A Época da Inocência / The Age of Innocence

Nota: ★★★★

A Época da Inocência, o Martin Scorsese safra 1993, é um daqueles raros filmes que merecem o adjetivo “perfeito”. Daquele tipo para o qual nenhum superlativo é demais. Daquela estirpe especialíssima de filmes para que a cotação máxima de 4 estrelas (ou de 5, ou nota 10) parece pequena.

“Perfeição da mis-en-scène”, diz o Guide des Films de Jean Tulard. “Suntuosa adaptação”, diz Leonard Maltin. “Filmado com elegância”, diz Roger Ebert. “Lindas atuações, direção impecável”, segundo o ótimo site All Movie. “Um exercício triunfante de contenção estilística e temática”, segundo o consenso das críticas feito pelo site Rotten Tomatoes. “Um drama requintado e absorvente que é o equivalente cinematográfico de uma boa leitura”, define Matt Brunson, no site The Film Frenzy.

Todas essas são boas avaliações, eu acho. Gostei especialmente dessa última, à qual cheguei via Rotten Tomatoes. Gostei muito também desta aqui:

“Um filme soberbo, cinema da maior qualidade, um banquete visual deslumbrante, à la Visconti, para mostrar uma sociedade que oprimia e condenava a verdade e os sentimentos. Um filme para ver e rever muitas vezes. O maior de todos desse diretor excepcional.”

Isso aí foi tudo o que anotei sobre o filme logo após vê-lo pela primeira vez, no Cine Bristol do Center 3 de Paulista com Augusta, com Marynha, em fevereiro de 1994, época do lançamento aqui. Eu devia estar trabalhando demais nesse tempo aí, porque fazia raríssimas anotações além da ficha técnica básica dos filmes que via; esse parágrafo aí foi um dos raros comentários que cheguei a fazer naquele ano – em que, por uma dessas coincidências de que é feita a vida, revimos O Leopardo de Visconti, que passou no CineSesc em cópia restaurada.

Ao rever agora para escrever sobre ele no + de 50 Anos de Filmes, meu encanto foi igual ao que tive na época do lançamento, quase 30 anos atrás – se não maior.

Quando terminamos de rever, tive uma emoção, uma sensação forte: me lembrei exatamente do que o filme deixou na minha cabeça quase 30 anos atrás: a noção clara de que – ao contrário do que poderia parecer à primeira vista (ou à segunda, ou mesmo à terceira) –, A Época da Inocência tem tudo a ver com os filmes sobre gângsteres e mafiosos desse diretor gigante que é Martin Scorsese.

A Época da Inocência não tem uma cena de violência visível. Não tem uma luta física, um ato violento – sequer um tapa com luva de pelica. Mas mostra uma violência incrível, absurda, tão grande ou maior do que a de Caminhos Perigosos (1973), Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990), Cabo do Medo (1991).

Não física, é claro.

Mas a violência com que aquela sociedade tão elegante, tão rica, tão fina, tão chique oprimia as pessoas, e impedia aqueles pobres personagens de terem direito à felicidade não fica nada aquém daquela praticada por gângsteres, mafiosos, que matam, depois botam o cadáver em um bloco de concreto e jogam no Hudson ou no East River.

No teatro, são apresentados os personagens

O filme abre num belíssimo teatro clássico, em que é apresentada a ópera Fausto, de Charles Gounod – e onde está a nata da nata da alta sociedade da Nova York dos anos 1870. O onde e o quando são informados em um letreiro que aparece bem no início da narrativa, após créditos iniciais de um belíssimo visual, em que vemos um fino lenço de renda formando flores – “New York, the 1870’s”.

O espectador não é obrigado a saber disso, mas Edith Wharton, a autora do romance que Martin Scorsese adaptou para o cinema, em seu roteiro assinado ao lado de Jay Cocks, tornou-se adolescente naquela Nova York dos anos 1870 – e exatamente naquele meio que ela descreve, a upper class, os muito, muito ricos daquela ilha que viria a ser o umbigo do capitalismo mundial daí a algumas décadas.

Será fundamental falar de Edith Wharton neste texto, é claro.

Enquanto vai rolando a ópera, o roteiro brilhante de Scorsese e Cocks nos faz conhecer praticamente todos os personagens da história que veremos a seguir, do trio central até diversos dos coadjuvantes.

Um coadjuvante é Larry Lefferts – o papel de Richard E. Grant, aquele ator que tem o biotipo perfeito para fazer personagens chatos, desagradáveis. Larry Lefferts é um daqueles sujeitos cuja missão no mundo é fazer fofoca e falar mal dos outros – e ele está comentando que aquela mulher lá, naquele camarote, teve a ousadia de aparecer em público, ah, mas que audácia a dela!

A mulher é a condessa Olenska – o papel de uma Michelle Pfeiffer bela de doer, no auge da fama, aos 35 anos de idade. Havia sido Ellen, e pertencia a uma das melhores famílias da classe alta de Manhattan, neta da lendária senhora Mingott (Miriam Margolyes). Mas havia abandonado a família e Nova York para se casar com um conde polonês, que aliás recebeu junto com a bela mulher um igualmente belo dote. O casamento soçobrara em meio a boatos nada abonadores, e ela havia recentemente retornado, com uma reputação bastante esgarçada.

Será que ela teria audácia de comparecer, naquela mesma noite, ao baile anual na mansão dos Beauforts?

Newland Archer está no mesmo camarote que esse fofoqueiro desagradável. Depois de ouvir um pouco do veneno que sai da boca do sujeito, ele se levanta, dá a volta no teatro pelos corredores externos e vai ao camarote onde está a condessa Olenska.

Newland Archer é o papel de Daniel Day Lewis, esse sujeito que é assim uma edição mais recente dos atores ingleses da cepa de Laurence Olivier, Ralph Richardson, John Gielgud.

No camarote, junto com a condessa, estão a jovem prima dela, May Welland, e sua mãe. Mrs. Welland é o papel de Geraldine Chaplin, essa atriz que, caso o cinema fosse uma monarquia, seria a princesa de sangue mais azul de todas. E May é interpretada por aquela coisa tão linda quanto talentosa que é Winona Ryder, então com 22 aninhos e o céu infinito diante de si na carreira.

May e Newland, jovens vindos de duas das melhores famílias de Nova York (expressões desse tipo, “melhores famílias de Nova York”, são usadas com frequência no filme), estão namorando. Na verdade, estão prestes a anunciar o noivado.

À chegada de Newland, May abre um sorriso de deixar encantado um frade de pedra congelada – e ela pergunta se o rapaz se lembra da sua prima. É claro que ele se lembra de Ellen, e Ellen se lembra dele – afinal, todos eles, sendo das melhores famílias de Nova York, haviam brincado juntos quando crianças.

A narradora é uma das belas coisas do filme

Scorsese e Jay Cocks tiveram uma sacada brilhante em seu roteiro: eles pontuaram toda a narrativa do filme com trechos do próprio romance de Edith Wharton, lidos pela voz em off de uma narradora. E a narradora de The Age of Innocence, o romance lançado em 1920, é aquele tipo de narrador clássico, que sabe tudo, que descreve em detalhes todos os ambientes, todos os personagens, que relata os diálogos, claro, e sabe com precisão tudo o que se passa no íntimo de cada um.

Os textos que a narradora diz com a voz em off, enquanto vemos as sequências suntuosamente encenadas, mis-en-scène por Scorsese, são uma absoluta maravilha. São de uma beleza extraordinária, de fazer babar qualquer pessoa que admire os belos textos – e, diabo, se há uma coisa que eu sei fazer na vida é admirar belos textos.

Disso eu não me lembrava: da presença ao longo de toda a narrativa dessa voz em off da narradora, da beleza, da elegância da voz, e de como são belas as frases que ela diz. Me deu uma vontade danada de comprar um exemplar do livro. (Há várias edições em português, inclusive uma relativamente recente, da coleção de clássicos que a Companhia das Letras lançou em acordo com a Penguin Books britânica.)

Não me lembrava da importância da narradora no filme – e, muito pior que isso, não reconheci a voz. Sim, claro, Mary e eu percebemos a beleza da voz, coisa de atriz treinada, de competência e experiência – mas, diferentemente do que às vezes faço, não parei de ver o filme para checar no IMDb quem era a pessoa.

Pois a voz é de Joanne Woodward, aquela atriz extraordinária, maravilhosa.

Creio que, mesmo que não a vejamos na tela, Joanne Woodward é a quarta atriz mais importante de A Época da Inocência, depois de Daniel Day-Lewis, Michelle Pfeiffer e Winona Ryder.

Da ópera, vão todos para o baile dos Beaufort

Newland Archer – o espectador logo percebe – é um homem de bem. Uma pessoa bem intencionada, um bom caráter.

Percebe imediatamente que a aparição de Ellen Olenska na ópera será o principal assunto no baile na mansão dos Beaufort – e, para tentar ao menos diminuir a fofocalhada, resolve antecipar o anúncio do seu noivado com May para aquela mesma noite.

A fantástica câmara do diretor de fotografia Michael Ballhaus faz uma tomada geral do teatro lotado, e em seguida uma tomada em que vemos, em plano americano, em um dos camarotes, uma mulher solitária. É Regina Beaufort (o papel de Mary Beth Hurt), a mulher de Julius Beaufort (Stuart Wilson), um milionário mais milionário que os demais daquele mundo de milionários – e a voz da narradora nos conta:

“Aconteceu invariavelmente, como tudo naquela época. Como sempre, a sra. Julius Beaufort aparecia sem o marido, pouco antes da Ária das Jóias. E, também como sempre, levantava-se no fim do terceiro ato, e desaparecia. Nova York então sabia que, meia hora depois, teria início o baile anual dos Beaufort. As carruagens esperavam junto à calçada ao longo de toda a apresentação. Era amplamente sabido em Nova York, embora nunca admitido, que os americanos querem sair da diversão ainda mais rapidamente do que querem entrar nela.”

E a narradora continua:

“A casa dos Beaufort era uma das poucas em Nova York que tinha um salão de baile. O salão, que ficava trancado e escuro 364 dias por ano, compensava o que quer que havia de lamentável no passado dos Beaufort. A família de Regina Beaufort era da Carolina do Sul, mas seu marido, Julius, que se passava por inglês, era famoso por seus hábitos desregrados, sua língua ferina e seus antecedentes misteriosos. O casamento lhe garantiu posição social, mas não necessariamente respeito.”

A essa altura do texto maravilhoso falado em off por Joanne Woodward, vemos uma sequência do baile. É uma sequência de beleza visual soberba, absurda, acachapante.

Uma ourivesaria fantástica na direção de arte

A magnífica sequência do baile na mansão dos Beaufort, que acontece quando o filme está chegando aos 10 de seus 139 minutos, não é longa – bem diferentemente daquela do baile de O Leopardo de Luchino Visconti, em que o sobrinho do príncipe de Salina interpretado por Alain Delon dança com a filha do novo-rico de origem muito modesta feita por Claudia Cardinale. O baile de Visconti estende-se por um longo tempo – mas é inevitável a comparação.

Cinéfilo antes de ser cineasta, Martin Charles Scorsese, descendente de sicilianos como eram sicilianos os personagens do romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896–1957), é um admirador do grande cinema italiano, em especial dos filmes do conde comunista Luchino Visconti.

A quantidade de sequências de A Época da Inocência que mostram detalhes do fausto dos muito ricos da Nova York dos anos 1870 só é proporcional à quantidade de sequências de O Leopardo que mostram detalhes do fausto dos aristocratas ou muito ricos da Sicília dos anos 1860.

A prataria. Os diversos pratos de um jantar. Os quadros nas paredes. Os objetos de decoração. É tudo de uma beleza extraordinária, o produto de uma ourivesaria caprichadíssima, cuidadíssima.

É verdade que esse capricho absoluto na reconstituição de época, essa ourivesaria na coisa da direção de arte, isso tem estado presente em muitos, muitos, muitos filmes e/ou séries. Se fosse para dar uma olhada nas vezes em que aqui nestas anotações elogiei essa excelência artesanal, haveria uma montanha de exemplos.

Mas artesanato, cuidado, capricho, ourivesaria melhor do que a deste filme aqui, ah, isso não há. Pode haver semelhante – como na obra-prima do mestre Visconti. Melhor é impossível.

Não existe nada que possa ser melhor que a perfeição.

Uma jovem rica que rejeitava os padrões da época

Newland Archer, um homem bom. May Welland, uma jovenzinha linda como o mais fahuloso dos nossos sonhos poderia imaginar. Ellen que virou a condessa Olenska, uma mulher de beleza fenomenal, de matar, com um passado complicado, para dizer o menos.

Um triângulo amoroso.

Assim na superfície, no mais visível, no mais óbvio, A Época da Inocência conta a história de um triângulo amoroso, essa coisa que talvez seja mais comum, mais numerosa do que casamento feliz.

O que muito provavelmente o romance de Edith Wharton mostra, e o filme de Martin Scorsese escancara, é o poder imenso e violento da sociedade em impor seus padrões, suas vontades, às pessoas. A capacidade de o grupo social tornar infelizes as vidas das pessoas.

Preso à jovem May pela palavra dada, pelo noivado anunciado, Newland não tem como se dedicar à paixão fulminante que sente por Ellen. Ela, por sua vez, está igualmente apaixonada pelo noivo da prima – e igualmente impedida de ficar com o homem que ama.

Aquela sociedade que oprime e condena a verdade e os sentimentos, para usar a frase que escrevi quase 30 anos atrás, e que Edith Wharton expõe e condena em seu livro, era, como já foi dito, muito bem conhecida dela. Edith Newbold Jones nasceu em 24 de janeiro de 1862, na casa dos pais, na Twenty-third Street, em Manhattan. Pai e mãe, George Frederic Jones e Lucretia Stevens Rhinelander, vinham de famílias ricas, conviviam com pessoas da mais alta sociedade e, como todas elas, costumavam fazer viagens frequentes à Europa. Entre 1866 e 1872, a família Jones visitou França, Itália, Alemanha e Espanha, e a jovem Edith aprendeu francês, italiano e alemão. Seu tempo nos Estados Unidos era dividido entre a cidade de Nova York no inverno e Newport, à beira mar, no verão.

Bem ao contrário da jovem May Welland que ela criaria no oitavo de seus 15 romances, a jovem Edith rejeitava os padrões de moda e etiqueta esperados das jovens do seu meio, que considerava superficiais e opressivos, e queria ter uma boa educação. Era uma leitora voraz – embora a mãe, ao que tudo indica uma mulher extremamente conservadora, a proibisse de ler romances. Aliás, Edith não se dava bem com a mãe. (Essas informações são do longo, sólido verbete sobre a escritora na Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/Edith_Wharton )

Começou a escrever bem cedo. Tinha 15 anos quando teve o primeiro trabalho publicado, a tradução de um poema de Heinrich Karl Brugsch, pela qual recebeu US$ 50,00. Como os pais consideravam que o ofício de escritor não ficava bem para uma jovem da boa sociedade, ela usou pseudônimos durante alguns anos.

Aos 23 anos, Edith se casou com Edward Robbins Wharton, homem de família rica de Boston, 12 anos mais velho do que ela. O casamento durou 28 anos – o divórcio veio em 1913. Durante a Primeira Guerra Mundial, ela estava morando na França, e teve atuação importante no apoio ao esforço de guerra. Foi uma das criadoras dos American Hostels for Refugees, que ajudavam refugiados com abrigo, alimentos, roupas; criou também uma organização para dar apoio a refugiados belgas.

The Age of Innocence, lançado dois anos após o final da Primeira Guerra, seria premiado com o Pulitzer de Literatura – Edith Wharton foi a primeira mulher a receber o importante prêmio.

Foi amiga de um bando de gente importante, americanos e europeus, como Henry James, Sinclair Lewis, Jean Cocteau, André Gide, Theodore Roosevelt. Morreu em 1937, aos 75 anos, em Paris, e foi enterrada Cimetière des Gonards em Versalhes.

“A culpa, o desejo, a obsessão”

As vidas e os amores dos ricos e muito ricos na segunda metade do século XIX foram o tema de grandes obras literárias nas mais diversas partes do mundo, da Rússia de Liev Tolstói ao Brasil de Machado de Assis. Diversos desses romances viraram belos filmes, em especial no Reino Unido e nos Estados Unidos. A lista seria quase interminável, mas há alguns títulos que têm que ser citados, como o romance Washington Square, de Henry James, conterrâneo, contemporâneo e amigo de Edith Wharton, filmado por William Wyler em 1949 como The Heiress, no Brasil Tarde Demais, e por Agnieszka Holland em 1997, aqui A Herdeira, no original Washington Square. São de Henry James também os livros que deram origem a Os Europeus/The Europeans (1979) Um Triângulo Diferente/The Bostonians e A Taça de Ouro/The Golden Bowl (2000), todos os três de James Ivory.

James Ivory se especializou em filmar grandes obras da literatura britânica, o que justifica plenamente seu rótulo de o mais inglês dos diretores americanos. Sempre ao lado do produtor indiano Ismail Merchant e da escritora e roteirista alemã Ruth Prawer Jhabvala, Ivory fez belezas como Uma Janela para o Amor/A Room With a View (1985), Maurice (1987) e Retorno a Howards End/Howards End, todos os três baseados em livros de outro contemporâneo de Edith Wharton, o inglês E.M.Forster (1879-1970).

Não é à toa, assim, que vários críticos tenham citado James Ivory ao falar deste filme aqui. A Época da Inocência – dizem muitos deles – mais parece, à primeira vista, ao menos, um livro que daria um bom filme de James Ivory. Afinal, trata de um universo mais parecido com o dos filmes de James Ivory do que com o das obras de Martin Scorsese.

O Guide des Films de Jean Tulard traz uma avaliação anormalmente grande sobre Le Temps de L’Innocence:

“À primeira vista, pode parecer um pouco espantoso que Martin Scorsese, o especialista dos filmes policiais que se passam num meio muito particular, a Little Italy da América, se aventure por um terreno que lhe é estranho, em que um James Ivory brilha especialmente. É necessário procurar os filmes de Luchino Visconti muito admirados pelo realizador ítalo-americano: Senso e Le Guépard (Sedução da Carne, O Leopardo). Ao escolher a pintura de um universo do passado, Scorsese não renunciou aos temas que lhe são caros e que permeiam sua obra. Esses temas são, segundo suas próprias palavras, ‘a culpa, o desejo, a obsessão… e a impossibilidade de satisfazer essa obsessão’. O herói de seu filme deve escolher entre May, ‘símbolo do mundo que ele conhece’, e Ellen, ‘que representa o mundo com que ele sonha’. Les Temps de l’Innocence, pela perfeição levada à encenação, a exata reconstituição de uma época com seus bailes, suas recepções, seus círculos, testemunha de um trabalho de antiquário e de cronista a serviço de uma época do passado em que movem pessoas elegantes mas terrivelmente convencionais, a quem faltam tenacidade e ideais. O inconveniente do filme é que esses personagens não nos interessam de forma alguma, com exceção da sedutora condessa Olenska, tão pouco afeita a conviver com elas, e que tem toda razão de retornar à Europa.”

O texto do Guide me parece corretíssimo – a não ser a afirmação de que os personagens não são interessantes. Considero isso um absurdo. Os personagens são interessantes, sim. Esse Newland Archer é uma figura fascinante, um sujeito absolutamente sensível, que se emociona profundamente com obras de arte – poemas, romances, ópera, música em geral, pintura –, que gostaria de ter outra vida, mas é obrigado a se conformar com aquela que não suporta. E May… Que figura essa May, que se faz de bobinha, de imatura, e no entanto saca tudo, sabe muito bem de absolutamente tudo o que está acontecendo à sua volta – sem que o marido perceba isso.

“Uma harmonia que pode ser estraçalhada por um sussurro”

Eis o que diz Matt Brunson, no site The Film Frenzy:

“Um touro indomável em uma loja de porcelana. Essa foi a imagem que muitas pessoas tiveram ao ouvir que Martin Scorsese estava para filmar o romance premiado com o Pulitzer de Edith Wharton sobre amor e mentira na Nova York dos anos 1870. Mas os verdadeiros fãs de filmes sempre souberam que Scorsese é um apaixonado por filmes de época como O Leopardo de Luchino Visconti e Barry Lyndon de Stanley Kubrick, e aqui ele canaliza aquela admiração em um drama requintado e absorvente que é o equivalente cinematográfico de uma boa leitura. E, de uma certa maneira, essa história de amor sobre um homem (Daniel Day-Lewis) enamorado por uma mulher à frente de seu tempo (Michelle Pfeiffer) enquanto corteja sua aparentemente ingênua prima (Winona Ryder) se fundamenta em um dos temas mais comuns do diretor: o do indivíduo que não é capaz de expressar satisfatoriamente seus mais profundos desejos e expectativas. Scorsese co-escreveu o roteiro com o ex-crítico de cinema Jay Cocks, usando Joanne Woodward como a voz da narradora que descreve uma sociedade conformista que ‘se equilibra tão precariamente que sua harmonia pode ser estraçalhada por um sussurro’.

Meu Deus do céu e também da Terra, que frase esta de Edith Wharton! Uma sociedade que ‘se equilibra tão precariamente que sua harmonia pode ser estraçalhada por um sussurro’.

Uau!

O autor termina seu texto com elogios ao diretor de fotografia Michael Ballhaus (pelo impressionante trabalho de câmara), ao responsável pela decoração de interiores Dante Ferretti (“interiores fantásticos”) e ao compositor Elmer Bernstein (“trilha sonora deslumbrante”) – e com as informações sobre as indicações ao Oscar.

A Época da Inocência teve cinco indicações ao Oscar: roteiro adaptado, atriz coadjuvante para Winona Ryder, direção de arte e decoração de interiores para Dante Ferretti e Robert J. Franco, trilha sonora para Elmer Bernstein e figurinos para Gabriella Pescucci. O único Oscar que o filme levou foi este último, o dos figurinos.

Concordo com todos os elogios que Matt Brunson fez ao filme, com todos os adjetivos que ele usou – e com a reclamação que faz na última frase de seu texto ao fato de que a Academia ignorou “absurdamente” Michelle Pfeiffer, Daniel Day-Lewis e o diretor de fotografia Ballhaus.

Sem dúvida alguma, todos esses três mereceriam uma indicação aos Oscars – no mínimo uma indicação.

O cinema de Scorsese é maior que os filmes policiais

Termino com trechos do belo e longo (como sempre) texto de Roger Ebert. Ele abre assim sua crítica ao filme ao qual dá 4 estrelas, a cotação máxima:

“Vivemos em uma idade de modos brutais, em que as pessoas dizem grosseiramente o que querem dizer, a comédia se baseia em insultos, e a maior obscenidade passa sem que se perceba. O filme The Age of Innocence de Martin Scorsese, que se passa nos anos 1870, parece tão alienígena que poderia ser pura fantasia. Um código social rígido determina como as pessoas devem falar, andar, se encontrar, se despedir, jantar, ganhar suas vidas, se apaixonar e casar. Nada do código está escrito em lugar algum. Mas aquelas pessoas estudaram o texto desde que nasceram.

“O filme é baseado em um romance de Edith Wharton, que morreu nos anos 1930. (…) O romance e o filme se passam no elegante meio das famílias mais antigas e mais ricas da cidade de Nova York. Os casamentos são como tratados entre nações; seu propósito não é apenas cimentar o amor ou produzir crianças, mas providenciar para que haja uma ordeira transmissão de riqueza entre as gerações. Qualquer coisa que ameace esse tranquilo processo é odiado. Não se considera apropriado que homens ou mulheres coloquem seus próprios desejos acima das necessidades de sua classe. As pessoas de fato ‘se casam por amor’, mas essa prática é vista como vulgar e perigosa.”

E bem mais adiante:

“Esse tipo de história tem sido filmado, muito bem, pelo time Merchant-Ivory. Suas obras Howards End, A Room With a View e The Bostonians se passam nesse mundo. Poderia parecer material que não interessaria a Martin Scorsese, um diretor de grandes culpas e energias, cujos próprios títulos são o oposto da época da inocência: Mean Streets, Taxi Driver, Raging Bull, Goodfellas.”

(No Brasil, Caminhos Perigosos, Taxi Driver, Touro Indomável, Os Bons Companheiros.)

“No entanto, quando seu amigo e co-autor Jay Cocks deu a Scorsese o romance de Wharton, ele não conseguiu parar de ler, e agora o transformou em filme, e, por algum milagre, ele é todo Wharton, e é todo Scorsese.”

Bela frase: A Época da Inocência é um filme que é todo Edith Wharton, e é todo Martin Scorsese.

O texto de Roger Ebert é sempre uma maravilha.

Eu só gostaria de lembrar que o cinema de Martin Scorsese é muito maior do que os filmes policiais, sobre gangues e mafiosos. Não sejamos reducionistas. Diabo, o cara fez A Última Tentação de Cristo (1988), aquela maravilha baseada no romance do grego Nikos Kazantzakis. Ainda no campo da fé, do espiritual, da religiosidade, fez Kundun (1997), outra maravilha, uma bela biografia do décimo-quarto Dalai Lama. Ainda em começo de carreira, em 1977, fez Alice Não Mora Mais Aqui (1974), um relato sensível, tocante sobre uma mulher que tenta recomeçar a vida e criar a filha sozinha após perder o marido. Fez drama musical, New York, New York (1977), fez homenagem a um dos grandes humoristas do cinema americano, Jerry Lewis, O Rei da Comédia (1982), fez documentários sobre a obra de artistas geniais, Bob Dylan, George Harrison, Elia Kazan

Martin Scorsese tem uma obra vasta e eclética. É bom em tudo o que faz. E eu, pessoalmente, continuo achando, quase 30 anos depois, que A Época da Inocência é um de seus melhores filmes. Se não for o melhor.

Anotação em agosto de 2022

A Época da Inocência/The Age of Innocence

De Martin Scorsese, EUA, 1993.

Com Daniel Day-Lewis (Newland Archer),

Michelle Pfeiffer (condessa Ellen Olenska),

Winona Ryder (May Welland)

e Joanne Woodward (a narradora), Geraldine Chaplin (Mrs. Welland, a mãe de May), Stuart Wilson (Julius Beaufort), Mary Beth Hurt (Regina Beaufort), Miriam Margolyes (Mrs. Mingott, a avó de Ellen e May), Sian Phillips (Mrs. Archer, a mãe de Newland), Michael Gough (Henry Van Der Luyden), Alexis Smith (Louisa Van Der Luyden), Jonathan Pryce (Rivière, o secretário do conde), Robert Sean Leonard (Ted Archer, o primogênito de Newland e May), Alec McCowen (Sillerton Jackson), Richard E. Grant (Larry Lefferts), Tracey Ellis (Gertrude Lefferts), Norman Lloyd (Mr. Letterblair, o chefe do escritório de advocacia), Domenica Scorsese (Katie Blenker), Linda Faye Farkas (a cantora de ópera), Michael Rees Davis (cantor de ópera), Terry Cook (cantor de ópera), Jon Garrison (cantor de ópera), Kevin Sanders (o duque), W.B. Brydon (Mr. Urban Dagonet), Cristina Pronzati (a empregada da condessa Olenska), Clement Fowler (florista), Patricia Dunnock (Mary Archer), Carolyn Farina (Janey Archer)

Roteiro Jay Cocks & Martin Scorsese

Baseado no romance homônimo de Edith Wharton

Música Elmer Bernstein

Fotografia Michael Ballhaus

Montagem Thelma Schoonmaker

Desenho de produção Dante Ferretti

Figurinos Gabriella Pescucci, Tirelli Costumi Roma, Barbara Matera Ltd.

Produção Barbara De Fina, Columbia Pictures

Cor, 139 min (2h19)

R, ****

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