Em 1936, três anos antes de estourar a Segunda Guerra Mundial e logo antes de fazer as obras-primas A Grande Ilusão (1936) e A Regra do Jogo (1939), Jean Renoir fez este pequeno Une Partie de Campagne. Uma pequenina pérola.
É a adaptação de um dos 300 contos deixados por Guy de Maupassant (1850-1893), do mesmo nome original, “Une Partie de Campagne”.
Na literatura, um conto. No cinema, um curta-metragem – são apenas 40 minutos. Mais que propriamente uma história, uma trama, um enredo, temos aí uma situação. Uns tantos personagens, uma situação – vistos através das lentes da sensibilidade, da capacidade de observar os pequenos detalhes que revelam o que vai na alma das pessoas.
Num domingo de verão de 1860, uma família parisiense aluga uma charrete e vai passar um dia no campo. O chefe da família, Monsieur Dufour (André Gabriello) e sua mulher (Jeanne Marken), a filha deles, Henriette (Sylvia Bataille), moçoila aí entre os 17 e os 19 anos, o namorado dela, Anatole (Paul Temps), e ainda a vovó (Gabrielle Fontan).
Uma jovem com a vida inteira pela frente – mas seus horizontes são estreitos
A vovó já está bastante pancada, demente, senil – qualquer um dos termos que eram usados antes que o mal de Alzheimer passasse por cima de todos os demais. Faz perguntas impertinentes, não compreende o que ouve de volta, afeiçoa-se por um gatinho, cochila – é um personagem que faz figuração, apenas.
Monsieur Dufour me pareceu um bobo, um pasqualão, coitado. Não um mau sujeito, um caráter ruim – apenas um bobo. Mais bobo que ele apenas Anatole. Anatole não se aproxima da namorada, não faz carinho nela, não conversa com ela, não a mima de maneira alguma. Pelo que demonstra, se vier mesmo a continuar com Henriette, se acontecer de vir a casar com ela, será um marido tão pouco afetuoso quanto Monsieur Dufour – ou até pior.
Quando ajuda Madame Dufour a descer da charrete, Monsieur até dá uma abraçada forte nela – ao que a esposa dá um gritinho e fala alguma coisa do tipo: – “Ai, não faça isso assim no meio de estranhos, está todo mundo olhando”.
Madame Dufour é uma mulher que dá gritinhos. É daquele tipo que dá muitos gritinhos para parecer que é uma senhora muito séria, muito respeitosa – mas na verdade está sinalizando que bem, se alguém se atrever a chegar perto de mim nem precisa cantar muito que eu dou.
Tadinha. De novo, uso a mesma expressão que seu marido inspira. Não é uma pessoa má. É apenas e tão somente tolinha, bobinha, vazia, rasa que nem um pires.
Resta então Henriette, a jovem garota, filha de um pequeno comerciante parisiense, já namorada de um moço bobão.
Henriette tem a vida inteira pela frente, mas seus horizontes são estreitos, sua capacidade de voar parece muito pequena.
Dois homens observam mãe e filha com os olhos cheios de gula
Monsieur Dufour resolveu parar a charrete assim que a estradinha que os levou de Paris para o campo atravessa uma ponte sobre um rio largo, onde um garotinho está pescando. (O garotinho é interpretado por Alain Renoir. Nos créditos iniciais, o sobrenome Renoir aparece diversas vezes; mais adiante volto a esse tema.)
Pouco depois da ponte, na continuação da estradinha, há uma casa de interior em que funciona o restaurante. Assim que vê o restaurante, Monsieur Dufour pára o bólido. Descem todos.
A garçonete do bar (interpretada por Marguerite Renoir) vem atendê-los. Eles pedem para conversar com o dono do restaurante, Monsieur Poulain, que dá o nome à casa. Monsieur Poulain é interpretado pelo próprio Jean Renoir, o diretor e autor do roteiro.
A Monsieur Poulain-Jean Renoir, os parisienses pedem um monte de comida para o almoço, que pretendem fazer ao ar livre, como se fosse um piquenique. Afinal, estão no campo, na campagne – não teria sentido comer sob um teto.
Dentro do restaurante, observando a família de parisienses, estão dois homens, Rodolphe e Henri.
(Os dois são interpretados respectivamente por Jacques B. Brunius, que nos créditos aparece como Jacques Borel, e Georges D’Arnoux, creditado como Georges Saint-Saens).
De dentro da casa em que funciona o restaurante, eles observam longamente as duas mulheres, Madame Dufour e a filha Henriette, que se divertem balançando em dois balanços para crianças.
Os dois homens observam as duas mulheres se balançando como leoas observam girafas. Como sapos observam moscas. Como moscas observam pratos de comida em piquenique. Com olhos cúpidos, gulosos, olhos de bicho que quer se alimentar.
Não se explica quem são aqueles animais, caçadores, predadores, homens, machos. Muito provavelmente são também parisienses, mas estão muito mais acostumados a visitar aquele lugar do que a família Dafour, que parece só ter condições materiais de empreender tal passeio umas poucas vezes ao ano.
Rodolphe parece muito mais assanhado, muito mais doidinho por atacar as presas do que seu colega Henri. Define quem ficará com qual presa: ele mesmo, Rodolphe, atacará as carnes mais plenas, mais cheias, de madame. Deixará para Henri a carne jovem.
Tanto Maupassant quanto Renoir dão imensa importância à agua
Só fui ler um pouco sobre o filme depois de tê-lo visto agora pela primeira vez – exatos 80 anos depois que ele foi feito, em 1936, quando o nazismo era ainda uma ameaça.
Aprendi que Guy de Maupassant dava imensa importância à agua. A água – de rios, do mar – tem presença forte em muitas de suas histórias, como nesta aqui, em que, depois do lauto almoço, as duas mulheres da família Darfour, mãe e filha, saem em passeio de barco pelo rio cada uma em companhia de um dos dois frequentadores do lugar, Rodolphe e Henri.
E, sim, Jean Renoir dava imensa importância à água. Em 1951, depois de uma longa temporada em Hollywood, para onde se mudou no início da Segunda Guerra, fez na Índia The River, Le Fleuve, no Brasil Rio Sagrado. Havia estreado como diretor, em 1925, com La Fille d’Eau, A Filha da Água, um filme em tudo por tudo impressionante e inquietante, em que a personagem principal é filha de um navegador, o dono de um barco que navega por um canal no interior da França.
François Truffaut, um apaixonado por Jean Renoir e sua obra, citou a seguinte declaração do mestre: “Não concebo o cinema sem água. Há no movimento do filme um lado inelutável que o aparenta à corrente dos riachos, ao fluir dos rios”. A frase de Renoir citada por Truffaut se refere a Le Fleuve – mas poderia perfeitamente se referir a seu primeiro filme, La Fille d’Eau, e também a este Une Partie de Campagne.
Os créditos iniciais de Une Partie de Campagne vão rolando enquanto vemos águas de um rio rolando, passando diante da câmara do diretor de fotografia Claude Renoir.
Todos os dez minutos finais se passam no rio ou junto dele. Há longas tomadas das águas em movimento.
Sim, Guy de Maupassant dava grande importância à água em seus contos. Jean Renoir dava grande importância à água em seus filmes.
Tinha tudo a ver Renoir filmar o conto de Maupassant que se passa no campo, na campagne, ao lado de um rio e dentro de um rio.
A correnteza da vida nos leva para onde ela quer
Não tenho idéia do que, exatamente, eles quiseram dizer. Mas minha sensação, após ver Partie de Campagne, foi de que a correnteza da vida nos leva, a cada um de nós, para onde ela quer.
Podemos tentar nadar contra a corrente, podemos tentar imprimir a nossa vontade, podemos lutar para atingir os nossos objetivos.
Às vezes até conseguimos – um pouco mais, um pouco menos.
E é isso mesmo que temos que fazer. Temos que usar todas as nossas forças para irmos em direção aos nossos objetivos, nossos alvos, nossos gols.
Mas a verdade é que a correnteza muita vezes nos leva para onde ela bem entende.
Foi o que aconteceu com Henri, foi o que aconteceu com Henriette.
Não gosto de fazer spoilers, e então não tem sentido revelar o fim desta pequena gema. Mas creio que dá para dizer que a correnteza não levou Henri nem Henriette para o porto que eles gostariam de atingir.
Uma grande quantidade de Renoirs nos filmes de Renoir
Empregar parentes em cargos públicos, pagos pela sociedade como um todo, é um nojo. Nepotismo é um horror.
Agora, se o realizador quiser usar gente da família para fazer seus filmes, qual é o problema?
Jean Renoir, o filho do genial pintor Pierre-Auguste Renoir, usava um monte de parentes em seus filmes. Claude, o diretor de fotografia, era seu sobrinho. Marguerite, que faz a garçonete do restaurante à beira do rio, foi uma das mulheres do diretor. Além de ter trabalhado como atriz aqui, foi também uma das duas montadoras.
Alain Renoir, o garotinho que está pescando na ponte quando o filme começa, é filho de Jean Renoir.
Acho uma total delícia essa quantidade absurda de Renoirs nos filmes de Renoir.
“A cada revisão, a mesma felicidade imensa aliada à mesma tristeza infinita”
O amazônico, jupeteriano Guide des Films de Jean Tulard diz que a rigor o filme tem dois títulos, com e sem o artigo indefinido – Partie de Campagne e Une Partie de Campagne. Interessante.
Mas interessante mesmo é que o Guide dá 4 estrelas a este pequeno filme de apenas 40 minutos.
Euzinho aqui, cujas opiniões não valem sequer 3 guaranis paraguaios, dou 4 estrelas para um monte de filmes. Guias bons, como por exemplo o de Leonard Maltin, dão 4 estrelas para várias dezenas de filmes. O Guide de Jean Tulard, no entanto, é avaro. Fala de 15 mil filmes, mas só dá estrelas para uns poucos. Duas estrelas já é uma maravilha. Três são para pouquíssimos. Quatro estrelas, só para algumas poucas obras-primas.
Partie de Campagne/Une Partie de Campagne ganhou as 4 estrelas.
Como em todos os 15 mil verbetes, o Guide faz um primeiro parágrafo – neste caso bem longo – com a sinopse, o resumo da história, da trama. E, no segundo parágrafo, faz a avaliação. Ela vai abaixo, sem aspas, para que eu não precise ser literal:
Concebido como um filme curto, este Partie de Campagne ficou inacabado durante muito tempo. Dois letreiros que vieram fazer as vezes das cenas que faltavam permitiram enfim que o filme conhecesse uma exibição normal dez anos depois de sua realização. É, no entanto, uma das obras maiores de Jean Renoir, que melhor traduz seu amor à vida, essa espécie de comunicação entre o homem e a natureza. Um raio de sol, um sopro de ar, um estremecimento da água tem um efeito tão importante quanto o olhar cheio de lágrimas de Sylvia Gataille, que as risadas sem parar de Jane Marken, que a dança faunesca de Jacques Brunius (também conhecido como Jacques Borel). Por sua simplicidade, sua ternura, sua beleza, sua perfeição absoluta, este filme permanece como uma jóia da arte cinematográfica, obtendo a cada revisão a mesma felicidade imensa aliada à mesma tristeza infinita.
Tenho que repetir mais uma vez o que digo sempre: além de terem sido os inventores do cinema, além de serem absolutamente apaixonados pelos filmes, além de saberem fazer cinema de modo belo, os putos dos franceses ainda são maravilhosos quando escrevem sobre os filmes!
Anotação em dezembro de 2016
Um Dia no Campo/Une Partie de Campagne
De Jean Renoir, França, 1936
Com Sylvia Bataille (Henriette, a filha), Jane Marken, creditada como Jeanne Marken (Madame Dufour, a mãe), André Gabriello (Monsieur Dufour, o pai), Gabrielle Fontan (a avó), Paul Temps (Anatole, o namorado de Henriette), Georges D’Arnoux, creditado como Georges Saint-Saens (Henri), Jacques B. Brunius, creditado como Jacques Borel (Rodolphe), Jean Renoir (Père Poulain, o dono do restaurante), Marguerite Renoir (a garçonete), Alain Renoir (garoto pescando)
Roteiro Jean Renoir
Baseado no conto “Une Partie de Campagne”, de Guy de Maupassant
Fotografia Claude Renoir
Música Joseph Kosma
Montagem Marinette Cadiz e Marguerite Houle Renoir
Produção Pierre Braunberger, Panthéon Productions. DVD CultClassic
P&B, 40 min
***1/2
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