Belfast

Nota: ★★★★

(Disponível no Now em 8/2022.)

Absolutamente eclético, poço de talento, brilhante tanto como ator quanto como diretor, seja em obras baseadas em William Shakespeare, Agatha Christie, Charles Perault ou nele mesmo, Kenneth Branagh poderia fazer o que bem entendesse quando resolveu contar como via o mundo a seu redor aos 9, 10 anos de idade, na Belfast engolfada pela guerra fratricida do final dos anos 60.

Fez um filme que mistura tour-de-force e fogos de artifício esplendorosos visualmente com emoção, um imenso carinho pelos seres humanos, nojo pelos fanatismos e um abençoado humanismo.

Belfast é uma obra-prima, um filmaço, uma das melhores coisas que o cinema nos deu nas últimas décadas.

A câmara dança num plano-sequência belíssimo

A abertura do filme é uma daquelas coisas de beleza acachapante, que dá vontade de aplaudir de pé feito na ópera, de voltar atrás e ver de novo uma, duas, várias vezes em seguida.

(Diacho: antigamente, nos tempos do videocassete, a gente dizia “dar rewind”. Agora, nestes tempos de streaming, como se diz dar rewind? Não tenho idéia – mas é isso que a abertura de Belfast dá vontade de fazer. Ver de novo, e de novo, e de novo.)

Vemos as sete letras que formam o nome da capital e maior cidade da Irlanda do Norte em maiúsculas, caixa alta, em um tamanho absolutamente gigantesco, garrafal – e belíssimas tomadas gerais, aéreas, da bela Belfast. Em cores, como são todos os filmes das últimas décadas. Vemos um bairro working class, com aqueles sobradinhos todos iguais, geminados, dos dois lados de uma rua. Aí a câmara mergulha em direção a um muro – e do outro lado do muro está preto-e-branco, como ainda eram muitos dos filmes que o garotinho Kenneth Branagh via na Belfast do final dos anos 60. E estamos não apenas na “Belfast, 15 de agosto de 1969”, como informa um letreiro, e não apenas em um filme em preto-e-branco, mas também em um espetacular, feérico, maravilhoso, estrondoso plano-sequência, com uma câmara fantástica, incrível, alucinadamente, atordoantemente talentosa.

Plano-sequência é uma das coisas mais geniais do cinema – e um dos recursos mais intrinsecamente cinematográficos que há. Arte que veio muito depois que as outras seis já haviam se estabelecido, amadurecido, o cinema usa muitos recursos das que lhe antecederam. Conta histórias, faz uso das palavras, das frases, do domínio da língua, como a literatura; nele vemos personagens em ação nas histórias, como no teatro; nele a música é parte do espetáculo. Cada tomada de um filme pode ser um quadro, uma obra de arte de beleza plástica. Pois é, mas o plano-sequência é algo que só existe no cinema; no plano-sequência, há literatura, teatro, música, artes plásticas – e a câmara dança.

O diretor de fotografia se chama Haris Zambarloukos, nome obviamente grego; nasceu em Nicósia, Chipre, em 1970, exatamente dez anos depois de Kenneth Branagh. Os dois, parece, se entendem como goiabada e queijo, arroz e feijão – já haviam trabalhado juntos em Cinderella (2015) e Assassinato no Expresso Oriente (2017), antes de soltarem esses fantásticos fogos de artifício em Belfast.

A câmara do grego-chipriano Zambarloukos e do irlandês do Norte Branagh dança uma coreografia que deixaria aquele outro grego, Zorba, morrendo de inveja.

A rua do bairro operário está cheia de gente, as pessoas se cumprimentam, falam alto – ali todos se conhecem, e as pessoas são expansivas, conversadeiras.

Uma jovem mãe está berrando por Buddy, e Buddy – o garotinho que é o alter-ego de Kenneth Branagh, para não dizer que é o próprio Kenneth Branagh direto e reto – está entretido numa luta contra seres do Mal, carregando algo que parece uma grande tampa de lata de lixo, mas para seu mundo imaginário é algo como o escudo dos cavaleiros da Távola Redonda.

A mãe de Buddy (o papel de Caitríona Balfe, na foto acima), jovem, bela, berra para que o mais novo dos dois filhos vá para casa almoçar, enquanto ele está metido lá com suas lutas contra os reis perversos, e muitas pessoas caminham por ali, várias crianças brincam, adultos conversam – e de repente o lugar vira uma praça de guerra.

Um grande grupo de homens – armados, muitíssimo bem armados – invade a rua até então desordeiramente pacífica. Os invasores dão tiros a esmo nas casas.

Pânico total. As pessoas correm loucamente de um lado para o outro – e só depois de algum tempo termina o plano-sequência inicial. Mas o tour-de-force continua. Cada plano que vem a seguir é um esplendor, e eles são montados de forma magnífica.

A mãe de Buddy consegue resgatar o garoto no meio da zorra – e, no caminho de casa, segura o escudo de cavaleiro medieval, que serve como boa proteção contra os projéteis que pipocam em todas as direções.

É tudo magistralmente encenado – mas é tudo muito rápido, e não há muitas explicações. São bem poucas, na realidade. Alguns dos assaltantes, dos invasores, dos loucos armados dizem algumas frases – e o espectador entende então que eles são protestantes, e estão em uma guerra santa, uma cruzada, uma jihad (embora o termo pertença a uma outra religião) contra os protestantes do bairro que deixam que ali vivam também algumas famílias católicas.

Querem expulsar os católicos. Acabar com eles.

Esse começo extraordinariamente belo – em termos cinematográficos, embora seja profundamente triste – é tão rápido, e ao mesmo tempo tão impactante, que o espectador pode não compreender muito bem o que está acontecendo. E ele tem boas razões, porque lutas fratricidas em nome de religião são algo incompreensível mesmo. Não cabe num mundo em que haja lógica – se houver lógica, não cabe guerra fratricida em nome de religião.

O fato é que eu, que tenho especial admiração pela Irlanda, já li, vi filmes e ouvi falar muito dos conflitos irlandeses dos anos 60 e 70, levei algum tempinho para compreender o que estava rolando. A princípio, cheguei a achar que a família de Buddy – e portanto a família de Kenneth Branagh, esse artista por quem tenho especial admiração desde que o vi pela primeira vez – era católica, vivendo num bairro operário de maioria protestante em Belfast.

Não, não é. A família de Buddy é protestante – mas, bem ao contrário daquela horda de fanáticos idiotas, violentos, armados até os dentes, não queria expulsar os católicos, acabar com os católicos.

Muitíssimo ao contrário.

A família de Buddy era protestante – e tinha amigos católicos, e conviviam todos em harmonia. Até que, num dia de agosto de 1969, chegaram os fanáticos em sua jihad.

Filmes e canções examinaram os conflitos irlandeses

Os irracionais, terríveis, violentos, sangrentos, conflitos da Irlanda nos anos 60 e 70 são daquelas coisas que dão razão aos que acreditam que o ser humano, afinal, foi uma invenção que não deu certo. E são também difíceis de entender, avaliar. Como a guerra nos Bálcãs após a implosão da Iugoslávia – aquela coisa brutal demais para qualquer pessoa civilizada admitir que acontecia na Europa, perto do ano 2000. Como a interminável guerra entre judeus e árabes na Palestina em que a ONU deveria ter criado de cara dois Estados e criou apenas um.

É muito difícil ser imparcial, não demonstrar uma simpatia por um dos lados nos conflitos irlandeses.

Federico Fellini não precisava parecer imparcial ao mostrar a Rimini de sua infância na época do fascismo de Benito Mussolini em Amarcord (1973). Aquele regime era o Mal, e pronto, e ponto – e todos sabíamos muito bem que, é claro, o fascismo era o Mal. Da mesma maneira, quando fez aquela maravilha que é Esperança e Glória (1987), mostrando como era a Londres sob bombas nazistas aos olhos de um garoto, John Boorman não tinha que parecer imparcial. O garoto protagonista da história grita um “viva Hitler!” após um bombardeio que impede que haja aulas no dia seguinte, mas o espectador sabe perfeitamente bem que aquilo é uma brincadeira, uma ironia do diretor Boorman. Para ele, assim como para todas as pessoas de bem e/ou de razão. o nazismo é o Mal em Si.

Kenneth Branagh fez este seu Amarcord , este seu Esperança e Glória de uma forma tal que a preocupação maior, central, basilar, não é exatamente sociológica, política, ideológica.

Sobre a intervenção militar do Reino Unido no conflito iniciado em 1969 entre irlandeses, o filme fala muito pouco. Há uma sequência em que, na televisão da casa da família, o então primeiro-ministro Edward Heath fala sobre o que o governo do Reino Unido pretende fazer – mas é só.

Da mesma maneira, o filme não se preocupa em falar sobre de que forma o conflito entre irlandeses protestantes e irlandeses católicos fez recrudescer o movimento pela unificação das Irlandas – a República da Irlanda tornada independente em meados do século XX após longas batalhas políticas e armadas, e a Irlanda do Norte parte do Reino Unido.

As questões sociológicas, políticas, ideológicas não interessam ao autor. Não era algo que passava pela cabeça do garoto Buddy alter ego do garoto Kenneth Branagh ali em 1969. E então elas não interessam.

Esses temas aí foram tratados a fundo em diversos filmes – e grandes filmes. Em Nome do Pai/In the Name of the Father (1993), de Jim Sheridan. Mães em Luta/Some Mother’s Son (1996), de Terry George. O Lutador/The Boxer (1997), de novo de Jim Sheridan. O Espião/Fifty Dead Men Walking (2008), de Kari Skogland.

John Lennon e Paul McCartney fizeram músicas sobre os conflitos, separadamente, logo após o fim dos Beatles, no auge daquela guerra civil, 1971, 1972 – e os dois, ingleses, tomaram partido dos irlandeses que lutaram pela união da Irlanda e o rompimento entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido. “Give Ireland back to the Irish / Don’t make them have to take it away / Give Ireland back to the Irish / Make Ireland Irish today”, escreveu Paul McCartney. Devolva a Irlanda aos irlandeses, não faça com que eles tenham que pegar ela de volta. Devolva a Irlanda aos irlandeses, faça a Irlanda ser irlandesa hoje.”

E John escreveu: “If you had the luck of the Irish, / You’d be sorry and wish you were dead. (…) Why the hell are the English there anyway? / As they kill with God on their side / Blame it all on the kids and the I.R.A. / As The bastards commit genocide.” Se você tivesse a sorte dos irlandeses você sentiria muito e desejaria estar morto. Por que raios os ingleses estão lá, enquanto matam com Deus do seu lado? Põem a culpa de tudo nos garotos e no I.R.A. enquanto os filhos da mãe cometem genocídio.

Kenneth Branagh não está interessado nas interpretações, nas visões sociológicas, políticas, ideológicas. Em culpar e condenar um dos lados.

O filme sequer se ocupa muito com a presença dos ingleses na Irlanda – o período retratado é, se não me engano, um pouco anterior à intervenção mais brutal das tropas britânicas no conflito. O que vemos é o conflito entre irlandeses e irlandeses. E o propósito do filme – isso fica bastante claro – é mostrar o que acontecia segundo a visão de um garoto que em 1969 tinha nove anos de idade – exatamente como o autor e diretor, nascido em dezembro de 1960.

Claro, a gente pode ver o filme com atenção para sociologia, política, ideologia. Mas Belfast não é um filme político – é um filme pessoal, confessional, e humanista.

O foco do filme é a emoção, a sensação. As relações familiares. Como o garoto Buddy se sentia em relação ao pai, à mãe, ao irmão, aos avós, aos primos e primos. Como ele se sentia com a família que de repente se vê envolvida em uma guerra civil.

Frank Capra seguramente aplaudiria Belfast, assim como Satyajit Ray, Charles Chaplin, Jean Renoir, os grandes mestres que fizeram os filmes mais profundamente humanistas da História.

Os radicais interrompem a convivência pacífica

Há dois personagens abjetos na história – nojentos, vis, vomitativos. Os dois defendem a cizânia, a separação das pessoas em grupos estanques, o nós contra eles. A segregação, o apartheid – os de fé assim de um lado, os de fé assada de outro lado. Um deles é o ministro protestante (o papel, creio, de Turlough Convery), que faz no púlpito na cerimônia de domingo um discurso feroz, raivoso, babante, separando os bons – os protestantes – dos maus – os demais. O pobre Buddy fica apavorado com aquilo, não consegue esquecer as palavras duras, as ameaças do pregador fanático contra os que se desviam do caminho do bem.

O outro personagem abjeto é um jovem ativista, líder dos ataques dos protestantes às casas dos católicos, que faz constantes ameaças ao pai de Buddy. Está sempre exigindo do pai do garoto que tome atitudes, que aja contra os seus vizinhos católicos – porque, se não fizer isso, se não obedecer, sua vida vai virar um inferno. (O pai é o papel de Jamie Dorman; não consegui gravar o nome do personagem nem do ator que faz o jovem ativista.)

Dois personagens abjetos – dois defensores da guerra, do nós contra eles.

Já os demais personagens são todos pessoas de bem, que sempre conviveram em paz com seus compatriotas, seus vizinhos, na maior harmonia, como as teclas brancas e as teclas pretas do piano, para citar o verso maravilhoso de Paul McCartney em “Ebony and Ivory”.

Tanto o pai e a mãe quanto o avô e avó de Buddy, todos protestantes, sempre se deram absolutamente bem, na maior harmonia, com seus vizinhos e amigos católicos – repito, insisto. A rigor, se davam até melhor com os vizinhos do que entre eles mesmos…

Essa última frase é brincalhonamente exagerada – mas o fato é que o avô e a avó de Buddy, duas pessoas simpáticas, interessantes, boa gente, formam um daqueles casais em que um está sempre implicando com o outro, a cada coisinha que acontece, a cada frase que um fala. Amam-se, sim; se querem bem, e querem bem a todos os que cercam, mas um pisa no pé do outro o tempo todo.

Os avós de Buddy são interpretados por dois atores fantásticos, admiráveis. Ela, por Dame Judi Dench, aquele portento, aquela coisa incrível. Nascida em York, em 1934, Judi Dench – laureada com a Ordem do Império Britânico (OBE) em 1970, tornada Dame Commander da Ordem do Império Britânico (DBE) em 1988 e membro da Order of the Companions of Honour (CH) a partir de 2005 – é a única inglesa entre os atores principais de Belfast, e fazer uma irlandesa para ela não é problema algum; como Meryl Streep, ela poderia interpretar perfeitamente uma americana do Sul, uma americana de Nova York, um neo-zelandesa, uma australiana, o que fosse.

Mas o fato é que todos os demais atores principais são irlandeses. O avô é o papel de Ciarán Hinds, de Belfast, 1953. Caitriona Balfe, que faz a mãe, é de Dublin, 1979; Jamie Dorman, o pai, é de Belfast, 1982.

Avô e avó se amam, mas estão sempre implicando um com o outro, como acontece com tantos casais de velhinhos, irlandeses ou ingleses, católicos ou umbandistas, pretos ou brancos, flamenguistas ou fluminenses.

Já a mãe e o pai…

Ah, sim, um detalhinho interessante, gostoso. Não ficamos sabendo o nome deles, pais e avós. Todas as referências a eles são apenas como Ma &  Pa e Granny & Pop.

Ma e Pa se amam, sim. São belos, jovens, e se amam, mas há problemas.

E aqui entra uma coisa que eu considero uma bela sacada do autor e roteirista Kenneth Branagh. Como tudo é a visão que o garoto Buddy tem do mundo, como toda a narrativa é apresentada como a realidade sendo vista pelos olhos daquele menino de 9 anos de idade, não são apresentados para o espectador muitos detalhes do que está acontecendo na vida do pai e da mãe – especialmente na do pai. Porque é assim mesmo, certo? As crianças não entendem bem tudo o que acontece fora de suas casas, fora do alcance de suas vistas – e assim muitos fatos não são claramente expostos para nós.

Ficamos sabendo, claro, desde o início, que Pa trabalha na Inglaterra, e viaja para estar com a família nos fins de semana. Às vezes, quando a situação exige, vai para casa com maior frequência, viaja também no meio da semana – mas em geral fica em casa apenas aos sábados e domingos.

Compreendemos que o pai gosta de jogar – esse vício tão absolutamente disseminado no mundo todo, mas que nas Ilhas Britânicas parece ser parte da tradição –, e afundou-se em dívidas. A mãe fica furiosa com isso, é claro; como o marido não abre para ela toda a situação, ela entende que as dívidas são com o banco, em troca de uma hipoteca da casa working class. Mas aparentemente a coisa é pior – a dívida é com os bookmakers, os caras da jogatina, e deve para bookmaker é algo que consegue ser pior do que dever para banco.

A gente vê pai e mãe falando sobre esses assuntos – mas as coisas não são ditas muito claramente, porque não se falam claramente as coisas diante das crianças.

Um garotinho fantástico. E um músico lendário

A vida no meio daqueles violentos conflitos – The Troubles, os problemas, parece que era assim que os irlandeses comuns de Belfast se referiam ao estado de guerra permanente – vai ficando mais e mais difícil. E Pa e Ma começam a falar da possibilidade de a família sair dali e se instalar na Inglaterra, onde, afinal, ele já trabalha.

Para o garoto Buddy, é uma lâmina de guilhotina pairando sobre o pescoço. Deixar a casa, os amigos, as primas, a Granny, o Pop, a garotinha linda da escola por quem seu coraçãozinho bate mais forte – perder quase tudo o que existe de importante na vida.

Mas os garotinhos não decidem o destino das famílias.

Quando Kenneth Branagh tinha nove anos de idade – informa sua biografia no IMDb –, “sua família escapou de Os Problemas mudando-se para Reading, Berkshire, Inglaterra. Aos 23, Branagh entrou para a Royal Shakespeare Company”.

Ciarán Hinds – informa o IMDb – “também deixou Belfast em meados dos anos 1970 para escapar de Os Problemas, mas, diferentemente de Pop, ele era católico”.

Ciarán Hinds (na foto abaixo), Judi Dench ( na foto acima), dois gigantescos atores. Caitriona Balfe, Jamie Dorman, belos e competentes. Mas quem brilha mais, o centro de tudo, é Jude Hill, o garotinho escolhido para interpretar Buddy.

Seria interessante um documentário curta ou média-metragem mostrando como foi o processo de escolha do ator que interpretaria Buddy. Será que parecer fisicamente com Kenneth Branagh foi um dos quesitos? Porque o danado do tal do Jude Hill parece muito com o criador do filme, o cara que, afinal, o garoto interpreta.

Jude Hill nasceu em 1º de agosto de 2010 em Gilford, uma cidadezinha de menos de 2 mil habitantes, não muito distante de Belfast. Depois de ter sido descoberto pela equipe de casting do filme, já fez dois curta-metragens, uma série de TV, Magpie Murders, e um filme de terror, Mandrake, ambos de 2002. Naquele lugar que é o maior celeiro de bons atores do mundo, as Ilhas Britânicas, sabe-se lá qual será o futuro do garoto. Mas o fato é que ele está extraordinário como esse simpático, apaixonante Buddy.

Ator esplendoroso, grande diretor de atores, Branagh usou um truque com o garoto Jude Hill. Por diversas vezes, filmou tomadas em momentos que teoricamente eram ensaios, para pegar o garoto em momentos mais soltos, mais espontâneos. Mas o povinho dessa geração caiu no caldeirão da informação, como eu gosto de dizer, e então Jude percebeu o truque. Daí em diante, a equipe do diretor de fotografia Haris Zambarloukos passou a tampar com fitas adesivas a luz vermelha que mostra quando a câmara está filmando. Várias das tomadas aproveitadas na montagem final foram feitas assim, no modo ensaiando.

Há um outro nome a ser reverenciado, sem o qual Belfast não seria essa absoluta maravilha que é – Van Morrison.

Além de maior celeiro de grandes atores, as Ilhas Britânicas são também o maior celeiro de músicos do planeta. A quantidade de gente boa da música pop daquelas ilhas é semelhante ao de Estados Unidos e Canadá juntos – o que é algo absurdo, já que as British Isles possivelmente ocupam um território menor do que o Texas.

A Irlanda, especificamente, é um absurdo. U2, Enya, Sinéad O’Connor, Mary Black, Damien Rice, Christy Moore, Glen Hansard, Rory Gallagher, Clannad, Chieftains, Dubliners, Cranberries, Corrs…

Mas Van Morrison é um caso à parte, uma lenda viva. Nascido em Belfast em 1945, formou a banda Them em 1964, e está na estrada desde então. O belo site AllMusic começa babando de admiração assim a imensa biografia do cara: “Ao mesmo tempo berrador soul de olhos azuis e poeta-feiticeiro de olhos abertos para o mundo, Van Morrison está entre os verdadeiros inovadores da música popular, um pesquisador inquieto cujos vocais encantatórios e fusão alquímica de R&B, jazz, blues e folk celta produziram o que é considerado talvez o conjunto de obra mais espiritualmente transcendente no cânone do rock & roll.”

Esperto, safo, Kenneth Branagh chamou a lenda para cuidar da trilha sonora do filme. Entre diversas belas músicas com vários intérpretes, ouvimos o próprio Van Morrison cantar, entre outras, “Caledonia Swing”, “Bright Side of the Road”, “Warm Love”. “Days Like This”, e ainda “Carrickfergus”, uma das mais belas canções que ouvi nos últimos 50 e tantos anos. Especialmente para o filme, Morrison compôs e interpretou “Down to Joy” – que ganhou uma indicação ao Oscar de melhor canção original.

52 prêmios, fora 237 indicações

Foram sete indicações ao Oscar, nas categorias de filme, direção, roteiro original, ator coadjuvante para Ciarán Hinds, atriz coadjuvante para Judi Dench, canção original e som. O filme levou a estatueta por melhor roteiro original.

Ao Bafta, foram seis indicações, nas categorias filme britânico, roteiro original, ator coadjuvante para Ciarán Hinds, atriz coadjuvante para Caitriona Balfe e melhor montagem. Levou o primeiro deles, o de melhor British Film of the Year.

No total, ganhou 52 prêmios, fora 237 indicações nos festivais mundo afora.

A paixão de Kenneth Branagh pelos filmes é perceptível em vários, vários momentos ao longo dos 98 minutos de Belfast. Buddy vê na televisão, em casa, dois dos melhores westerns que já foram feitos, Matar ou Morrer/High Noon (1952), de Fred Zinnemann, e O Homem Que Matou o Facínora/The Moon Who Shot Liberty Valance (1962), de John Ford – e nós vemos algumas tomadas junto com ele. O tom, o ritmo do primeiro chega a dominar uma das sequências de conflitos de rua. E, em uma sala de cinema, interrompendo o preto-e-branco do filme, vemos, junto com a família de Buddy, tomadas de Mil Séculos Antes de Cristo/ One Million Years B.C. (1966) e O Calhambeque Mágico/ Chitty Chitty Bang Bang (1968).

E Granny conta para Buddy que seu filme preferido é Horizonte Perdido/Lost Horizon, que Frank Capra lançou em 1937.

É quando rola um dos mais belos diálogos deste filme belíssimo como os melhores com que Frank Capra nos presentou.

Vovó: – na pessoa desse patrimônio da humanidade que é Judi Dench – começa falando do filme que a família havia visto no cinema, o tal O Calhambeque Mágico: – “Se Deus quisesse que eu visse carros voadores, eu teria nascido com asas. Você adora filmes, não é? Eu também adorava quando era da sua idade. Eu achava que a gente podia subir na tela e visitar todos aqueles lugares estranhos que a gente via. Como aquele naquele filme… Como era mesmo? Lost Horizon. Você já viu esse?”

Buddy: – “Não. Como era o nome do lugar, Vovó?”

Vovó: – “Shangri-La. Era esse o nome.”

Buddy: – “Você foi lá alguma vez?”

E a Granny: – “Não havia estradas para Shangri-La do nosso pedaço de Belfast.”

There were no roads to Shangri-La from our part of Belfast.

Ah, meu… É muita beleza demais.

É um filme cheio de belos diálogos, sim. Mas tão belo quanto esse aí acima, só o do garoto Buddy com o pai, já bem perto do final. Buddy está especialmente triste porque vai ficar longe de Catherine, a garotinha mais linda da sua classe, e pergunta para o pai: – “Você acha que eu e aquela garotinha temos futuro?”

Pai: – “E por que não?”

Buddy: – “Você sabia que ela é católica?”   ]

Pai: – “Aquela garotinha pode ser hinduista, batista do Sul, ou uma vegetariana anti-Cristo, mas se ela for gentil, e se for justa, e vocês se respeitarem, ela e a família dela são bem-vindas à nossa casa qualquer dia da semana. Combinado?”

Combinado. Combinadíssimo. Sem dúvida alguma.

Anotação em agosto de 2022

Belfast

De Kenneth Branagh, Irlanda do Norte, 2021

Com Jude Hill (Buddy)

e Caitríona Balfe (a mãe), Jamie Dornan (o pai),

Judi Dench (a avó), Ciarán Hinds (o avô),

Lewis McAskie (Will, o irmão), Josie Walker (tia Violet), Freya Yates (prima Frances), Nessa Eriksson (prima Vanessa), Charlie Barnard (primo Charlie), Frankie Hastings (tia Mary), Máiréad Tyers (tia Eileen), Caolan McCarthy (tio Sammie), Ian Dunnett Jnr (tio Tony), Michael Maloney (Frankie West), Lara McDonnell (Moira), Olive Tennant (Catherine, a coleguinha de escola), Chris McCurry (Mr Stewart), Rachel Feeney (Mrs Ford), Elly Condron (Mrs Kavanagh), Drew Dillon     (Mr Kavanagh), Olivia Flanagan (Mary Kavanagh), Samuel Menhinick (Paddy Kavanagh), Turlough Convery (ministro)

Argumento e roteiro Kenneth Branagh

Fotografia Haris Zambarloukos

Música Van Morrison

Montagem Úna Ní Dhonghaíle

Casting Lucy Bevan, Emily Brockmann     

Desenho de produção Jim Clay

Figurinos Charlotte Walter     

Produção Laura Berwick, Kenneth Branagh, Becca Kovacik,

Tamar Thomas    

P&B e cor, 98 min (1h38)

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4 Comentários para “Belfast”

  1. Parabéns Sergio pelo seu trabalho!

    Só senti falta de uma newsletter para poder acompanhar os posts.

Comentário

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