevendo – com uma letra de quem não passou mais do que pela alfabetização básica.

A típica idealista, altruísta – e um lobista

Essa personagem de Cher, a advogada Katy Riley, é bastante típica de vários livros e filmes americanos lançados após os anos 1960, 1970. Há muitos colegas bem semelhantes a ela, por exemplo, nos livros de John Grisham. São jovens advogados idealistas, altruístas, muitas vezes simpáticos ao socialismo, ou no mínimo liberais, progressistas, que optam por trabalhar como defensores públicos, nos casos de réus que não têm condições de pagar pelos serviços de um profissional.

Katy é exatamente assim – a batalhadora altruísta típica, perfeita. Num diálogo lá pelo meio do filme, com o colega e grande amigo Morty Rosenthal (Fred Melamed), ela se queixa de não está tendo vida pessoal, que faz tempo não vai a um teatro, a um cinema, que sequer tem saído com homens, que não tem namorado.

Morty Rosenthal é outro batalhador altruísta típico, perfeito. Repare no sobrenome: sempre há judeus entre os batalhadores altruístas típicos, perfeitos, dos filmes e livres americanos de tendência esquerdista das últimas décadas. Muitos dele foram estudantes durante os anos 60, os anos das marchas pelos direitos civis, da contracultura, da luta contra a guerra do Vietnã – ou, se mais jovens, tiveram professores que participaram das lutas daqueles anos prodigiosos.

O protagonista se encontrar com um tipo que é seu perfeito oposto, seu antônimo, seu antípoda, é sempre algo bem interessante – e então Eric Roth criou Eddie Sanger, o personagem interpretado por Dennis Quaid.

Eddie Sanger é um lobista, um sujeito que defende os interesses de uma associação patronal junto aos poderosos da máquina pública. Nem de longe chega a ser um lobista de grandes corporações que produzem coisa suja, como aqueles do ótimo Obrigado por Fumar/Thank You for Smoking (2006). No filme inteligente, anticonvencional de Jason Reitman, os personagens principais são lobistas – um da indústria de tabaco, o outro da indústria de armas, outra da indústria de bebidas.

Não, de forma alguma nada tão horroroso assim: Eddie Sanger faz lobby para os produtores de leite de um daqueles Estados da América Profunda, nem me lembro qual. Mas, de qualquer forma, é um lobista, um sujeito que tenta influenciar os votos dos deputados e senadores, que se torna amigo de gente dos ministérios para conseguir informações e favores para o setor que representa.

É o tipo de profissão que os jovens idealistas, progressistas, sonhadores, que trabalham de graça para defender os humilhados e ofendidos, os desprezados pelo Sonho Americano, assim como Katy Riley, abominam.

E Eddie Sanger é um bom lobista. O filme o mostra em ação em festas que reúnem congressistas, socialites, gente rica, e também nos corredores do Capitólio. É um sujeito bonitão, extremamente simpático, extremamente solícito. Assim, apesar de representar um grupo pouco poderoso, produtores de leite de um Indiana daqueles, é muito conhecido nas esferas do poder da capital do pais mais rico do mundo.

O lobista se empenha em ajudar a advogada

Por algum daquelas decisões absolutamente incompreensíveis de Deus, dos fados, do destino, vai acontecer que Eddie Sanger é designado para participar da escolha dos jurados do julgamento de Carl Anderson. Na seleção dos juradores, há um primeiro bate-boca entre a advogada do reú, nossa Katy Riley, e o lobista bem vestido – mas ela não o dispensa. Nem o dispensa o auxiliar da promotoria Charlie Stella (o papel de Joe Mantegna), e então Eddie, que achava que conseguiria escapar daquela chatice, é selecionado para fazer parte do júri.

Por outra daquelas coisas inteiramente incompreensíveis, sem qualquer lógica, Eddie vai se interessar em passar dicas à advogada.

OK, ele poderia ter ficado a fim dela – mas nesse caso ele saberia que seria rejeitado. Uma advogada séria, cheia de compromisso com a ética, jamais aceitaria a ajuda de um jurado – isso é absolutamente imoral.

Achei que isso aí é uma das falhazinhas do roteiro de Eric Roth: não se explica por que, afinal, Eddie resolve se empenhar tanto pela defesa do réu.

Outras das falhazinhas, na minha opinião, são algumas das trocas de farpas entre a advogada Katy e o juiz, o empertigado, cheio de si juiz Helms (o papel de John Mahoney). Achei que alguns diálogos ali são meio forçação de barra – mas tudo bem.

O juiz Helms – trama boa tem dessas coisas – está sendo cotado para assumir a vaga aberta na Suprema Corte com a morte do juiz Lowell.

E vai começar a desconfiar que há alguma coisa acontecendo entre a advogada do réu e aquele jurado de roupas sempre impecáveis.

A própria Katy diz algumas vezes que não sabe se Carl é inocente ou não. Há circunstâncias que indicam que ele pode ter, sim, assassinado a jovem Elizabeth Quinn para roubá-la.

Mas o espectador, se for acostumado com os dramas de tribunal, não terá dúvida alguma: Carl, o homeless, é inocente.

O verdadeiro assassino/a verdadeira assassina é alguém poderoso, desconfiará o espectador experiente. Provavelmente para impedir que viesse à tona algum grave pecado do passado.

O filme realça que há homeless demais em Washington

Uma característica muito impressionante deste filme de Peter Yates sobre roteiro original de Eric Roth é o destaque, a importância que se dá ao grande número de sem-teto na capital da nação mais rica da História da humanidade.

Há homeless em todas as grandes cidades do mundo – inclusive nas dos países mais ricos. Há sem-tetos em Estocolmo, em Oslo, em Copenhagen, em Nova York, em Londres, em Paris – não é só em São Paulo e no Rio de Janeiro. E toda a questão de moradores de rua é extremamente complexa. Ao contrário do que a esquerda mais atrasada, tacanha, quer fazer crer, a existência de moradores de rua não é apenas um indicativo de injustiça social, de miséria, de falta de oportunidades das sociedades capitalistas. Há – sabe-se muito bem disso – muita gente que prefere a condição de morador de rua, que recusa todo tipo de atendimento, de ajuda, pelos mais diferentes motivos, sejam psicológicos, psiquiátricos, o que for.

Mas o fato é que a ênfase dada neste Sob Suspeita/Suspect à existência de centenas e centenas e centenas de homeless em Washington é realmente impressionante.

É possível que naquele final dos anos 80 o fenômeno fosse mais explosivo. Não sei. O livro O Advogado/The Street Lawyer, de John Grisham, lançado em 1998, é sobre moradores de rua na capital americana.

Mas que é uma chaga feia demais haver tamanha miséria a poucos quilômetros da Casa Branca e do Capitólio, ah, lá isso é.

E o filme faz questão de expor, de mostrar, de escancarar a existência dessa chaga horrorosa.

O filme procurou ser bem realista, autêntico

Aqui vão algumas informações sobre o filme e sua produção, tiradas da página de Trivia do IMDb:

* Este foi um dos três filmes com Cher a estrear em 1987. São do mesmo ano As Bruxas de Eastwick e Feitiço da Lua, pelo qual ela ganhou o Oscar de melhor atriz.

Já este Sob Suspeita não foi indicado a nada, nem no Oscar, nem no Globo de Ouro.

* Consta que o irlandês Liam Neeson (ele nasceu numa pequena cidade da Irlanda do Norte, em 1952) passou dois dias num abrigo para moradores de rua em Washington, como parte da preparação para interpretar Carl Anderson.

* Cher, por sua vez, passou vários dias visitando o escritório da defensoria pública em Washington, conversando com os advogados, e assistiu a julgamentos em tribunais da capital americana. “Vi um julgamento de um acusado de assassinato, e é muitíssimo diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto no cinema ou na televisão”, disse ela.

* Da mesma maneira, Dennis Quaid passou um tempo no Capitólio, observando a movimentação junto aos gabinetes dos deputados e no plenário da Câmara, e conversando com lobistas.

* A produção do filme insistiu em dizer, em entrevistas na época do lançamento, que houve, de um lado, grande cooperação das autoridades, tanto as federais quanto as locais, para permitir as filmagens nos locais reais citados no filme. E, de outro lado, um grande esforço de todos os envolvidos para fazer uma encenação realista, próxima da realidade, de como se dão mesmo as coisas. O produtor executivo John Fitch disse que foi contratada uma pessoa da Defensoria Pública de Washington como consultora técnica, e ela acompanhou as filmagens.

Ebert detestou o finalzinho do filme

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Dedicada defensora pública (Cher) batalha em um caso quase perdido, representando um mendigo surdo acusado de um crime, com a inesperada ajuda de um dos jurados (Quaid). Filme interessante que consegue se sobrepor às suas muitas implausibilidade, com Cher apresentando uma atuação ótima e totalmente crível.”

Eis aqui um maravilhoso exemplo daquela velha verdade: cada cabeça, uma sentença. Eis como começa o texto de Pauline Kael, a rainha da crítica americana: “Pode haver uma escolha de elenco mais inefavelmente Hollywood que colocar Cher como uma ocupada, fatigada defensora pública? Ela é toda errada para o papel: sua face encoberta, introspectiva, não entrega tudo – ela precisa de um papel que a deixe usar o corpo. Com a câmara fixa nela, aqui, você poderia estar olhando para uma fotografia.”

Em seguida Dame Kael diz que a personagem da advogada é uma bobona que são o que fazer, e estaria perdida se não fosse pela ajuda de um jurado, interpretado por Dennis Quaid, que resolve fazer o trabalho de detetive. E conclui: “Provavelmente o diretor, Peter Yates, e o roteirista, Eric Roth, ficaram tão orgulhosos por não ter feito a mulher ser uma garota de programa que nem notaram que a transformaram numa pateta.”

Ai, ai… Dame Kael é sempre Dame Kael.

Muitíssimo mais sério que do que Pauline Kael, Roger Ebert abre assim seu longo texto sobre o filme, ao qual deu 2.5 estrelas:

“Filmes de arte podem jogar qualquer tipo de jogo que queiram. Mas se você vai fazer um filme comercial, então acho que você tem que jogar segundo as regras daquele gênero. No caso de um whodunit (quem fez, quem cometeu o crime) de tribunal, significa que você não pode produzir o culpado assim do nada, sem pistas ou qualquer tipo de preparação. O espectador precisa ter uma chance razoávbel de descobrir as coisas. Suspect é um thriller bem feito, mas para mim ele perdeu muito com a extraordinária sequência final em que Cher, como a advogada de defesa, soluciona o caso com toda a lógica de um mágico que puxa um coelho da cortola.”

Roger Ebert é incrível. Seus textos são realmente admiráveis.

Bem mais adiante, ele diz que gostou das cenas em que Cher e Dennis Quaid aparecem juntos, e admirou suas atuações. “Na verdade, achei muitas coisas boas neste filme, que foi dirigido por Peter Yates com uma atenção particular à textura das vidas dos personagens. Um dos temas do filme é que todos os personagens são homeless – não apenas o vagabundo, mas também o lobista, a defensora publica e todos os outros que a gente encontra. Eles têm lugares em que vivem, que usam para dormir à noite, mas eles não têm um ‘lar’, e não têm pessoas queridas em volta deles. Sua solidão é realçada em uma das sequências mais efetivas do filme, em que Quaid dorme com uma deputada, e não se sabe se ele está ali por ambição, pela política, ou por necessidade.”

Que fantástica sensibilidade, que maravilhosa percepção. Roger Ebert está certo em tudo o que diz. É exatamente isso: são, todos eles, todos aqueles personagens que vivem ali junto do poder, pessoas absolutamente solitárias.

Não resisto: vou transcrever também a conclusão do texto, que fala do fim do filme – sem estragar, sem dar spoiler.

“O filme desenvolve seu caso com um tipo de lógica de que gosto num whodunit. Nós ficamos conhecendo os suspeitos, avaliamos as pistas, e aí (depois da obrigatória sequência mulher-em-perigo com um sujeito com uma faca caçando Cher através de corredores escuros), há o grande confronto no tribunal. É aí que o filme derrapa. Cher fica de pé e expele um discurso longo, complicado, em que se revela quem é o verdadeiro assassino – e eu comecei a desenvolver um caso sério de ressentimento, porque o assassino é uma completa surpresa que não estava nas possibilidades imaginadas. Isso não é justo. É como se um romance de Agatha Christie avaliasse seis suspeitos numa casa do campo inglês, e então no último capítulo descobríssemos que o assassino era o sujeito da casa ao lado.”

Verdade. É quase isso. Quase: acho que Maltin exagera um pouco. Antes da sequência final, o filme dá uma pista ao espectador, sim: uma fita cassete encontrada no carro de Elizabeth Quinn, a moça assassinada, traz uma confissão do juiz da Suprema Corte, entregue a ela pouco antes de o juiz se matar.

Mas isso é apenas de um detalhe. Como diz o Ebert, o filme vai bem até a sequência final. Portanto, são quase 2 horas de bom filme de tribunal.

Anotação em dezembro de 2018

Sob Suspeita/Suspect

De Peter Yates, EUA, 1987

Com Cher (Kathleen Riley), Dennis Quaid (Eddie Sanger)

e Liam Neeson (Carl Wayne Anderson), John Mahoney (juiz Matthew Bishop Helms), Joe Mantegna (Charlie Stella, o promotor), Philip Bosco (Paul Gray, o subsecretário de Justiça), E. Katherine Kerr (deputada Grace Comisky), Fred Melamed (Morty Rosenthal, o colega de Kathleen), Lisbeth Bartlett (Marilyn), Paul D’Amato (Michael), Bernie McInerney (Walter), Thomas Barbour (juiz Lowell), Katie O’Hare (Elizabeth Quinn), Rosemary Knower (a secretária do juiz Lowell), Aaron Schwartz (o patologista)

Argumento e roteiro Eric Roth

Fotografia Billy Williams

Montagem Ray Lovejoy

Música Michael Kamen

Figurinos Rita Ryack

Produção Daniel A. Sherkow, TriStar Pictures, ML Delphi Premier Production.

Cor, 121 min (2h01)

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