A Descarada / The Revolt of Mamie Stover

Nota: ★★★½

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 2/2022.)

The Revolt of Mamie Stover, no Brasil A Descarada, que o respeitável Raoul Walsh dirigiu em 1956, é um interessante, fascinante exemplo de como Hollywood era obrigada a fazer malabarismos ao lidar com temas mais polêmicos tendo que respeitar os ditames do Còdigo Hays, o conjunto de normas de autocensura estabelecido ainda nos anos 30 e que só seria de fato abandonado nos anos 60.

Um caso exemplar. Um case.

Minnie Stover, a protagonista da história, é uma prostituta. Na primeira sequência do filme, ela está sendo expulsa de San Francisco por praticar a prostituição. Dois policiais a levam até um cargueiro que partirá em seguida para Honolulu, no Havaí.

O espectador, obviamente, não tem que saber disso, mas os realizadores pretendiam que a primeira sequência do filme mostrasse Mamie fazendo o trottoir numa rua da cidade e sendo abordada por um homem de meia idade (que seria interpretado por Stubby Kaye). Essa sequência não existe no filme, e então a rigor o espectador não fica sabendo por que, na abertura da história, dois policiais estão levando aquele mulherão para o navio ancorado no porto de San Francisco.

Sim, um mulherão: Minnie Stover é interpretada por Jane Russell, aquela atriz a quem os estúdios sempre deram papéis em que brilhava o seu corpo, suas magníficas pernas, seus seios fartos, pontiagudos – no Alasca há duas montanhas apelidadas de “The Jane Russell Peaks”, e o comediante Bob Hope referiu-se a ela como “the two and only Jane Russell”, as duas e única Jane Russell.

A câmara do diretor de fotografia Leo Tover nos mostra Mamie Stover-Jane Russell de pé, no porto, olhando para San Francisco com uma cara de quem está amaldiçoando a cidade que a está colocando para fora, e aí vemos uma tomada geral de San Francisco à noite vista do porto. Em glorioso CinemaScope – o formato dos filmes em tela ampla, comprida, retangular, havia sido introduzida fazia pouco tempo, como uma arma do cinema para enfrentar a recém popularizada televisão, que era então pequenina, quadrada e em preto-e-branco.

The Revolt Of Mamie Stover, Bungalow pour Femmes na França, chegava em CinemaScope e cor by DeLuxe.

“Ela não é uma dama”, diz o capitão do navio

O cargueiro viaja meio Pacífico levando – além da carga, é claro – apenas dois passageiros: Mamie e um escritor, Jim Blair, que estivera em Hollywood, vendera um livro para um estúdio, e estava agora voltando para sua casa na ilha de Oahu, a mais populosa do arquipélago, onde fica a capital do Estado, Honolulu. Ele é interpretado por Richard Egan, ator pouco lembrado hoje, mas que nos anos 50 era um dos galãs da 20th Century Fox.

Logo após o final dos créditos iniciais, em que vimos Mamie ser levada pelos policiais até o porto e embarcar, Jim está conversando com o capitão do navio, Gorecki – o papel de Alan Reed, o ator que entrou para a História dando a voz a Fred Flintstone na amadíssima animação da dupla Hanna & Barbera.

Os dois – fica bem óbvio – se conheciam bem. O capitão acha estranho que o outro queira voltar para o Havaí, tendo passado algum tempo em Hollywood. Pergunta se ele conheceu estrelas de cinema – mostra-se particularmente interessado em saber sobre Marlene Dietrich.

A conversa recai, é claro, sobre a outra passageira do navio. Jim faz com todas as letras a pergunta: por que a Polícia a trouxe a bordo? Mas o capitão não responde objetivamente. – “Só queria se assegurar de que ela deixasse a cidade”. Jim insiste: – “Por quê?” O capitão responde com outra pergunta, brincalhão: – “Você está querendo escrever um livro sobre ela, ou algo assim?” E depois: – “Não se aproxime dela. Vai lhe custar caro. Ela usa os homens como lenços.”

Dá para inferir que ele quer dizer que ela troca de homens várias vezes, sem parar. Mas só dá para inferir.

É como se diz: é só falar no diabo e ele aparece. O capitão está acabando de dizer uma frase que termina com “… ela não é uma dama” quando Mamie Stover aparece na porta aberta da sala dos oficiais em que os dois homens estão conversando: – “Importa-se que eu tome um café?”, ela pergunta, com uma cara de quem já ouviu muito aquela afirmação.

O capitão não se apoquenta. Dá um sorriso, tira o chapéu, diz um amável “Sirva-se”, e faz a apresentação: – “Miss Stover, Mr. Blair”.

Ela sonhava em voltar para casa rica, muito rica

A viagem San Francisco-Honolulu é longa, e é claro que Miss Stover e Mr. Blair vão se encontrar nas andanças pelo naviozão. Na sequência seguinte àquela da conversa na sala dos oficiais, Jim bate à porta da cabine de Mamie, quando ela está trocando de camisa, o que permite que a câmara a mostre de lingerie, “The Jane Russell Peaks” enchendo a tela. Ele diz que gostaria de pedir desculpas pelo fato de estarem falando dela – e ela o dispensa. Mas é claro que voltam a se encontrar, e é claro que rola um clima, e os vemos se beijarem apaixonadamente. Mas também vemos Mamie se deitando sozinha em sua cabine e Jim idem na cabine dele. Tipo assim: olhaí, pessoal do Código Hays, eles não estão trepando, tá?

Nos diálogos entre os dois, no navio, ficamos sabendo que Mamie é de Leesburg, Mississipi; seu pai ainda está vivo, a mãe, não. O pai, Gus, era um bom sujeito, mas, como ela diz, “não se excedia em nada”. E tudo o que ela queria na vida era ser muito diferente do pai e da mãe, dois pobretões; queria ter muito, muito dinheiro.

– “Só há dois tipos de pessoas que voltam para casa”, ela diz, enquanto os dois passeiam pelo convés do navio e vemos o marzão besta atrás, em CinemaScope e Color By DeLuxe, coisas que a televisão não podia fazer. – “Os fracassados, que voltam se arrastando, e os que triunfaram, os que chegam em um carrão bem grande pela Rua Principal enquanto a banda toca ‘Bem-vindo à casa’. Eu espero esse carro.”

As moças trabalhavam e moravam no mesmo lugar

Jim se oferece para ajudar Mamie a arranjar um emprego no Havaí, como balconista de alguma loja ou coisa assim. Ela agradece, mas diz que já tem planos. Uma amiga dela havia se mudado fazia um tempo para Honolulu, e havia prometido arranjar um emprego para ela no lugar em que ela mesma trabalhava. Lá ela seguramente iria ganhar muito mais dinheiro do que numa loja.

É um nightclub, chamado The Bungalow – um local muito amplo, com grande salão com pista de dança e palco, mais salinhas privadas, onde cerca de 30 moças belas em roupas coloridas e atraentes recebiam vasta clientela formada apenas por homens.

Lá pelas tantas, falando do tal nightclub, Jim se refere a “Ten Cents a Dance”, a canção dos anos 30, sucesso na voz de Ruth Etting, que Michelle Pfeiffer cantaria de forma espetacularmente sensual em Susie e os Baker Boys/The Fabulous Baker Boys (1989) e Doris Day já havia cantado, também espetacularmente, em Ama-me ou Esquece-me/Love me or Leave me, justamernte a cinebiografia de Ruth Etting.

Faz todo sentido a referência à canção – até porque Ama-me ou Esquece-me havia sido lançado apenas um ano antes deste The Revolt Of Mamie Stover, em 1955.

Pauline Kael, a língua mais ferina da crítica americana, definiu o lugar como “a dime-a-dance joint” – uma espelunca onde se paga para dançar. E acrescentou uma ótima definição: “O lugar é um pouco barulhento, mas nada de desagradável acontece com as dançarinas”. No original ela usa danseuses, e o termo francês transforma a frase numa ironia deliciosa. E o adjetivo – raucous – tem expressividade bem maior que o simples barulhento. É duro e desagradável – ao mesmo tempo.

A amiga de Mamie que trabalha no Bungalow, Jackie (Jorja Curtright), mostra-se uma gracinha de pessoas. Conforme havia prometido, leva a recém-chegada à patroa, Bertha Parchman – uma boa interpretação, como sempre, da calejada Agnes Moorehead (1900-1974), uma daquelas eternas coadjuvantes, 113 títulos na filmografia, vários deles bons e/ou importantes, como, só para citar dois, Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942), de Orson Welles.

Bertha tem um braço-direito, gerente do estabelecimento e chefe dos guarda-costas, ele mesmo bom de briga com clientes desagradáveis demais e bom também de bater nas moças que eventualmente desobedecerem às ordens da patroa. Chama-se Harry Adkins (Michael Pate), e é um tipo vomitativo.

As ordens da patroa incluem: é proibido manter relações pessoais, afetivas ou de qualquer outro tipo, fora das dependências do nightclub. (Ah, sim, as moças vivem lá dentro – há uma ala residencial, por assim dizer.) É proibido ter conta bancária – o pessoal do imposto de renda poderia cair em cima.

Me lembrei agora, enquanto escrevia esta anotação, do casal de proprietários do bordel em A Rua da Vergonha, de Kenji Mizoguchi – que, por coincidência, é exatamente de 1956, o mesmo ano deste The Revolt Of Mamie Stover aqui. Há sem dúvida algumas semelhanças entre o esquema de trabalho das prostitutas do filme japonês e as moças deste filme hollywoodiano – a grande diferença é que o Japão não tinha um código de autocensura, e então as prostitutas eram mostradas abertamente como prostitutas.

O que me ocorre é: será que algum espectador americano naqueles meados dos anos 50, provavelmente a década mais hipócrita e careta do século XX, acreditava que as moças do Bungalow ficavam só dançando e/ou conversando e jogando cartas com os fregueses do lugar – muitos deles soldados americanos estacionados nas bases militares locais, a milhares de quilômetros de casa?

Mamie começa a ganhar muito dinheiro

Sim, a coisa das bases militares no Havaí é importante. Eu ainda não havia mencionado isso, mas a ação do filme se passa em 1941. Quando o filme começa, antes mesmo dos créditos iniciais em que vemos os policiais levando Mamie Stover para o cais, um grande letreiro avisa: “San Francisco, 1941”.

As pessoas mais atentas já reparariam nisso de cara, até mesmo hoje, tanto tempo depois. Seguramente quando o filme foi lançado, em 1956, não havia um único americano nas salas de cinema que não pensasse que, se era 1941 e a protagonista da história estava indo para o Havaí, então iria se falar do ataque japonês a Pearl Harbor.

Mas, antes de Pearl Harbor, é necessário registrar que, ao voltar para sua belíssima casa no alto de uma colina na ilha de Oahu, a confortável distância de Honolulu, no meio da mata maravilhosa, Jim Blair retoma também seu namoro com a bela, suave e bem “família” Annalea (Joan Leslie).

Mas o sujeito não consegue se esquecer de Mamie – e então vai visitá-la no Bungalow. Encantada por ele, Mamie viola ao mesmo tempo duas das leis da patroa Bertha: passa a sair do Bungalow às escondidas para se encontrar com Jim, e pede a ele que vá depositando numa conta bancária a boa grana que vai recebendo por ser uma prostituta da melhor categoria –  perdão, uma danseuse muito atraente.

Sim, ela havia se transformado na principal atração da casa de danças de Madame Bertha.

Numa das escapadas com Jim, os dois vão a uma praia deserta, o que permite que a câmara mostre La Russell de maiô e que um fade out após um beijo dos dois na praia dê finalmente a entender que, diabo, os dois estão trepando!

(Um fade out após um beijo apaixonado – a tomada sumindo, terminando, a tela durante meio segundo toda negra – é o mais perfeito indícativo de que em seguida o casal vai trepar. Woody Allen discute o assunto deliciosamente em A Rosa Púrpura do Cairo.)

Mamie começa a comprar imóveis com a fortuna que ganha no Bungalow. Quer porque quer enriquecer para um dia, quem sabe, voltar podre de rica para Leesburg, Mississipi.

O mocinho pede a mão da puta, perdão, da dançarina

E então acontece, num domingo, 7 de dezembro daquele ano anunciado de 1941, o ataque japonês à base militar de Pearl Harbor – o evento que fez finalmente os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial contra o Eixo Alemanha-Itália-Japão.

O grande Raoul Walsh (1887-1980), diretor de tantos policiais e aventuras e westerns, parece ter se empolgado por poder deixar de lado aquela coisa dramalhão e mostrar alguma ação.

As sequências do ataque dos aviões japoneses à base naval são excelentes, caprichadíssimas – embora não sejam assim tão fundamentais para a história que se está contando.

Me impressionaram muito, sobretudo, as sequências que mostram a movimentação dos civis, a fuga em massa das pessoas, sem direção certa, enquanto o enxame de aviões japoneses lançava bombas sobre a ilha. São belíssimas sequências – uma grande quantidade de extras, um realismo acurado, bem feito.

Dezenas de filmes foram feitos sobre o ataque japonês a Pearl Harbor – mas em nenhum dos que eu havia visto até agora há cenas que mostram as pessoas, o povo, os civis, gente como a gente, correndo feito baratas tontas diante do ataque maciço, gigantesco, apavorante, e totalmente inesperado.

Depois do ataque japonês, e da entrada dos Estados Unidos na guerra, os ganhos monetários de Mamie se ampliam ainda mais. Os preços dos imóveis caem, menos gente tem dinheiro para comprar – e a mulher que quer porque quer enriquecer faz a festa. Paralelamente, Jim se une ao exército, e, antes de ir para o front, faz o grande gesto – pede a moça em casamento. Caso ela deixe aquele negócio de dar para a homarada toda, perdão, deixe de entreter os homens com danças e canções, e caso ele sobreviva à guerra, vão se casar. Topa, Mamie?

O filme tem muito em comum com A Um Passo da Eternidade

Aqui, neste ponto, é preciso falar de A Um Passo da Eternidade/From Here to Eternity.

Há mais coisas em comum entre estes dois filmes, Horácio, do que pode sonhar sua vã filosofia – embora sejam tão absolutamente diferentes. O filme de Fred Zinnemann sempre foi unanimemente reconhecido como uma obra importantíssima. Como anotei quando o revi para escrever sobre ele aqui, A Um Passo da Eternidade é um raro caso de absoluta unanimidade. Não se tem notícia de alguém que não tenha respeito e admiração pelo filme. O reconhecimento é amplo, geral, irrestrito – e foi imediato. Foi o terceiro filme de maior bilheteria nos Estados Unidos no ano de seu lançamento, 1953, oito anos após o fim Segunda Guerra Mundial sobre a qual ele trata.

Teve 13 indicações ao Oscar – 13! Levou oito estatuetas – oito!

Este A Descarada/ The Revolt Of Mamie Stover, de 1956, três anos apenas depois do outro, não teve indicação alguma ao Oscar, nem a qualquer outro prêmio.

Os dois filmes se baseiam em romances lançados exatamente no mesmo ano, 1951.

O romance From Here to Eternity, de James Jones, era um catatau de mais de 800 páginas. Dele dizia-se que era longo demais e “adulto” demais para ser filmado. A prosa de James Jones é dura, crua, cheia de palavrões e situações chocantes para os costumes caretas daqueles anos 50. O livro foi chamado muitas vezes de From Here to Obscenity.

Uma personagem importante do livro é uma prostituta, que trabalha num daqueles nightclubs voltados basicamente para soldados. No filme, a personagem de Alma/Lorene, interpretada por Donna Reed, virou uma quase virgem vestal – uma recepcionista de nightclub.

O nightclub de A Um Passo da Eternidade é muito parecido com o Bungalow de The Revolt Of Mamie Stover. O personagem interpretado por Donna Reed acaba se parecendo muito com Mamie Stover.

No romance The Revolt Of Mamie Stover, do escritor William Bradford Huie (1910–1986), assim como no de James Jones, não há subterfúgios, hipocrisia: Mamie Stover é uma puta. Com todas as letras.

Os realizadores queriam uma coisa, tiveram que fazer outra

Um item na página de Trivia do IMDb e o texto ferino de Pauline Kael sobre o filme dariam montes de argumentos para um estudo de caso sobre as relações entre os estúdios de Hollywood e o Código Hays. Mostram a imensa distância entre o filme que se pretendia fazer e o filme que as normas da autocensura dos estúdios permitiram que fosse feito.

O IMDb relaciona cinco pontos em que houve uma grande mudança entre a sinopse da trama que chegou a ser divulgada pela 20th Century Fox, antes que a produção começasse, e o resultado final exibido nos cinemas. O primeiro deles é a sequência prevista para a abertura, que acabou não aparecendo na montagem final – a de Mamie fazendo o trottoir e atraindo um cliente.

Previa-se que haveria uma sequência em que Annalee, a namorada toda certinha de Jim, advertia Mamie de que ela não deveria voltar a se aproximar dele. Isso também ficou de fora.

O terceiro ponto que ficou fora: Mamie consegue comprar uma bela casa na ilha, enquanto Jim está fora, no front de batalha.

O quarto: enquanto está fora, na guerra, Jim recebe cartas tanto de Annalie quanto de Mamie. As cartas de Annalee são poéticas, amorosas, enquanto as de Mamie falam de dinheiro, da administração da crescente fortuna dela.

O quinto e último item é sobre o final do filme – e, portanto, é um total spoiler. Vou relatar o que diz o IMDb – como o estúdio planejava terminar a história e como foi levado a concluir a trama. Mas fica mais do que avisado: quem tiver interesse em ver o filme (e ele está disponível de graça no Cine Antiqua do YouTube, com boa imagem, legendado, direitinho) não deveria, de forma alguma, ler a partir daqui.

Atenção: spoiler. Revela-se o final do filme

Como já foi dito, antes de ir para o front, Jim propõe a Mamie que eles se casem quando ele voltar. Pede, no entanto, que ela saia do Bungalow, abandone aquela vida.

E aí acontece o que define de vez o caráter de Mamie Stover.

Ela vai ao Bungalow com a intenção de pegar suas coisas e sair de lá. Já tem dinheiro suficiente para viver sem precisar daquele emprego. Mas aí Bertha, a patroa, leva um lero com ela. Promete aumentar, e muito, sua percentagem nos ganhos com os fregueses que ela atende. Bertha não quer perdê-la de jeito algum – Mamie é o maior sucesso da casa.

Entre cascar fora e esperar na boa pelo futuro marido e ficar e botar a mão em uma boa bufunfa, Mamie escolhe a bufunfa.

E então, no final do filme, Jim, durante um período de licença, viaja até Honolulu e chega sem ser anunciado ao Bungalow. A conversa entre os dois é dura – não tem jeito, o trato está desfeito, o caso entre os dois acabou.

O que os realizadores pretendiam fazer era assim: depois que Jim vai embora, Mamie caminha por um corredor do nightclub, limpa as lágrimas do rosto, se recompõe, e entra em uma outra saleta para encontros a dois repetindo o seu bordão rimado: “You waitin’ for Mamie, Honey?” Esperando por mim, meu bem?

No filme que chegou aos cinemas não há essa tomada que mostra que ela é capaz de retomar as atividades um segundo depois de ser dispensada pelo homem que ela afinal amava. Vemos que ela caminha pelo nightclub limpando as lágrimas – aí corta, e vem a sequência final. Mamie desembarca no porto de San Francisco e é recebida pela mesma dupla de policiais que a havia expulsado da cidade. Ela informa aos policiais (e aos espectadores) que está indo direto pegar um ônibus rumo a Leesburg, Mississipi. Vai voltar para casa – e pobre de marré de cy, porque doou toda a fortuna que havia amealhado.

Segundo o Código Hays, protagonista de história não pode ser puta. E não só: pode até ser dinheirista, arrivista, caçadora de fortuna, ambiciosa – mas também não pode exagerar. Pelo bem da família e dos bons costumes, tem que voltar pra sua cidadezinha – e pobre.

“O diretor parece doido para ir para casa jantar”

Aqui vai o texto de Pauline Kael. O filme deixou a dama muito brava.

“O romance de William Bradford Huie The Revolto f Mamie Stover tem a ver com uma mulher que, depois de ser tocada para fora de San Francisco, ia para Honolulu para fazer do sexo uma linha de montagem. Mas os executivos do estúdio, que nos anos 50 ainda tentavam cumprir as disposições do Código de Produção, às vezes criavam histórias bizarras. A Mamie do filme (Jane Russell) é uma moça pobre que quer ganhar um monte de dinheiro para impressionar o pessoal lá no Mississipi. Quando chega às ilhas, ela decide que vai se juntar a uma amiga em uma espelunca onde se paga para dançar. O lugar é um pouco barulhento, mas nada de desagradável acontece com as danceuses. Mesmo assim, elas são mal vistas por todo mundo. Mamie, no entanto, consegue cativar um escritor bem de vida (Richard Egam), que tem uma bela casa em uma colina de Oahu, e ela também consegue juntar um monte de dinheiro por suas comissões nas danças. Quando Pearl Harbor é atacada, o escritor vai embora para a guerra, e Mamie promete que não vai mais dançar, e vai esperar por ele impassivelmente. No entanto, a atração pelo dinheiro é demais para ela, e logo depois que ele vai embora ela está de novo dançando no lugar. Quando retorna, ele renuncia a ela, e ela compreende que o dinheiro não é tudo na vida e, como nunca vai poder morar com ele no alto da colina, ela segue seu caminho de volta para o Mississipi. Esta sinopse foi fornecida para o caso de você não conseguir chegar até o fim do filme – é possível que você tenha que interromper para se submeter a uma delicada cirurgia cardíaca. Egan tem uma atuação que seria memoravelmente ruim se a gente conseguisse se lembrar dela. Com Joan Leslie, Agnes Moorehead e Michael Pate. O diretor, Raoul Walsh, parece perplexo e doido para ir para casa jantar.”

Estava deliciosamente brava a dona Kael…

Menos irritado, Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 e foi bem sucinto: “Maravilhosa Jane, em cores gloriosas, é ‘cantora de saloon’ em Honolulu em 1941. Trama fraca; Jane canta “Keep Your Eyes On the Hands”. CinemaScope.”

Sim, tem isso. Já mais para o fim do filme, enquanto Jim está lutando contra os japoneses na guerra e Mamie está definitivamente estabelecida como a principal atração do Bungalow, há uma sequência em que ela canta essa canção, “Keep Your Eyes On the Hands”, de autoria de uns tais Tony Todaro e Mary Johnston, com uma letra maliciosa que faz a alegria da soldadesca que lota o lugar. Atrás dela no palco há um coro de garotas de hula-hula, aquelas dançarinas típicas.

A voz é da própria Jane Russell. Sabia cantar também, aquele mulherão. Já havia provado isso em Os Homens Preferem as Louras (1953), em que ela cantava e dançava, pernas maravilhosas de fora, ao lado de Marilyn Monroe. Neste The Revolto f Mamie Stover Já haviam inventado uma situação para ela aparecer sem a blusa, com os Jane Russell peaks refulgindo, e criado também uma sequência em que ia à praia para que a víssemos de maiô. Por que não também um número musical?

Anotação em março de 2022

A Descarada/The Revolt of Mamie Stover

De Raoul Walsh, EUA, 1956.

Com Jane Russell (Mamie Stover),

Richard Egan (Jim Blair)

e Joan Leslie (Annalea, a namorada de Jim), Agnes Moorehead (Bertha Parchman, a dona do saloon), Jorja Curtright (Jackie, a amiga de Mamie), Michael Pate (Harry Adkins, o braço direito de Bertha), Richard Coogan (capitão Eldon Sumlac), Alan Reed (Gorecki, o capitão do navio cargueiro), Eddie Firestone (Tarzan, o marinheiro freguês), Jean Willes (Gladys), Leon Lontoc (Aki, o faz-tudo de Jim), Kathy Marlowe (Zelda), Margia Dean (Peaches), Jack Mather (o homem do bar), John Halloran (Henry), Boyd “Red” Morgan (Hackett), Naidi Lani (dançarina de hula-hula), Anita Dano (dançarina de hula-hula), Dorothy Gordon, Irene Bolton, Merry Townsend, Claire James, Sally Todd, Margarita Camacho (moças do nightclub), Richard Collier (fotógrafo), Max Reed (policial havaiano)

Roteiro Sydney Boehm

Baseado no romance de William Bradford Huie

Fotografia Leo Tover

Música Hugo Friedhofer

Diretor musical Lionel Newman

Montagem Louis Loeffler

Direção de arte Lyle Wheeler, Mark-Lee Kirk

Figurinos Travilla

No YouTube, Cine Antiqua. Produção Buddy Adler, 20th Century Fox

Cor, 92 min (1h32)

**1/2

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