Entre Frestas / Hiacynt

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 1/2022.)

Hiacynt, no Brasil Entre Frestas, produção polonesa de 2021, parte do caso do assassinato de um ricaço gay na Varsóvia de 1985 para dar um panorama de como a polícia perseguia e brutalizava os homossexuais na Polônia comunista – e, no pano de fundo, para mostrar como era podre, fétida, aquela ditadura.

É um filme feito com competência, com talento, como seria de esperar dessa que é a cinematografia mais brilhante de todas as dos países do Leste europeu que se tornaram satélites do Império Soviético depois que o Exército Vermelho as libertou do nazismo, ao final da Segunda Guerra, apenas para lançá-las sob nova dominação estrangeira.

E a verdade é que é sempre uma maravilha ver filmes feitos nas ex-nações comunistas da Europa do Leste mostrando a barbaridade que eram aquelas ditaduras.

Um policial correto e um policial violento

É uma história original, criada diretamente para o filme por Marcin Ciaston, ele também autor do roteiro. Foi o primeiro roteiro de um longa-metragem assinado por ele, depois de se formar na Escola de Filme de Varsóvia e escrever roteiros para a TV. Um roteirista ainda em início de carreira, e um diretor jovem demais: Piotr Domalewski nasceu em 1983 – apenas oito anos antes de a Polônia deixar de ser comunista, após o esfacelamento do Império Soviético a partir de 1990, 1991. Este Hiacynt foi o quarto longa-metragem dirigido por Domalewski.

Diretor e roteirista abrem o filme em uma sequência que já define bem rapidamente o caráter e o jeito de agir de uma dupla de policiais: os dois estão perseguindo, nas ruas da capital polonesa naqueles meados dos anos 1980, um ladrão, um sujeito que acaba de roubar um objeto. O mais jovem dos dois, Robert (Tomasz Zietek, ao centro na foto acima), homem aí de uns 30 anos, é quem agarra o ladrão, o derruba no chão e tenta dominá-lo. Seu parceiro, Wojtek (Tomasz Schuchardt, à direita na foto acima), mais forte, mais parrudo, de uns 40 anos, chega em seguida e agride com porradas e pontapés o ladrão já dominado.

Ao longo dos 112 minutos do filme veremos que é isso mesmo: Wojtek é um policial violento, brutal, grosseiro. Robert – que será o protagonista da história – é um sujeito que procura ser correto, honesto em tudo o que faz. É esforçado, estudioso; já é tenente, e bem no início da ação recebe uma carta informando que foi aceito numa exclusiva academia de formação de policiais que serão o top de linha da força de segurança da capital.

Robert tem também um pai que conta a favor e contra ele. Edward, o pai (o papel de Marek Kalita), é coronel da Polícia, homem próximo aos mais altos escalões do poder, amigo do ministro da Segurança. Fica óbvio que mexeu pauzinhos para que o filho fosse aceito na academia – e Robert gostaria de ter sido aceito por suas próprias qualidades, seu próprio esforço.

Quando chegam à delegacia em que trabalham, levando o ladrão que acabam de prender, há diversos homens sendo fichados como homossexuais, no que – mostra-se logo para o espectador – é uma grande operação, chamada Operação Jacinto. O título original do filme, Hiacynt, vem daí; nos Estados Unidos e Reino Unido, o filme teve o título de Operation Hyacinth.

Robert e Wojtek são chamados à sala de seu comandante – o papel de Miroslaw Zbrojewicz, um ator que tem o tipo perfeito para interpretar um canalha em posição de mando.

O comandante diz que vai confiar a eles a investigação de um assassinato – um homem que foi encontrado morto em um parque da cidade. Quer que seja encontrado logo um culpado. Não diz o culpado – diz um culpado.

Fica óbvio que aquela dupla não está acostumada a investigar homicídios, de forma alguma – e, na verdade, aquele será um dos primeiros, se não o primeiro. Um dos dois chega a perguntar se não é necessária uma dupla com mais experiência, ao que o comandante responde que o mais necessário é que aquele caso específico seja investigado por policiais de confiança. E entrega para cada um deles um bônus de 200 zlotys. (Cacete, até o nome da moeda da Polônia é dureza para nós…)

A polícia logo dá o caso por encerrado

Na casa da vítima, os dois parceiros rapidamente descobrem que ele era um homossexual: havia fitas cassete de cenas de sexo entre homens, entre outas dicas bastante óbvias.

Começam a ouvir depoimentos de homossexuais, à procura de quem conhecia a vítima.

Vão a uma região conhecida por ser ponto de reunião de gays. Diante da chegada da polícia, todos fogem. Robert resolve seguir um deles, passando-se não por um policial, mas um frequentador do lugar. Chega perto do homem – é um jovem estudante universitário, boa pinta, chamado Arek (Hubert Milkowski, na foto acima), tenta estabelecer uma amizade. A princípio, pretende usá-lo como um informante, mas vai de fato se aproximando dele, simpatizando com ele. Arek leva Robert para festas da comunidade gay, o que poderia ajudar na investigação do assassinato.

Um gay que conhecia a vítima acaba preso – e pouco depois aparece morto em sua cela. O comandante parabeniza a dupla de policiais, considera que o crime está solucionado.

O filme está, neste momento, com 33 dos 112 que dura.

Para o comandante, para Wojtek, para o coronel pai de Robert está tudo bem, está tudo resolvido. Um homossexual foi morto, um suspeito foi preso e se matou na prisão, o que confirma sua culpa. Pronto, acabou.

Só para Robert a coisa não acabou. Ele não está satisfeito com aquilo, sabe que não há prova alguma de que aquele preso tenha sido o assassino. Vai continuar investigando. Vai perceber que o crime tem ramificações que levam a figuras importantes do regime.

Vai se danar.

O filme escancara o clima de falta de liberdade

O assassinato de um homossexual em ditadura comunista que hostiliza, persegue homossexuais. É claro que o tema deste Hiacynt, história original filmada em 2021 na Polônia, faz lembrar Máscaras, o livro do cubano Leonardo Padura, o terceiro da tetralogia Estações de Havana, lançado em 1997 – e que virou um filme com roteiro do próprio Padura e direção do espanhol Félix Viscarret em 2016.

Em Máscaras, como neste Hiacynt aqui, revela-se que o crime tem conexão com altos figurões do regime comunista. Da mesma forma que na Polônia do general Wojciech Jaruzelski dos anos 1980, na Cuba de Fidel Castro também se hostilizavam, se perseguiam os homossexuais. A época em que se passam as duas histórias é a mesma – Hiacynt se passa em 1985, Máscaras, em 1989.

Impossível não lembrar também de Rojst, excelente minissérie polonesa de 2018, em que, no início dos anos 1980, os corpos de um figurão e uma jovem e bela prostituta são encontrados em uma floresta, com grandes, profundos cortes no pescoço, feitos com faca grande e afiadíssima. Quase simultaneamente, um casal de jovens adolescentes se suicida, pulando do alto de um prédio. A série Rojst vai fundo na radiografia de como é a vida sob uma ditadura feroz.

Este Hiacynt não se fixa muito na coisa do dia-a-dia das pessoas normais naquele ambiente de medo perene, de opressão em cada detalhe do cotidano, diferentemente da série Rojst – mas enfatiza com vigor o clima de falta de liberdade, de manda quem pode e obedece quem é esperto.

Há uma sequência especialmente interessante, em que Robert e sua namorada, a bela, simpática Halinka (Adrianna Chlebicka, na foto acima), ela também uma policial, vão a uma igreja e conversam com um padre sobre seus planos de se casarem de acordo com a religião católica.

Robert teme que a conversa com o padre vá ser ruim. Halinka diz uma frase definitiva: – “Metade das pessoas do país esconde alguma coisa”.

Halinka conta ao padre que eles temem que a Igreja possa não autorizar o casamento, porque, afinal, os dois trabalham na Polícia, e o pai do noivo é um alto oficial da segurança.

O padre – um bom padre – diz que algo tipo a Igreja está aberta para quem quiser entrar nela.

Historiadores apontam que foram fundamentais para o enfraquecimento do regime comunista na Polônia a grande religiosidade do povo e a eleição em 1978 para o Vaticano de Karol Wojtyla, o ex- arcebispo da Cracóvia, a segunda maior cidade do país.

O rápido diálogo de Halinka com o padre serve para mostrar exatamente a força da religiosidade do povo polonês, mesmo sob a ditadura comunista abertamente anti-religião, da mesma forma que anti-homossexuais.

Todas as ditaduras perseguem homossexuais

Hiacynt, como já foi dito, é obviamente uma história de ficção. Mas o que está em seu pano de fundo, a tal Operação Jacinto, existiu, é um fato histórico, e então, ao final do filme – como costuma acontecer em filmes baseados em fatos reais –, há letreiros que informam o espectador sobre os eventos históricos relacionados à trama.

Eis o que dizem os letreiros:

“Entre 1985 e 1987, como parte da Operação Jacinto, milhares de membros da comunidade LGTB foram vigiados, detidos e interrogados. Mais de 11 mil ‘arquivos rosa’ foram criados e usados para chantagear e pressionar homossexuais. Até hoje, a maioria deles não foi recuperada.”

A Wikipedia registra: “A Operação Hiacynt foi uma operação secreta da Polícia comunista polonesa, nos anos 1985-1987. Seu propósito era criar uma base de dados nacional de todos os homossexuais poloneses e as pessoas que tinham contato com eles, e resultou no fichamento de cerca de 11 mil pessoas.”

Diabo: 11 mil só? Ou havia muito menos homossexual na Polônia do que em qualquer outro lugar do mundo, ou a Polícia comunista polonesa era extremamente incompetente. Voto na segunda hipótese.

“Oficialmente, a propaganda polonesa dizia que as razões para o lançamento dessa operação eram: o medo do vírus HIV, então recentemente descoberto, já que os homossexuais eram considerados um grupo de alto risco; o controle das gangues criminosas formadas por homossexuais; a luta contra a prostituição.

“No entanto, o mais provável é que os funcionários da Służba Bezpieczeństwa quisessem reunir informações comprometedoras que poderiam mais tarde ser usadas para chantagear pessoas. Além disso, essas pessoas estariam mais dispostas a cooperar com os serviços de segurança. Há também especulações de que a operação era parte de uma ação mais ampla destinada a lutar contra a oposição ao comunismo.”

A verdade é que as ditaduras comunistas sempre perseguiram os homossexuais, de uma forma ou de outra. Vários filmes mostram isso.

O que eu acho particularmente interessante é lembrar que o nazi-fascismo também perseguia os homossexuais. Para os campos de concentração não foram mandados apenas judeus, mas também ciganos, membros de outras minorias, pessoas com malformações e homossexuais. O grande Ettore Scola fala sobre isso na obra-prima Um Dia Muito Especial/Una Giornata Particolare (1977)

Esta é uma das 200 milhões de provas de que não há nada mais parecido com a extrema esquerda do que a extrema direita.

“Uma estética distintamente neo-noir”

A crítica do site RogerEbert.com, assinada por Odie Henderson, começa exatamente com as informações básicas sobre a Operação Hiacynt, para que seu público principal – o norte-americano – compreenda o contexto em que se passa a história.

No segundo parágrafo de sua crítica – que dá ao filme 3.5 estrelas no total de 4 –, Odie Henderson diz:

“Conhecer essas informações irá deixar claro um ponto ou outro da trama, mas você pode entrar nesse lançamento da Netflix sem ficar perdido. O diretor Piotr Domalewski e o roteirista Marcin Ciastoń usam a operação como pano de fundo para uma investigação policial envolvendo um serial killer de homens gay e o policial que se infiltra (no meio gay) para solucionar o caso. Ao longo do caminho, nosso protagonista começa a pensar se ele não estaria se identificando demais com seu papel temporário de homem gay. Pode parecer um pouco com Cruising (Parceiros da Noite, 1980, de William Friedkin, com Al Pacino e Karen Allen), mas na verdade ele se aproxima mais dos filmes sobre detetives dos anos 80 e dos thrillers paranóicos dos 70.”

(Imagino que quando o crítico fala de “thrillers paranóicos dos 70” ele esteja se referindo a filmes como A Conversação, 1974, de Francis Ford Coppola, A Trama, 1974, de Alan J. Pakula, Um Lance no Escuro, 1975, de Arthur Penn, aqueles dramas densos, pesados, que refletiam a atmosfera de podridão moral que veio com as revelações sobre o caso Watergate.)

Ele prossegue:

“O diretor de fotografia Piotr Sobociński Jr. banha os personagens e os locais em uma estética distintamente neo-noir, enquanto a história vai em espiral em direções que mantêm o espectador desprevenido sobre em quem pode confiar.”

É isso aí. Não poderia ser mais exata a descrição do clima do filme.

Creio que, lá nas nuvens ou aqui na Terra, Andrzej Wajda, Jerzy Skolimowski, Krzysztof Kieslowski, Roman Polanski e Agnieszka Holland aplaudiram este filme de seu conterrâneo Piotr Domalewski.

Anotação em janeiro de 2022

Entre Frestas/Hiacynt

De Piotr Domalewski, Polônia, 2021

Com Tomasz Zietek (Robert)

e Hubert Milkowski (Arek, o jovem estudante), Marek Kalita (Edward, o coronel pai de Robert), Adrianna Chlebicka (Halinka, a namorada de Robert), Tomasz Schuchardt (Wojtek, o parceiro violento de Robert), Piotr Trojan (Kamil, um dos gays), Sebastian Stankiewicz (Maciek), Jacek Poniedzialek (figurão, dignitário), Agnieszka Suchora (Ewa, a mãe de Robert), Tomasz Wlosok (Tadek), Miroslaw Zbrojewicz (o comandante), Andrzej Klak (agente com uma cicatriz), Adam Cywka (professor Mettler)

Argumento e roteiro Marcin Ciaston

Fotografia Piotr Sobocinski Jr.

Música Wojciech Urbanski     

Montagem Agnieszka Glinska

Casting Joanna Slesicka

Direção de arte Jagna Janicka 

Produção Joanna Szymanska, ShipsBoy, Haka Films, Appetite Production, Polski Instytut Sztuki Filmowe.

Cor, 112 min (1h52)

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