A Regra do Jogo / La Règle du Jeu

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Nota: ★★★☆

Para François Truffaut, A Regra do Jogo é o filme dos filmes.

O retrato que A Regra do Jogo, de Jean Renoir, traça da sociedade francesa em 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, é horripilante, grotesco, nauseabundo. Não há sequer um personagem que tenha bom caráter.

São pessoas fúteis, vãs, vazias, destituídas de qualquer sentimento mais positivo. São irremediavelmente infiéis a seus cônjuges. Não sentem afeto verdadeiro por ninguém, a não ser pelo seu próprio umbigo.

Se, por um milagre, por ira ou simples desprezo divino, morressem todos, não fariam a menor falta a este planeta e a ninguém.

Definitivamente, Jean Renoir não estava feliz com o estado das coisas em seu país naquele mesmo ano em que o nazismo iniciaria a mais trágica de todas as guerras.

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E, ao contrário do que fariam, após o final do conflito, diversos cineastas da vizinha Itália – que traçariam retratos extremamente cruéis da burguesia, mas enalteceriam a bravura e o caráter das classes trabalhadoras, despossuídas -, Renoir não faz distinção de classe social. Mais ou menos como Robert Altman faria em seu retrato de uma Inglaterra dividida entre os have e os have not, em Assassinato em Gosford Park, Renoir não perdoa ninguém, nem os que têm demais nem os que têm muito pouco ou quase nada. Os empregados dos ricaços de A Regra do Jogo são tão imprestáveis quanto seus patrões.

André ama Christine, que é casada com o marquês, que come Geneviève, que…

A Regra do Jogo abre com a chegada ao aeroporto de La Bourget de um herói da pátria. Uma grande multidão rompe os cordões de segurança formados pelos policiais e invadem a pista do aeródromo para ver de perto André Jurieux (Roland Toutain), aterrissando após uma viagem solitária, direta, sem escala, da América até Paris. A repórter de rádio (interpretada por Lise Élina) que transmite o acontecimento histórico faz questão de lembrar que é um feito heróico semelhante ao do americano Charles Lindbergh, uma dúzia de anos antes.

Um amigo do piloto, Octave (interpretado pelo próprio Jean Renoir),  é um dos primeiros a abraçá-lo. A repórter de rádio consegue chegar junto, e vai transmitir para toda Paris as primeiras palavras do herói.

O herói pergunta onde está Christine. Quando Octave diz a ele que Christine não está presente, o herói, diante do microfone da rádio, desmonta que nem um bebê: choraminga que foi para vê-la que ele enfrentou a travessia sobre o Atlântico.

Christine (Nora Grégor) está ouvindo a transmissão de rádio em seu palacete. Ela é casada com o podre de rico marquês de la Cheyniest (Marcel Dalio). O qual também está ouvindo, em outro cômodo, a choradeira do homem apaixonado pela sua mulher.

O marquês também tem sua amante, Geneviève de Marras (Mila Parély).

zzregra8A camareira de Christine, Lisette (Paulette Dubost), é casada com Schumacher (Gaston Modot), o guarda-caça da gigantesca propriedade do marquês no campo – mas, além de não dar muita bola para o marido, deixará que avance sobre ela um novo empregado do palácio campestre, Marceau (Julien Carette).

A própria Christine, objeto da paixão do aviador herói, ora incentivará seus avanços, ora os repelirá. Ao mesmo tempo, permite que lhe faça a corte um visitante, Monsieur de St. Aubin (Pierre Nay).

Depois da abertura em Paris, toda a ação do filme vai se passar na propriedade de campo do marquês, que ali recebe dezenas de visitantes – inclusive sua própria amante e o sujeito que declarou amor à sua mulher ao vivo, pelo rádio.

A narrativa ficará cada vez mais farsesca, exagerada, over, muitas vezes beirando as mais escrachadas comédias pastelão que haviam feito muito sucesso do outro lado do Atlântico uma década antes.

Renoir parece odiar todas aqueles personagens que criou. Ou talvez – pior ainda – desprezá-los.

“Jean Renoir é o maior cineasta do mundo”, escreveu Truffaut

“Isto não é o resultado de uma sondagem, é um sentimento pessoal: Jean Renoir é o maior cineasta do mundo”, escreveu François Truffaut em 1967, no texto de apresentação de um festival de filmes do mestre francês na Casa de Cultura de Vidauban.

“Esse sentimento pessoal”, prossegue Truffaut, um sujeito que escreve tão bem quanto filma, “é compartilhado por muitos cineastas e, por sinal, não é Jean Renoir o cineasta dos sentimentos pessoais? A habitual divisão de filmes entre dramas e comédias não tem sentido algum se pensamos nos de Jean Renoir, todos eles comédias dramáticas.”

zzregra2Interrompo Truffaut aqui porque é o melhor lugar para inserir que, nos créditos iniciais de A Regra do Jogo, aparece o seguinte: “Fantasia dramática de Jean Renoir”. Logo depois dos créditos iniciais, vem um letreiro que diz: “Essa diversão (divertissement, no original), cuja ação se situa às vésperas da guerra de 1939, não tem a pretensão de ser um estudo de costumes. Os personagens que ela apresenta são puramente fictícios”.

“Não tem a pretensão de ser um estudo de costumes.”

Uma bela amostra de como o cinema gosta de jogos de palavras, de afirmar o que nega, de negar o que afirma. Seria possível fazer longa lista de títulos de filmes que afirmam mentiras deslavadas: Estão Todos Bem, A Cidade Está Tranquila, Não se Preocupe, Estou Bem!

Na época do lançamento, o filme foi mutilado pelos produtores

A Regra do Jogo”, escreveu Truffaut, “é o credo dos cinéfilos, o filme dos filmes, o mais detestado por ocasião do lançamento e em seguida o mais apreciado até transformar-se num verdadeiro sucesso comercial depois de sua terceira reprise em circuito normal e em versão integral. No interior desse ‘drama alegre’, Renoir combina, sem dar esta impressão, uma massa de idéias gerais, de idéias particulares e expressa principalmente seu grande amor pelas mulheres. Juntamente com Cidadão Kane, A Regra do Jogo é certamente o filme que mais despertou vocações de cineastas; assistimos a esse filme com uma intensa sensação de cumplicidade. (…)

“Depois do malogro de A Regra do Jogo, mutilado em meia hora a pedido dos especuladores e depois proibido pelas autoridades como susceptível de desmoralizar os franceses – estávamos às vésperas da declaração de guerra –, Jean Renoir, provavelmente muito deprimido, foi para Hollywood, onde dirigiu cinco filmes em oito anos.”

(Esse texto de Truffaut está no livro Os Filmes de Minha Vida, publicado na França em 1975 e no Brasil em 1989, pela Editora Nova Fronteira.)

Renoir pretendia fazer um filme “menos mórbido” do que os de seu tempo

O próprio Jean Renoir considerava A Regra do Jogo um filme alegre, divertido.

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Ainda em 1939, ele escreveu para a revista Paris-Spectacles um pequeno texto sob o título “Meus projetos depois de La Règle du Jeu”. Um trecho:

“O filme que acabo de concluir, La Règle du Jeu, é uma primeira tentativa para um gênero menos ‘mórbido’ do que aquele que sucessos justificados estão prestes a impor à produção francesa. Tudo passa. Os filmes melancólicos e sombrios tiveram sua utilidade evidente e contribuíram para atrair a atenção do mundo para o cinema. Mas tenho a impressão de que o público talvez deseje agora se interessar por heróis menos angustiados e soturnos do que os que nos são apresentados nestes filmes.

La Règle du Jeu foi uma tentativa de me reaproximar do verdadeiro classicismo francês. Não sei se conseguiu. O futuro nos dirá; de qualquer forma, porém, a experiência era indispensável a meus estudos cinematográficos. Falo em estudos porque acho que no meu ofício nunca de pára de aprender ou procurar.”

(Esse texto de Renoir está no livro Escritos sobre Cinema – 1926-1971, publicado na França em 1974 e no Brasil em 1990, pela Editora Nova Fronteira.)

“Um quadro de costumes bordado sem indulgência e sem esperança”  

O monumental Guide des Films de Jean Tulard não costuma dar cotações a todos os filmes – só aos mais importantes dos 16 mil que comenta. La Règle du Jeu, naturalmente, é um dos poucos filmes que leva 4 estrelas.

Vou tentar transcrever todo o verbete – mas faço sem aspas, para pular ou substituir uma ou outra palavra que não conheça:

Os jogos do amor e da sorte ao longo de uma caçada em Sologne, seguida de uma festa, em um castelo. As intrigas dos empregados imitam as dos patrões e a festa degenera em drama.

Com esta “fantasia dramática” à maneira do Casamento de Figaro de Beaumarchais, Renoir ambicionava fazer “uma descrição exata dos burgueses do nosso tempo” às vésperas da guerra. Diante da incompreensão e da rejeição do público, ele apresenta o filme “como uma diversão e não como uma crítica social”. O que não engana ninguém nesse quadro de costumes bordado sem indulgência e sem esperança: duas classes – os patrões em seu mundo, os serviçais no trabalho – se rivalizam no cinismo e na crueldade. Com uma moral desabusada: a vida e o amor são um jogo em que se pode impunemente transgredir as regras. Filme admirável, de uma feitura deslumbrante, mas que ficaria durante muito tempo maldito, objeto de proibições e mutilações, hoje filme cult, tema de inúmeras exegeses.

É, o Guide des Films é demais. O único senão seria a palavra innombrables; conforme lembrava a lógica cartesiana de Heitor da Luz, o pai da Inês, não existe nada que não possa ser contado. Mas isso é detalhinho.

O DVD da Versátil traz versão restaurada como homenagem a André Bazin

A versão que saiu em DVD no Brasil, pela ótima distribuidora Versátil (e que depois constaria da Coleção Folha Cine Europeu), traz o seguinte aviso, bem no início, antes dos créditos iniciais:

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“Jean Gaborit e Jacques Durand reconstituíram a versão original deste filme com a aprovação e os conselhos de Jean Renoir, que dedicou essa ressurreição à memória de André Bazin.”

Bazin (1918-1958), bem sabem os cinéfilos, ou ao menos os cinéfilos mais velhinhos, é o teórico mais adorado pelos realizadores franceses. Para os cineastas que começaram nos anos 1950, com ou sem passagem prévia pelos Cahiers du Cinéma, assim como para os mais antigos que eram admirados pelos novos, Bazin era mais ou menos assim como Jean-Claude Bernadet e Paulo Emílio Salles Gomes, os dois juntos, foram para os garotos que fariam o cinema novo brasileiro no início dos anos 1960.

O filme foi acolhido com gritaria e proibido como ‘desmoralizante’

Falta transcrever o que diz Georges Sadoul, o grande historiador.

Eis o que ele diz no seu Dicionário de Filmes, editado no Brasil em 1993 pela gaúcha L&PM:

“’Quero fazer um drama alegre. É a ambição da minha vida’, declarou Jean Renoir, antes de começar, com toda liberdade, o filme que de início seria uma livre transposição de Musseut e dos Caprichos de Marianne. Todos sabiam da guerra próxima, e Renoir ambicionava (a epígrafe de Beaumarchais testemunha isso) criar um equivalente ao Casamento de Figaro, uma comédia bem organizada para questionar coisas e pessoas sérias. O público dos Champs-Elysées não se enganou quanto ao sentido dessa ‘descrição exata dos burgueses de nossa época’ (J.R., 1939). Apresentado a 8 de julho de 1939 no Coliseu, o filme foi acolhido com gritaria, antes de ser proibido em setembro de 1939, pela censura militar, como ‘desmoralizante’.

zzregra9“Sequências famosas: a contratação de um caçador ilegal (J.C.) como guarda-caça; a chegada dos convidados ao castelo; a caçada em Sologne, com os batedores e o massacre dos coelhos; a festa no castelo, uma dança macabra e a entrada dos tiroleses. Alguns detalhes, depois de 1940, adquiriram um sentido simbólico mais profundo. Mas seria absurdo dizer, por exemplo, que ‘fazer os tiroleses, logo muniquenses, cantarem um hino patriótico, boulanjista, era estigmatizar a política francesa de 1938, enquanto a canção ‘Nos avons levé les pieds’ preconizava a derrota de 1940’. Parte desses episódios foi improvisada na atmosfera de brincadeiras entre companheiros, que era, de certo modo, a da direção.”

Não me agradam os filmes em que não sobre esperança alguma

Depois de transcrever opiniões de Truffaut, Tulard e Sadoul, eu deveria, se tivesse algum juízo, calar a boca. Mas eu sou desajuizado mesmo; sou capaz de fazer um post no dia em que Oscar Niemeyer morreu afirmando que ele é um imenso blefe. Então digo o seguinte, com minhas opiniões que não valem um centavo de guarani furado: A Regra do Jogo é um filme importantíssimo, sem sombra de dúvida. É um grande filme. No entanto, eu, pessoalmente, não gostei muito dele. Compreendo o contexto em que ele foi feito – e os trechos que transcrevi explicam perfeitamente todo o contexto. Mas a mim não agradam os filmes em que não sobra esperança alguma. Sem alguma coisa em que acreditar, não resta nada.

Por uma dessas coisas fortuitas de que é feita a vida, deu que vi A Regra do Jogo pela primeira vez na vida (um absurdo não ter visto antes!) exatamente após ver As Neves do Kilimanjaro, de Robert Guédiguian – um filme que nos enche de esperança, de alento. No filme de Guédiguian há apenas dois personagens que são filhos da puta. Todos os demais são boas pessoas.

Apesar de tudo, acho que o mundo está mais próximo do que mostra Guédiguian do que o retrato feito por Renoir.

Anotação em dezembro de 2012       

A Regra do Jogo/La Règle du Jeu

De Jean Renoir, França, 1939

Com Nora Grégor (Christine de la Cheyniest), Paulette Dubost (Lisette, sua camareira), Mila Parély (Geneviève de Marras), Odette Talazac (Madame Charlotte de la Plante), Claire Gérard (Madame de la Bruyère), Anne Mayen (Jackie, sobrinha de Christine), Lise Élina (a repórter da rádio),

Marcel Dalio (marquês Robert de la Cheyniest), Julien Carette (Marceau),

Roland Toutain (André Jurieux), Gaston Modot (Edouard Schumacher, o guarda-caça), Jean Renoir (Octave), Pierre Magnier (o general), Eddy Debray (Corneille, o mordomo), Pierre Nay (Monsieur de St. Aubin)

Argumento, roteiro e diálogos Jean Renoir

Com a colaboração de Carl Koch

Fotografia Jean-Paul Alphen, Jean Bachelet, Jacques Lemare e

Alain Renoir

Música Joseph Kosma

Produção Nouvelles Éditions de Films (NEF). DVD Versátil, Coleção Folha.

P&B,

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