Michael Collins, o Preço da Liberdade / Michael Collins

Nota: ★★★☆

 

O diretor Neil Jordan e o ator Liam Neeson são contemporâneos e conterrâneos. O primeiro nasceu em 1950, em Isligo, e o segundo, em 1952, em Ballymenna, a 190 km da outra cidade. Cada uma delas, no entanto, fica num país diferente.

Era um país só em 1916, o ano em que se inicia a ação deste filme que Neil Jordan e Liam Nesson fizeram juntos 80 anos depois, em 1996. E o homem que o ator interpreta, o personagem-título, Michael Collins, é, em parte, o responsável pelo fato de que hoje existem duas Irlandas, a República da Irlanda, Eire, e a Irlanda do Norte, Ulster.

Por ter representado seu país nas conversações com o governo da Grã-Bretanha que levaram à divisão da Irlanda em duas – com a Irlanda do Norte continuando como parte da Grã-Bretanha, mas a Irlanda se transformando num Estado Livre –, Michael Collins atraiu o ódio de boa parte dos seus conterrâneos.

Ao mesmo tempo, porém, ele foi uma das figuras mais importantes, mais decisivas no processo – longo, lento, doloroso – que levou à independência da Irlanda.

O processo de separação da Irlanda do Império Britânico foi extremamente complexo – e extremamente sangrento. Incluiu rebeliões armadas, praticamente uma guerra de guerrilha, um tratado de paz que foi contestado por meio país e levou a uma guerra civil entre irlandeses. O processo só seria completado, com a proclamação, finalmente, da República da Irlanda, em 1949 – um ano antes de Neil Jordan nascer, três anos antes do nascimento de Liam Neeson.

A ação de Michael Collins começa exatamente onde acaba a da série Rebellion

Michael Collins, o filme sobre esse guerreiro e político polêmico, ao mesmo tempo odiado e respeitado, feito por um cineasta rebelde, independente, ele mesmo também polêmico, é muito bom. Tem belíssimas imagens – a fotografia é de Chris Menges, um dos maiores mestres da arte -, interpretações magníficas de grandes atores, trata com grandeza eventos memoráveis.

Não é, no entanto, um filme que facilita muito a compreensão dos fatos históricos daquele período conturbadíssimo da História da Irlanda. Muito ao contrário, A sensação que dá é que Neil Jordan considera que o espectador está cansando de saber tudo sobre o processo de independência da Irlanda. Não há, por exemplo, letreiro informando data ou local, ao longo de todo o filme. Senti falta de um letreiro com informações contextualizando os fatos no momento histórico.

Confesso – sem sequer uma ponta de vergonha – que só consegui entender um pouco da História por trás da história de Michael Collins que Neil Jordan nos conta porque, alguns dias antes, tínhamos visto Rebellion, e, em seguida, fiz uma pesquisa sobre o tema, ainda que não aprofundada.

Rebellion é uma minissérie irlandesa que procura reconstituir de maneira fiel a revolta contra o domínio britânico ocorrida em abril de 1916, que ficou conhecida como Easter Rising, ou Easter Rebellion, a Rebelião da Páscoa. Bem diferentemente do que Neil Jordan fez aqui, os realizadores da série – produzida em 2016, com cinco episódios, disponível na Netflix – fazem questão de informar o local e a data exata em que se passa cada sequência.

É um tanto como se fosse a segunda trilogia de Guerra nas Estrelas (2000-2005), em que a ação se passa antes do início da primeira trilogia (1977-1983). Feita exatos 20 anos depois de Michael Collins, a série Rebellion termina exatamente onde o filme de Neil Jordan começa. Precisamente o Easter Rising, a Rebelião da Páscoa.

Na série, Michael Collins aparece pouco – ainda não era um dos principais líderes dos que lutavam contra o domínio britânico. Tinha, sim, alguma importância; era, digamos, um capitão, um major – mas ainda não era um general.

A cópia do filme disponível no Now cortou o letreiro explicativo inicial

Segundo vejo agora no IMDb, há, sim, um letreiro inicial apresentando uma contextualização dos fatos. Desgraçadamente, a cópia do filme que está disponível no Now cortou fora esse letreiro.

O IMDb traz o texto. Eis aqui:

“Na passagem do século (do XIX para o XX), a Grã-Bretanha era a maior potência do mundo, e o Império Britãnico se estendia por dois terços do globo. Apesar da extensão do seu poder, sua colônia mais incômoda sempre havia sido a mais vizinha dela, a Irlanda. Por 700 anos, o domínio britânico sobre a Irlanda havia sido combatido por tentativas de rebeliões e revolução, que sempre terminavam em fracasso. Então, em 1916, começou uma rebelião, que seria seguida por uma guerra de guerrilha que mudaria a natureza daquele domínio para sempre. O arquiteto dessa guerra era Michael Collins. Sua vida e morte definiram o período, em seu triunfo, terror e tragédia. Esta é sua história.”

O filme começa quando o Exército britânico está destruindo as últimas resistências do Easter Rising, a Revolta da Páscoa, em abril de 1916. Michael Collins é um dos muitos presos. Diversos dos maiores líderes da revolta são fuzilados. O filme não se preocupa em mostrar isso, mas a série Rebellion mostra: para justificar a execução dos líderes rebeldes, para não parecer pouco civilizados, os britânicos encenaram – bem mal encenada – um farsa, um tribunal pro forma, de cartas absolutamente marcadas.

Quem escapou ddo fuzilamento foi enviado para prisões na Inglaterra; entre eles estavam Michael Collins e seu amigo-irmão Harry Boland (Aidan Quinn).

Nos primeiros minutos do filme, Michael e Harry, libertados após algum tempo na prisão, estão viajando de volta para a Irlanda. – “Eles nos soltaram para que a gente faça alguma coisa que nos leve de volta à prisão”, diz Michael – que o diretor Neil Jordan e Liam Neeson mostram como um sujeito capaz de ser bem humorado, alegre, nos momentos em que isso é permitido, embora fosse capaz também de ser um militar seriíssimo, duro, compenetrado, nos momentos de batalha e de preparação para as batalhas.

Policiais irlandeses, servindo ao governo do rei britânico (naqueles anos, era George V), estavam sempre seguindo seus passos. Um dos que mais o seguiam se chama Ned Broy, e vem na pele do sempre ótimo Stephen Rea, um dos atores preferidos do diretor Neil Jordan.

De repente, do nada, surge uma bela mulher – o papel de Julia Roberts

Como roteirista, Neil Jordan de fato não se mostra preocupado com detalhes do tipo contar ao espectador em que ano estamos, ou exatamente o que está acontecendo, quem é quem na história. Além daquele texto de introdução, que não está na cópia disponível no Now, não há qualquer outro letreiro indicando local e data.

De repente, assim, do nada, Michael e Harry estão na casa de uma família em que uma linda mulher, uma pretty woman interpretada pela pretty woman que foi um dos maiores sucessos do cinema nos anos 90, Julia Roberts. A personagem de Julia Roberts, que surge assim do nada, se chama Kitty Kiernan, e está cantando “She moved through the fair”, a belíssima canção tradicional irlandesa que continuou sendo gravada por gente boa muitos anos depois da proclamação da República da Irlanda em 1949.

Nessa primeira cena em que aparece, no interior de uma casa irlandesa, Julia Roberts-Kitty Kiernan está sendo dublada pela que era naquele ano de 1996 a maior cantora irlandesa, Sinnead O’Connor. Bem mais tarde, nos créditos finais, Sinnead canta inteirinha a maravilha que é “She moved through the fair”.

De onde saiu Kitty Kiernan, ninguém sabe – mas é claro, é lógico, é óbvio que tanto Michael quanto Harry, os dois amigos-irmãos, vão se apaixonar por ela. Quem não se apaixonaria por uma linda irlandesa em flor que canta “She moved through the fair” com a voz de Sinnead O’Connor e os lábios, os olhos e o resto todo de Julia Roberts?

Durante 2 anos e meio, Michael Collins liderou a guerrilha contra os britânicos

Vemos Michael Collins liderando grupos de rebeldes invadindo postos policiais para roubar armas e munições.

Vemos Michael Collins participando de reuniões de um governo da República da Irlanda – estava lá o presidente da República, Eamon De Valera (o papel de Alan Rickman), estavam lá diversos ministros. Não há explicação alguma – mas aquele governo, que havia sido instituído exatamente às vésperas da Revolta da Páscoa, era totalmente clandestino. Não governava nada = apenas os rebeldes, os que lutavam contra os britânicos. Uma espécie assim de shadow cabinet, como o partido de oposição ao partido do primeiro-ministro britânico costuma formar.

Mas de Valera e todos os demais ministros se comportam como se de fato estivessem governando a Irlanda.

Nesse gabinete de sombra, a rigor de araque, Michael Collins era o ministro da Informação – na prática, o ministro da Guerra, o comandante-em-chefe do exército revolucionário, o exército de guerrilheiros, oficialmente o IRA, na sigla em inglês – Exército Republicano Irlandês.

A guerra de guerrilha dos rebeldes liderados por Michael Collins  durou de janeiro de 1919 a julho de 1921, e passou para a História como Guerra da Independência Irlandesa ou Guerra Anglo-Irlandesa. Causou grandes estragos, imensos prejuízos às forças britânicas, a tal ponto que o Império Britânico pediu para que as duas partes – o governo de Sua Majestade e os rebeldes, que diziam obedecer à Presidência da República da Irlanda – se sentassem a uma mesa de negociações.

Por uma esperteza política do líder dos rebeldes, Collins foi negociar em Londres

O filme mostra o presidente Eamon De Valera nomeando exatamente seu homem das armas para ir negociar a paz com o governo do primeiro-ministro britânico. Segundo a versão apresentada por Neil Jordan, Michael Collins tentou recusar a tarefa; alegou que era um soldado, não um diplomata; sugeriu que o homem certo para discutir com o governo britânico era o próprio De Valera. Este, no entanto, foi taxativo, manteve a decisão.

Ainda segundo o que filme mostra, Collins tinha plena consciência de que De Valera entregava a ele uma tarefa dificílima por um estudado cálculo político: a Grã-Bretanha não iria mesmo ceder completamente e aceitar todas as demandas irlandesas – e, portanto, o negociador voltaria para Dublin sofrendo o desgaste de trazer um acordo não favorável de todo. Enviando Michael Collins, De Valera evitava o desgaste e o transferiria para o homem que acabou se tornando seu principal rival, devido aos êxitos militares.

E foi exatamente o que aconteceu. Ao retornar à Irlanda, em dezembro de 1921, trazendo o Tratado Anglo-Irlandês, Michael Collins dividiu a opinião pública. Se por um lado o tratado garantia o Estado Livre irlandês, com governo próprio e autônomo, por outro não assegurava a transformação do país em república, e ainda garantia que o Ulster, um conjunto de condados do Norte, de maioria protestante, continuasse vinculado à Grã-Bretanha.

E então veio a guerra civil entre os pró-tratado, liderados por Collins, e os anti-tratado, com De Valera à frente.

Neil Jordan é um cineasta que cultiva a fantasia, o surreal, o doidão

Acho interessante que Neil Jordan, um cineasta em geral pouco afeito a temas áridos como fatos históricos e política, tenha resolvido fazer este filme que faz o elogio de figura tão polêmica. Afinal, Michael Collins ficou marcado como um reformista, e não um revolucionário – um líder que preferiu optar pela luta a longo prazo, pela transição mais lenta rumo à república, em vez da posição radical de enfrentamento total com a Grã-Bretanha depois de dois anos de guerra sangrenta.

Bem diferentemente de seus colegas Ken Loach, Mike Leigh, Stephen Frears e mesmo Alan Parker, cineastas que cultivam o realismo, Neil Jordan é mais próximo da fantasia, do surreal, do gótico, do doidão – como mostram seus filmes A Companhia dos Lobos (1984), Malucos e Libertinos/High Spirits (1988), O Fantasma Excêntrico (1988), Entrevista com o Vampiro (1994), Café da Manhã em Plutão (2005), Byzantium (2012).

Não é à toa que o livro 500 Movie Directors o chama de “quirky visionaire”, visionário excêntrico, e Jean Tulard, em Dicionário de Cinema – Os Diretores, fale de seu “gosto pelo fantástico”.

Ken Loach, o mais político dos realizadores das Ilhas Britânicas, fez dois filmes sobre os tumultuados anos entre a Revolta da Páscoa de 1916 e a entrada em vigor da Constituição da Irlanda, em 1927. São belos filmes. Ventos da Liberdade/The Wind that Shakes the Barley (2014) e O Salão de Jimmy/Jimmy’s Hall (2014), e neles me parece que fica clara a simpatia do cineasta socialista pelos irlandeses anti-tratado.

Michael Collins foi indicado a dois Oscars, os de melhor fotografia e melhor trilha sonora. Não levou – mas são de fato extraordinárias a fotografia de Chris Menges e a trilha de Elliot Goldenthal. A trilha foi indicada também ao Globo de Ouro, assim como Liam Neeson como melhor ator de drama.

E Liam Neeson está muito bem como essa figura fascinante. Faz o leitor simpatizar de cara, e cada vez mais, com Michael Collins. Ao ver o filme agora pela primeira vez (não tinha visto na época do lançamento, perdi, não fui atrás), fiquei pensando que é uma pena esse grande ator, grande em todos os sentidos, ter se dedicado nos últimos anos a filmes de ação, tipo Desconhecido/Unkown (2011) Noite Sem Fim/Run All Night (2015) e O Passageiro/The Commuter (2018).

O IMDb informa que o funcionário irlandês responsável por estabelecer a indicação de faixa etária apropriada para ver o filme foi extremamente condescendente: apesar de tantas cenas de grande brutalidade e violência, Michael Collins não foi proibido para menores de 17 anos, o que seria o normal, segundo diz o site. E o IMDb traz uma declaração do censor encarregado de definir a a classificação indicativa do que ele chamou de “um marco histórico do cinema irlandês”. “Por causa do tema, os pais devem ter a opção, o poder de decidir se seus filhos podem ou não ver o filme”.

Uma atitude absolutamente lógica, me parece.

Michael Collins – informa ainda o IMDb – se tornou o segundo filme de maior bilheteria de todos os tempos na Irlanda.

Anotação em julho de 2018

Michael Collins, o Preço da Liberdade/Michael Collins

De Neil Jordan, Irlanda-Inglaterra-EUA, 1996

Com Liam Neeson (Michael Collins)

e Aidan Quinn (Harry Boland), Stephen Rea (Ned Broy), Alan Rickman (Eamon De Valera), Julia Roberts (Kitty Kiernan), Ian Hart (Joe O’Reilly), Paul Bennett (Cosgrave), Laura Brennan (Rosie), Charles Dance (Soames), Michael Dwyer (James Connolly), Brendan Gleeson (Liam Tobin), David Gorry (Charlie Dalton), Stuart Graham (Tom Cullen), John Kenny (Patrick Pears)

Roteiro Neil Jordan

Fotografia Chris Menges

Música Elliott Goldenthal

Montagem J. Patrick Duffner e Tony Lawson

Casting Susie Figgis

Produção Warner Bros, Geffen Pictures

Cor, 133 min (2h13)

***

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