The Long Hot Summer, no Brasil O Mercador de Almas, de 1958, é um absoluto espanto. O diretor é o ótimo Martin Ritt. O elenco é espetacular: Paul Newman, Joanne Woodwarsd, Anthony Franciosa, Lee Remick – linda de morrer aos 23 aninhos de idade –, Angela Lansbury. E, como se não bastasse, Orson Welles.
O roteiro se baseia em William Faulkner (1897-1962), um dos maiores escritores norte-americanos.
Fotografia e trilha sonora assinados por nomes de primeiríssimo time, respectivamente Joseph La Shelle e Alex North.
O filme concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Paul Newman ganhou lá o prêmio de melhor ator.
Há um monte de histórias saborosas envolvendo a produção do filme.
E, no entanto, me pareceu uma absoluta porcaria. Uma bobagem danada, um desperdício de talentos.
O problema todo é da história, que simplesmente não se sustenta, não tem sentido, não tem lógica. Não creio que a culpa seja de William Faulkner. Não, não é: é dos roteiristas Irving Ravetch e Harriet Frank Jr., que se basearam em seis diferentes histórias do grande autor – cinco contos e uma novela – para criar uma nova para o filme.
O protagonista vai parar por acaso na cidade em que reina um ricaço
O personagem central, Ben Quick – o papel de Paul Newman, belo como o deus Apolo –, tem fama de incendiário, de sujeito que toca fogo em celeiros. É chamado várias vezes de “barn burner” – e, como diz um juiz que ouve a acusação de um fazendeiro, na primeira sequência do filme, um incendiário de celeiros é o pior tipo de criminoso que pode haver naquele lugar, uma área rural do Mississipi, Estado do Sul atrasado, retrógado, basicamente agrícola.
O fazendeiro diz que, devido a uma briga por causa de porcos, Ben Quick botou fogo no seu celeiro. Ben Quick ouve a acusação em silêncio, sem tentar se defender – e com um risinho de desprezo na cara. O juiz diz para ele sumir dali e jamais voltar a pôr os pés naquele condado.
Ben Quick então viaja numa embarcação pelo Rio Mississipi, desce mais adiante, caminha até uma estrada e, por uma sorte fantástica, pega carona num belo Lincoln conversível onde viajavam as belas Joanne Woodward e Lee Remick.
Joanne Woodward faz o papel de Clara Varner e Lee Remick, o de Eula Varner. São cunhadas – Eula é casada com Jody Varner, irmão de Clara. (Ele é interpretado por Tony Franciosa.)
O pai de Clara e de Jody se chama Will Varner – o papel de Orson Welles –, o sujeito mais rico da cidadezinha ali do lugar, dono do armazém, do posto de gasolina, de tudo o que há.
No dia em que Ben Quick chega à cidadezinha, Will Varner está fora: tinha sido hospitalizado, estava para chegar de volta no dia seguinte.
Ben vai até a propriedade dos Varner, tem uma conversa com Jody e obtém dele um contrato verbal de trabalho como meeiro em uma das fazendas da família.
Uma galeria daqueles tipos que a gente cansa de ver nos filmes sobre o Sul
É a mais clássica família de sulistas ricos, como são apresentadas as clássicas famílias de sulistas ricos em dezenas e dezenas de livros e filmes americanos. O autor das histórias em que os roteiristas se basearam é William Faulkner, mas parece Tennessee Williams (1911-1983):
* Will Varner é gordão, despótico, mandão, bruto, brutal. Trata o filho homem com imenso desprezo e da filha mulher só quer saber quando ela vai arranjar um marido para começar a parir logo os netos dele.
* Jody Varner é fraco, tíbio, vacilante. Diante do pai, não pára de suar de puro medo.
* Eula Varner é uma gata em teto de zinco quente em cio permanente: passa os dias dando gritinhos como se fosse uma criança e correndo atrás do marido para levá-lo para a cama.
* E Clara Varner é a única pessoa simpática, agradável, interessante da família. Gosta de ler, é a professora da escola da cidade, é inteligente, reconhece todos os defeitos do pai – e é a única da família que ousa enfrentá-lo.
E temos ainda:
* A amante do ricaço do local. Chama-se Minnie Littlejohn, e é interpretada por uma Angela Lansbury que faz todas as caras e bocas de experiente profissional de bordel. Minnie, dona do único hotel da cidadezinha, é tão gata em teto de zinco quente no cio quanto a jovem Eula, com a diferença de que quer também o que Eula já tem: um anel na mão esquerda.
* O gay enrustido. Alan Stewart (Richard Anderson) é o melhor partido que uma moça da região poderia almejar. É rico, fino e chique, de família tradicionalíssima. Ele e Clara são muito amigos – e Clara gostaria muito que fossem mais que bons amigos. Mas Alan não gosta desse negócio de mulher.
Essa galeria de tipos tão absolutamente comuns nas histórias passadas no Sul Profundo e rural com certeza foi uma das razões para que eu não gostasse nada do filme. Mas tem mais, tem muito mais.
O ricaço toma-se de amores pelo forasteiro com fama de queimar celeiros
No dia seguinte ao da chegada de Ben Quick à cidadezinha onde tudo pertence a Will Varner, o próprio ricaço chega de volta após uma temporada no hospital. Faz uma rápida visita à amante, promete voltar mais tarde, e chega em casa querendo saber como foram os negócios durante a sua ausência.
Quando Jody conta para o pai que botou como meeiro para cuidar daquela tal fazenda um sujeito chamado Ben Quick, o velho Will se enfurece: “Barn burner!”, berra. Jody não conhecia a fama do recém-chegado, mas o pai, sim.
E então o que faz o ricaço mandão, autoritário, o déspota do lugar? Pela lógica, ele deveria enxotar das suas terras o sujeito que tem fama de queimar celeiros. Mas não é o que acontece. O sujeito autoritário, mandão, déspota toma-se de amores pelo recém-chegado. Oferece a ele um emprego menos duro do que lavrar a terra sozinho – o posto de vendedor de seu armazém, que Ben Quick passa a dividir com o intruso. Depois, Will Varner oferece ao barn burner um quarto em sua própria mansão, e mais ainda: a mão da filha solteira em casamento!
Pode?
Parece que, para muita gente, pode – o filme foi incensado na época do lançamento.
Para mim, não tem lógica alguma.
É uma bobagem atroz.
Além da falta de sentido dessa trama mal ajambrada, há um problema, algo que me incomodou muito enquanto via o filme. A intenção óbvia era fazer um filme com uma atmosfera sensual – Sul, verão, calor, suor, tesão. Mas era 1958, o velho Código Hays com as severas leis de autocensura dos estúdios ainda estava valendo, e então a atmosfera sensual vem com todos os cuidados e disfarces possíveis.
Fica uma coisa um tanto adolescente, um tanto sem graça, troncha, desajeitada.
Fica tudo meio bobo.
No meio dessa história implausível, ilógica – e boba.
Paul Newman e Joanne Woodward se casaram logo depois das filmagens
Para mim, a melhor coisa de The Long, Hot Summer não está no filme: são as histórias envolvendo a produção. Muitas delas são contadas num making of de 25 minutos, Backstory – The Long, Hot Summer, feito em 2000, e que está no DVD lançado pela Versátil e depois incluído na Coleção Folha Grandes Astros do Cinema.
No pequeno documentário, há depoimentos de Paul Newman, Joanne Woodward, Angela Lansbury, Richard Anderson e Elena Oumano, a biógrafa de Newman. É uma absoluta delícia ver os depoimentos do casal Paul-Joanne, os dois já velhinhos, cabelos branquinhos, sentados lado a lado, lembrando-se de histórias do primeiro dos vários filmes que fizeram juntos.
Foi depois que terminaram as filmagens de The Long, Hot Summer, e antes da estréia mundial do filme, que os dois se casaram, em 29 de janeiro de 1958. Viveriam juntos 50 anos, até o morte dele, em setembro de 2008 – foi provavelmente o mais duradouro e menos tumultuado casamento de atores de Hollywood.
Já haviam trabalhado juntos antes, mas no teatro: em 1952, fizeram parte do elenco de Picnic na Broadway, sob a direção de Joshua Logan – o mesmo que transformaria a peça de William Inge no filme de 1955 com William Holden e Kim Novak que provocou suspiros de gerações inteiras (no Brasil, Picnic se chamou Férias de Amor).
Na época em que os dois contracenaram na Broadway, Paul Newman era casado.
Quando se reencontraram na Louisiana para as filmagens de The Long, Hot Summer, o primeiro casamento dele estava acabando. O divórcio sairia em 28 de janeiro de 1958 – e o casamento foi no dia seguinte.
No ano em que se casaram e foi lançado o primeiro filme com os dois, Paul Newman estava com 33 anos. Joanne, que nunca havia se casado antes, tinha 28.
Nem ele nem ela foram as primeiras escolhas dos produtores e do diretor Martin Ritt. Para o papel de Ben Quick, pensaram em Marlon Brando e Robert Mitchum. Ritt escolheu Newman depois de vê-lo no papel do boxeador Rocky Graziano em Marcado pela Sarjeta/Somebody Up There Likes Me (1956).
O papel de Clara Varner estava reservado para Eva Marie Saint, que havia ganho o Oscar de atriz coadjuvante por Sindicato de Ladrões/On the Waterfront (1954). Mas aconteceu – e quem conta isso no making of é Joanne Woodward, com um sorrisinho maroto – de Eva Marie Saint ficar grávida.
Há histórias de amor que de fato parecem ter sido escritas nas estrelas.
Me ocorreu que foi uma fantástica coincidência o fato de Paul Newman e Eva Marie Saint terem enfim se encontrado em Exodus, que Otto Preminger lançou em 1960.
O filme foi o primeiro dos vários de Newman com Joanne e também com Ritt
The Long, Hot Summer não marcou apenas o início do romance entre Paul Newman e Joanne Woodward: foi também o começo de uma longa e extensa colaboração artística entre os dois e de uma longa e extensa colaboração artística do casal com o diretor Martin Ritt.
Ritt já havia dirigido Joanne em seu filme anterior, A Mulher do Próximo/No Down Payment, de 1957.
Em 1959, Ritt dirigiu a atriz em A Fúria do Destino/The Sound and the Fury. Em 1961 veio Paris Vive à Noite/Paris Blues, com Newman e Joanne.
Ritt ainda dirigiria Paul Newman em As Aventuras de um Jovem (1962), O Indomado/Hud (1963), Quatro Confissões/The Outrage (1964) e Hombre (1967).
E Newman trabalhou com a mulher, além de neste The Long, Hot Summer e no já citado Paris Vive à Noite, em mais oito filmes: A Delícia de um Dilema/Rally ‘Round the Flag, Boys! (1958), Paixões Desenfreadas/From the Terrace (1960), Amor Daquele Jeito/A New Kind of Love (1963), 500 Milhas/Winning (1969), A Sala dos Espelhos/WUSA (1970), A Piscina Mortal/The Drowning Pool (1975), Meu Pai, Eterno Amigo/Harry & Son (1984), Cenas de uma Família/Mr. & Mrs. Bridge (1990).
Paul Newman dirigiu seis filmes em sua vida. Em quatro deles Joanne Woodward trabalhou: Rachel, Rachel (1968), O Preço da Solidão/ The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds (1972), o citado acima Meu pai, Eterno Amigo, e À Margem da Vida/The Glass Managerie (1987).
Nas filmagens, uma luta sem trégua entre o diretor Ritt e Orson Welles
Martin Ritt (1914-1990) tinha sido colocado na lista negra do macarthismo, como simpatizante do comunismo, e proibido de trabalhar durante anos. Voltou a trabalhar quando os estúdios começaram a deixar de lado a paranóia da caça às bruxas. The Long, Hot Summer foi seu terceiro longa-metragem.
Não deve ter sido nada fácil a convivência entre Martin Ritt, com seu currículo ainda tão pequeno, e o genial e genioso Orson Welles, do alto de sua imensa fama, sua empáfia por ter sido o autor do filme tido como o melhor de todos os tempos, Cidadão Kane (1941), seu ego imenso, maior até mesmo que seu corpanzil gigantesco.
O making off fala bastante do que chama de “a luta entre o diretor que saía da lista negra e a selvagem força da natureza chamada Orson Welles”.
Uma das causas de irritação de Welles era o fato de que três dos atores com quem contracenava – Paul Newman, Joanne Woodward e Anthony Franciosa – tinham passado pelo famosérrimo Actors Studio criado entre outros por Elia Kazan, e eram portanto seguidores do método de interpretação do teórico polonês Konstantin Stanislavski.
Joanne Woodward diz, sorridente, no making of: “Orson sofreu muito. Deve ter sido terrível para ele ser confrontado por aqueles jovens que se achavam os bambambans por serem de Nova York e terem passado pelo Actors Studio. Era um problema”.
Após as filmagens, na hora fundamental e definitiva da montagem, Martin Ritt deparou-se com um problema seriíssimo: era extremamente difícil compreender o que Orson Welles dizia, forçando o sotaque sulista.
Aliás, esse é outro ponto que me desagradou no filme: a forçação de barra de todos os atores para falar com sotaque sulista. Coisa chata.
Pauline Kael diz que o filme é “altamente comercial e grandemente divertido”
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme: “Boa mistura de contos de William Faulkner resulta em saboroso, inquietante drama de sulista dominador (Welles) e um aventureiro (Newman) que decide ficar por ali e casar com a filha Woodward. Excelente trilha sonora de Alex North, final fraco para filme forte; o primeiro filme dos Newmans juntos. Refeito para a TV.”
Sim: em 1985, a história foi recontada numa produção para a TV, dirigida por Stuart Cooper com Don Johnson e Judith Ivey nos papéis que haviam sido de Newman e Joanne, que Leonard Maltin classifica como “surpreendentemente boa refilmagem”.
Pauline Kael diz que o filme é uma mistura das histórias “Barn Burning” e “Spotted Horses”, e que se mostrou “altamente comercial e grandemente divertido”. “Passa-se numa cidade do Mississipi dirigida por Will Varner (Orson Welles); Paul Newman faz Ben Quick, um garanhão errante que chega à cidade e faz um acordo com Varner para casar com sua filha professora da escola primária virgem e cabeça dura (Joanne Woodward). Ben Quick é um daqueles tipos arrogantes-por-fora e vulneráveis-por-dentro que Newman podia fazer melhor que qualquer outro ator, e ele e Woodward têm algumas cenas elétricas, fortes.”
A prima donna da crítica americana acrescenta a informação de que, em 1945, o próprio Faulkner havia trabalhado para transformar o conto “Barn Burning” em um roteiro cinematográfico, mas acabou que não saiu nada.
O Guide des Films de Jean Tulard diz o seguinte de Les Feux de l’été:
“A saga de uma família do Sul dos Estados Unidos dominada por um patriarca que se afeiçoa por um vagabundo. Filme bastante vazio, traindo o espírito e a escrita de Faulkner. É espantoso ver tantos grandes atores se iludindo nesse empreendimento.”
Deo gratias! Não estou louco! Não sou o único que acha o filme uma porcaria. Estou na excelente companhia do mestre Jean Tulard.
Na França, Les Feux de l’été, os fogos do verão. Em Portugal, Paixões que Escaldam. Na Itália, La Lunga Estate Calda – tradução exata do original.
Se alguém algum dia me explicar o que os exibidores brasileiros encontraram no filme para chamá-lo de O Mercador de Almas, eu pago várias rodadas de cerveja. Mesmo se for num curto inverno frio.
Anotação em junho de 2017
O Mercador de Almas/The Long, Hot Summer
De Martin Ritt, EUA, 1958
Com Paul Newman (Ben Quick), Joanne Woodward (Clara Varner), Anthony Franciosa (Jody Varner), Orson Welles (Will Varner), Lee Remick (Eula Varner), Angela Lansbury (Minnie Littlejohn), Richard Anderson (Alan Stewart), Sarah Marshall (Agnes Stewart), Mabel Albertson (Elizabeth Stewart), J. Pat O’Malley (Ratliff), William Walker (Lucius)
Roteiro Irving Ravetch e Harriet Frank Jr.
Baseado em contos e novela de William Faulkner
Fotografia Joseph La Shelle
Música Alex North
Montagem Louis R. Loeffler
Produção Jerry Wald, 20th Century Fox. DVD Versátil, Coleção Folha.
Cor, 115 min (1h55)
*
Título na França: Les Feux de l’été. Em Portugal: Paixões que Escaldam.
Poxa, só uma estrelinha? Preciso rever, pois lembro de ter gostado muito. Será que o elenco me alterou a percepção?
“I don’t like to discuss my marriage, but I will tell you something which may sound corny but which happens to be true. I have steak at home. Why should I go out for hamburger?”
(Paul Newman)
Já me lembro de ter ouvido que o Faulkner e Hollywood nunca se entenderam. Eu lembro que vi tem anos A fúria do destino, com Yul Brynner e acho que era a Joanne também, e que diz ser baseado em O som e a fúria – mas tem muito pouco do livro. Sei porque o li.
Deve ser verdade então: Faulkner não dava sorte com o cinema…
Vi esse filme há poucos anos, e agora não me recordo se gostei. Provavelmente não, pois se tivesse gostado teria ficado com a boa lembrança.
O personagem de Newman é um entojo, e o final fraco, nisso concordo com Maltin. Orson Welles está canastrão, altamente irritante.
Você falou tudo sobre o disfarce nas cenas que eram pra ser sensuais: a que ocorre na varanda, entre Paul e Joanne (ilustrada pela primeira foto, lembro bem, hehe) mostra claramente isso: era pra haver tensão sexual entre os dois, mas ficou uma coisa sem sentido. Nem me dei conta que foi por causa do Código.
Uma coisa que o filme conseguiu passar, é a sensação de calor. Parece que a gente derrete junto; e olha que estou acostumada — vivo num hot summer praticamente o ano todo.
Sobre o documentário com os dois já velhinhos, se for o mesmo que vi uma vez, tem uma história bem legal de como foi a compra da cama que acabou ficando com eles por toda a vida.
“Há histórias de amor que de fato parecem ter sido escritas nas estrelas.” Essa sua frase acho que pode ser complementada por aquela outra, de uma música que eu adoro: “E não há lógica que faça desandar o que o acaso decidir”. E olha que eu nem acredito em acasos, mas acredito em licença poética.
P.S.: Obrigada pelas fotos com o deus Apolo sem camisa e de regata! LoL