Segredos de Alcova e O Diário de uma Camareira

[rating:2] [rating:2.5]

Ao longo de sua História, o cinema se mostrou encantado com Le Journal d’une Femme de Chambre, o romance do francês Octave Mirbeau publicado em 1900. A história foi filmada quatro vezes, em 1916, 1946, 1964 e 2015 – duas delas por diretores que estão entre os melhores, mais importantes de todos.

As indicações, no entanto, são de que as versões cinematográficas estão muito, muito distante e aquém do romance.

Não estou fazendo uma afirmação peremptória, de forma alguma – é apenas uma dedução, uma inferência. Não li o livro – apenas um longo, cuidadoso resumo em um site especializado nisso –, e nunca tinha tido interesse e/ou oportunidade de ir atrás dos filmes, até agora, quando vi a versão mais recente, de Benoït Jacquot, de 2015, a primeira em cores, uma caprichada co-produção França-Bélgica, e logo em seguida a segunda, a de 1946, de Jean Renoir. Não consegui encontrar a versão de 1964, a de Luís Buñuel – foi lançado em DVD, mas não está mais em catálogo, não está disponível nas lojas, e também não existe no território livre e doido da internet. A primeira das quatro adaptações do livro para o cinema, essa é mesmo inalcançável, inatingível – é uma produção da Rússia imperial, pré-Revolução Comunista, de 1916, dirigida por M. Martov.

Então, repito, insisto: não tenho condições de fazer uma afirmação peremptória. Mas, pelos filmes de 1946 e 2015, pelos trechos disponíveis da versão de Buñuel, pelo que se informa sobre ela e sobre o romance, dá para deduzir, inferir que o cinema ainda não conseguiu fazer um filme à altura do livro, ou bastante fiel a ele.

Célestine anota tudo o que vive em seu diário

O romance de Octave Mirbeau (1848-1917) é um catatau de mais de 500 páginas. Foi publicado originalmente como um folhetim, no jornal L’Écho de Paris, entre outubro de 1891 e abril de1892, e, depois de bastante reescrito, saiu como romance em 1900. Chordelos de Laclos havia escrito seu extraordinário romance As Ligações Perigosas em forma de cartas trocadas entre os personagens centrais; Le Journal d’une Femme de Chambre foi escrito exatamente como um journal, um diário – são as anotações de Célestine, a camareira, a empregada doméstica, ao longo dos meses em que trabalha na casa de uma família da província – os Lanlaire, na França do final do século XIX, ali por volta de 1885.

Ao mesmo tempo em que descreve seu dia-a-dia na propriedade dos Lanlaire e nas idas à cidadezinha, à casa vizinha, Célestine anota sobre as lembranças que tem da sua vida nos empregos pelos quais passou. E foram muitos – ela nunca ficou mais de meio ano em cada uma das casas.

Célestine não gosta nada de seus novos patrões. Madame Lanlaire é desagradável, exige muito dela, cobra sua demora ao voltar da missa aos domingos, e está sempre a pedir que tome cuidado com cada uma das peças que há na casa. Quanto ao patrão, esse, como tantos outros que já haviam passado pela vida de Célestine, dá em cima dela, tenta obter dela os favores sexuais que a esposa não parece apreciar.

O vizinho dos Lanlaire, o capitão Mauger, detesta o casal que vive ao lado. A empregada dele, Rose, por sua vez, se aproxima de Célestine, conta para ela as fofocas do lugar.

“A missa do interior é para Célestine um tédio mortal: não há qualquer vestido belo que possa ser admirado para que o tempo passe”, diz o longo resumo do site Etudier.com, que, me parece, dá bem o tom do livro. “Após a missa, mademoiselle Rose a leva à mercearia, onde as fofocas são postas em dia. Ao sair, Célestine fica sabendo que é ali que ela pode procurar ajuda se Monsieur a engravidar, para se desembaraçar da criança com toda discrição. De volta à casa, Madame a repreende por ter demorado muito tempo a voltar da igreja.”

Na casa dos Lanlaire trabalham também uma cozinheira, Marianne, que conta para Célestine seus pequenos furtos – mais tarde Monsieur a deixará grávida –, e Joseph, o faz-tudo, um homem fechado, que fala pouco, e quando fala se demonstra um anti-semita pavoroso, nojento. O que não é gratuito – vivia-se a época do caso Dreyfuss, que comoveu toda a França, tema do filme de 2019 de Roman Polanski, O Oficial e o Espião/J’Accuse.

Um fato extraordinário rompe a rotina interiorana, provinciana: uma garota de 12 anos, Claire, é encontrada num bosque próximo, estuprada e assassinada.

Célestine passa a desconfiar que Joseph possa ser o criminoso. Ao mesmo tempo, Joseph começa a se abrir para ela; conta que está economizando há anos e pretende comprar um café na cidade portuária de Cherbourg. Gostaria de casar com ela, e levá-la para administrar com ele o seu negócio.

Falar mal dos burgueses é uma atração fatal

Falar mal dos burgueses, criticar seus modos, sua pequenez moral, expô-los ao ridículo parece ser uma atração fatal, um dos grandes prazeres dos artistas franceses, na literatura, no teatro, no cinema. E o livro de Octave Mirbeau é um prato cheio. Desde que foi lançado, Le Journal d’une Femme de Chambre tem sido saudado como “subversivo”, de uma narrativa desmistificadora, “uma maneira de explorar pedagogicamente o inferno social, em que reina a lei do mais forte”, uma denúncia dessa “forma moderna de escravatura”, feita por uma camareira a quem o autor dotou de “uma lucidez impiedosa”.

Já em 1900, numa publicação chamada La Revue Blanche, um tal Josef Rippl-Ronaï escrevia a propósito da obra de Mirbeau o que qualquer crítico de cinema poderia ter escrito a propósito de Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert: “Pretende-se que não haja mais escravidão… Ah! Eis aí uma boa piada… E as domésticas, que são elas, então, senão escravas? Escravas de fato, com tudo aquilo que a escravidão comporta de vileza moral, de inevitável corrupção, de revolta que engendra ódios.”

Léa Seydoux faz uma Célestine muito cheia de si

A versão cinematográfica recente, a de Benoît Jacquot, parece muitíssimo mais fiel à obra de Octave Mirbeau que a do mestre Jean Renoir – embora a Célestine interpretada pela bela Léa Seydoux seja um tanto jovem demais para já ter vivido tantas experiências, em tantas diferentes casas, com tantos diferentes patrões e patroas. A moça que levou o prêmio de melhor atriz em Cannes por Azul é a Cor Mais Quente (2013) estava com 30 anos no lançamento do filme.

Léa Seydoux compõe uma Célestine absolutamente cheia de si, segura, que vê o mundo como se estivesse acima das demais pessoas. Diante da patroa e do patrão, demonstra profundo enfado – e os xinga, e xinga o mundo, assim que fica a mais de um metro de qualquer um deles.

Madame Lanlaire (Clotilde Mollet) é mostrada como uma criatura sem dúvida alguma desprezível. Há uma sequência que a mostra especialmente irritante, quando ela, sentada na sala no térreo, pede à empregada que vá pegar no quarto, no primeiro andar, uma agulha, e, assim que recebe a agulha, pede uma linha, e depois que Célestine sobe e desce as escadas mais uma vez, pede uma tesoura – e assim por diante.

Quanto a Monsieur Lanlaire (Hervé Pierre), é um absoluto babaca, que só pensa em cantar Célestine, da forma mais abjeta possível.

Célestine demonstra desprezo pela cozinheira Marianne (Mélodie Valemberg), mulher ampla, gorda, que dá a impressão de ser pouco asseada. E, por Joseph, o jardineiro e de resto faz-tudo da casa (mais uma ótima interpretação de Vincent Lindon, na foto abaixo), demonstra sentir ao mesmo tempo um certo medo e uma grande curiosidade.

O roteiro – escrito pelo próprio Benoît Jacquot e Hélène Zimmer – segue o esquema criado por Mirbeau no livro de trazer para o meio da narrativa do cotidiano de Célestine histórias do passado, experiências que ela viveu nas casas de outros patrões. Um dos flashbacks – eles surgem sempre repentinamente, inopidadamente – mostra uma patroa que carrega em uma pequena mala um grande pênis de louça, um avô dos vibradores. É uma sequência estranha, insólita.

É bastante insólito também o desfecho da relação entre Célestine e o neto tuberculoso de uma das patroas – mas é a recriação fiel de uma das passagens do romance. É uma das boas recordações que Célestine tem; ela havia sido contratada por uma velha senhora distinta (o papel de Joséphine Derenne), para cuidar da sua casa à beira-mar e, sobretudo, de seu neto Georges (Vincent Lacoste, na foto acima). A moça acompanhava o rapaz nos passeios pela praia – e frequentava a cama dele.

O roteiro parece ter sido fiel, também, ao descrever como Joseph vai se aproximando de Célestine – mas interrompe a narrativa antes dos acontecimentos que o romance mostrará no fim.

O filme de Renoir se afasta muitíssimo do livro

A versão que Jean Renoir dirigiu é muito, muito distante do romance. E é prejudicada pelo fato de que é uma produção americana: em 1946, Renoir ainda estava nos Estados Unidos, país que o acolheu ainda antes do início da Segunda Guerra Mundial – assim como recebeu dezenas e dezenas de outros realizadores e atores europeus que fugiam do nazismo. Assim, seu Journal d’une Femme de Chambre tem o título original de The Diary of a Chambermaid – e, no Brasil, ganhou o título de Segredos de Alcova. E Célestine, Monsieur e Madame Lanlaire, o vizinho capitão Mauger e sua empregada Rose, todos falam em inglês.

Célestine é interpretada por Paulette Goddard, e é impressionante como a ex-senhora Charlie Chaplin parecia mais velha do que Léa Seydoux no mesmo papel, muito embora tivesse apenas 6 anos mais que a francesa – nascida em 1910, estava com 36 anos.

Monsieur Lanlaire é interpretado por Hurd Hatfield (na foto abaixo), e Madame Lanlaire por Judith Anderson – que, seis anos antes, havia interpretado a governanta-bruxa em Rebecca, de Alfred Hitchcock.

O capitão Mauger, o vizinho dos patrões, foi o papel do grande Burgess Meredith, que na época estava casado com a estrela Paulette Goddard. E foi Burguess Meredith que assinou o roteiro do filme, com base numa peça teatraç que já era a adaptação do romance, assinada por André Heuzé e André de Lorde.

O roteiro mexeu profundamente na história. Transformou Georges, o jovem tuberculoso, neto de uma das patroas de Célestine no passado, no filho adulto do próprio casal Lanlaire. Colocou a moça no meio de uma corte cerrada feita tanto pelo patrão quanto pelo vizinho capitão Mauger e por Joseph. Aumentou a carga criminosa de Joseph transformando-o em assassino a sangue frio.

Sobretudo, o roteiro de Meredith, a direção do mestre Renoir, a interpretação dos atores, a trilha sonora Michel Michelet – tudo conspirou para dar um toque de ironia, sarcasmo, à história, que resvalou para um tom de comédia que a meu ver não tem nada, absolutamente nada a ver com a sátira social que a obra de Octave Mirbeau faz.

Atenção: spoiler. Melhor pular para o próximo intertítulo

Mas o principal ponto, me parece, em que os dois filmes se distanciam do livro, tanto o de 1946 quanto o de 2015, é o fato de que eles não vão até onde a história vai no romance.

Vai aqui o aviso: a frase a seguir é um spoiler.

No livro, Célestine se casa, sim, com Joseph – e se transforma, ela mesma, numa patroa, não muito diferente das patroas que a trataram mal quando ela era uma bonne, uma domestique, uma empregada.

Para Mirbeau, quem é burguês é ruim – mesmo que venha das gloriosas, imaculadas, abençoadas classes trabalhadoras.

Nem Renoir nem Jacquot quiseram assinar embaixo dessa moral triste.

Com o tempo, a crítica passou a elogiar o filme de Renoir

Leonard Maltin deu ao filme de Jean Renoir 2 estrelas em 4: “Desconfortável tentativa de melodrama romântico ao estilo europeu, com a loura Goddard como uma empregada que atiça todos os tipos de emoção. Esforça-se bastante, mas nunca está realmente certo do que pretende ser. Meredith como o vizinho meio louco e Ryan como a copeira fazem o possível para avivar as coisas; Meredith também co-produziu e escreveu o roteiro. Refeito em 1964.”

A Ryan que Maltin elogia é Irene Ryan, que interpreta Louise, uma moça tímida, feiosa, sem graça, que Célestine – num gesto generoso, atruísta, que não combina com sua personalidade egocêntrica – defende e protege.

“Refeito em 1964.” Não dá para deixar de registrar aqui que a versão de 1964, assinada por outro grande mestre, o espanhol Luís Buñuel, o cineasta da rebeldia, do absoluto inconformismo, cuja religião era ser anti-religioso, iconoclasta, irreverente, tem Jeanne Moreau no auge da beleza e da sensualidade no papel central. As indicações todas são de que, no Journal d’une Femme de Chambre de Buñuel, a sensualidade, o erotismo e os fetiches – elementos que já estavam no livro – são elevados à enésima potência.

Do verbete sobre o filme do livro de Pauline Kael (5001 Nights at the Movies, no Brasil reduzido a 1001 Noites no Cinema), transcrevo duas frases: “Jean Renoir parodia os romances históricos neste divertissement escancaradamente inverossímil. (…) O filme é meio maluco, mas muitíssimo divertido.”

Diz o Guide des Films de Jean Tulard: “Mal acolhido no seu lançamento, o filme passou por uma revisão, com o tempo, e alguns chegam mesmo a colocá-lo no mesmo plano de A Regra do Jogo. Ainda que rodado nos Estados Unidos, ele parece mesmo superior à versão de Buñuel aos olhos de certos críticos.”

“Léa Seydoux carrega no seu rosto os sinais da exaustão”

Le Monde afirma que Benoït Jacquot “adapta com elegância o livro cruel de Octave Mirbeau”. O texto assinado por Thomas Sotinel é mais uma das quase incontáveis provas de que os franceses não apenas inventaram o cinema como são também os que melhor escrevem sobre ele.

“Célestine encontrou um novo mestre. Depois de ter servido aos senhores Mirbeau, romancista, Renoir e Buñuel, cineastas, eis a bela doméstica bretã colocada nos domínios do senhor Jacquot. Não é de se espantar qie o autor de La Fille Seule (Uma Garota Solitária, 1995), que era também uma empregada, tenha se interessado por essa outra figura da solidão feminina.

“É, de todos os traços dessa personagem imaginada por Octave Mirbeau em 1900, a que mais fascina Benoît Jacquot. Esse Journal d’une Femme de Chambre manteve do texto original a cólera e o humor macabro, mas é também uma exploração insistente do desejo feminino. E, talvez porque se aventure à sombra de dois gigantes, o realizador leva aqui quase à incandescência sua habitual elegância.

“Como Paulette Goddard e Jeanne Moreau que precederam Léa Seydoux no papel de Célestine, a atriz não tem nada de servil. (…) Léa Seydoux carrega no seu rosto os sinais da exaustão, nascida de um combate sem trevas, sempre perdido, sempre reiniciado, contra sua condição e aqueles que a mantêm.”

E por aí vai. O texto do crítico do Monde – Benoît Jacquot que me perdõe – é melhor do que o filme.

Anotação em outubro de 2019

Segredos de Alcova /The Diary of a Chambermaid

De Jean Renoir, EUA, 1946.

Com Paulette Goddard (Célestine)

e Burgess Meredith (capitão Mauger), Hurd Hatfield (Georges Lanlaire, o patrão), Judith Anderson (Madame Lanlaire, a patroa), Francis Lederer (Joseph, o criado dos Lanlaire), Florence Bates (Rose, a copeira), Irene Ryan (Louise), Reginald Owen (capitão Lanlaire, o filho), Almira Sessions (Marianne)

Roteiro Burgess Meredith

Baseado na peça de André Heuzé & André de Lorde e Thielly Norès

Por sua vez baseada no romance de Octave Mirbeau

Fotografia Lucien N. Andriot

Música Michel Michelet

Figurinos Laure Lourié

Produção Benedict Bogeaus Production, United Artists.

P&B, 86 min (1h26)

**

O Diário de uma Camareira/Journal d’une Femme de Chambre

De Benoït Jacquot, França-Bélgica, 2015

Com Léa Seydoux (Célestine)

e Vincent Lindon (Joseph), Clotilde Mollet (Madame Lanlaire), Hervé Pierre (Monsieur Lanlaire), Mélodie Valemberg (Marianne), Patrick d’Assumçao (o capitão Mauger), Vincent Lacoste (Georges, o adolescente doente), Joséphine Derenne (a avó de Georges), Rosette (Rose), Adriana Asti (Elvira Parsi), Aurélia Petit (a patroa no trem), Jean-Louis Croquet (o patrão no trem), Yvette Petit (Madame Gouin)

Roteiro Hélène Zimmer & Benoît Jacquot

Baseado no romance de Octave Mirbeau

Fotografia Romain Winding

Música Bruno Colais

Montagem Julia Gregory

Casting Antoinette Boulat

Produção Les Films du Lendemain, JPG Productions, Les Films du Fleuve, France 3 Cinéma, Mars Films.

Cor, 96 min (1h36)

**1/2

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