O Eleito / El Elegido

Nota: ★★★☆

O Eleito/El Elegido, co-produção México-Espanha de 2016, nos vem 76 anos após os eventos históricos que relata, e 44 anos depois que Joseph Losey filmou O Assassinato de Trotsky, com Alain Delon no papel de Ramón Mercador e Richard Burton no de Liev Davidovich Bronstein.

Tem, assim, a desvantagem de não ser o primeiro, e necessariamente se expor à comparação com o filme anterior, de realizador e atores de imenso prestígio. Mas com o benefício de que o tempo fez com que os fatos ficassem mais conhecidos, mais pesquisados, mais esclarecidos.

Quando Losey lançou seu filme, em 1972, Ramón Mercader, o homem que assassinou Trotski em 1940, ainda estava vivo. Morreria em 1978, em Cuba, onde passou seus últimos anos, após ter recebido, na União Soviética, a Estrela de Herói, “a maior condecoração a que um comunista poderia aspirar”, como informa O Eleito, logo antes dos créditos finais.

Também estava viva em 1972 a socióloga americana Sylvia Ageloff, personagem fundamental dos eventos que levaram ao assassinato de Trotski. Sylvia, também como informa O Eleito ao final da narrativa, desapareceu da vida pública após o julgamento de Ramón Mercader, e nunca mais concedeu entrevista ou permitiu que a fotografassem. Morreu em 1995, aos 85 anos de idade, no Brooklyn, em Nova York, onde nasceu e passou praticamente toda sua vida.

O nome de Sylvia Ageloff sequer aparece no filme de Joseph Losey; há uma personagem que evidentemente é ela, mas seu nome aparece como sendo Gita Samuels (o papel de Romy Schneider) – muito provavelmente para evitar alguma ação judicial de Sylvia contra o filme e seus realizadores.

E ainda estava viva também, quando O Assassinato de Trotsky foi lançado, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que Lênin, Trotski e seus companheiros criaram a partir de outubro de 1917, após derrubar o czarismo. Como se sabe, viria a falecer de morte morrida, de falência múltipla dos órgãos e septicemia, após a queda de um de seus grandes símbolos, o Muro de Berlim, em novembro de 1989.

O Eleito, portanto, tem a imensa vantagem de contar a história com a perspectiva do tempo, já mais longe do calor do momento, das paixões envolvidas, com os fatos mais esclarecidos, deglutidos, analisados.

O assassino é mostrado como soldado fiel do Partido

Não é um filme sobre Liev Trotski. É, como bem indica o título, O Eleito, El Eligido, The Chosen nos países de língua inglesa, sobre o homem eleito, o homem escolhido para assassinar Trotski.

Não é, de forma alguma, um filme a favor do mandante do crime, o ditador Josef Stálin, e de seus comparsas e admiradores. Bem ao contrário: é abertamente anti-stalinista. Mostra Stálin como um ditador, um déspota cruel, e Trotski como um idealista, até mesmo um humanista, que procurava preservar as bases do regime instalado em 1917 e que Stálin havia abandonado.

E o Ramón Mercader que o filme mostra é um comunista absolutamente fiel às determinações do Partido – e, portanto, naquela época em que a ação se passa, de 1937 até 1940, fiel às ordens de Stálin.

Como tantos e tantos filmes sobre eventos reais, O Eleito abre com um texto que tenta explicar para o espectador o contexto histórico daquele momento. Eis o texto lido por uma voz em off, enquanto vemos imagens de cinejornalismo, cenas da Revolução Russa, dos seus líderes:

“Em 1917, triunfava a Revolução Russa. Junto a Lênin, Trotski foi um de seus principais protagonistas e ideólogos. Trotski foi o criador do Exército Vermelho, e conseguiu derrotar até 14 exércitos que tentavam acabar com o movimento revolucionário. Quando Stálin tomou o poder, Trotski não hesitou em enfrentá-lo e confrontar seus métodos criminosos, denunciando o que considerava ser uma traição à Revolução.”

Mostra-se neste momento a execução sumária de dois homens, seguramente acusados de traidores e contra-revolucionários pelo regime stalinista.

“Exilado e perseguido, Trotski e sua esposa Natália chegaram em 1936 ao México, único país do mundo que ousou dar-lhes asilo.”

Antes de chegar ao México, o casal passou pela Turquia, França e Noruega; o texto de introdução do filme, necessariamente sucinto, não tinha obrigação de mencionar isso.

Surge um letreiro: “México, 1937”. Terminam as cenas de cinejornalismo, começam as imagens do filme, feitas pelas câmaras do diretor de fotografia Guillermo Granillo (um senhor diretor de fotografia, é bom registrar desde já), começam os créditos inciais, e o narrador prossegue:

“De lá, impulsionou a criação da Quarta Internacional Comunista, um movimento que visava a recuperar o espírito original da causa revolucionária e derrotar o poder de Stálin. Em 1937, preocupado com a crescente influência internacional de seu oponente, Stálin deu uma ordem definitiva à GPU, sua implacável polícia secreta: assassinar Trotski.”

Policiais mexicanos protegiam a vida de Trotski

O fim do texto introdutório, de apresentação da conjuntura histórica, termina no momento em que surge na tela o título, em espanhol em letras grandes, em inglês em letras menores, El Elegido (The Chosen). Naquele momento, dois carros que estavam sendo mostrados em um belíssimo plano geral de um vasto campo no interior mexicano param junto de um pequeno bar perdido na imensidão despovoada. Deles desce um grupo de umas oito pessoas, que se senta para almoçar. São Trotski (Henry Goodman), sua esposa Natália (Frances Barber) e alguns amigos próximos.

Chega outro carro, com dois homens. Um deles está armado. No momento em que tenta se aproximar da mesa em que estão Trotski e seu grupo, é cercado por dois homens que o dominam e começam a espancá-lo.

Tudo preciso como um relógio suíço. Vemos o nome do diretor, o espanhol da Catalunha Antonio Chavarrías, terminam os créditos iniciais – e o roteiro magnífico, de autoria do próprio diretor e mais Dominic Harari e Teresa Pelegri, já mostrou para o espectador que agentes da polícia secreta do México estão sempre a postos para proteger a vida do exilado de prestígio mundial.

Na sequência seguinte, a segunda do filme e primeira após os créditos iniciais, ficamos conhecendo o coronel Leandro Sanchéz Salazar, o chefe da polícia secreta do México – o papel de Emilio Echevarría –, que chega para interrogar o homem armado que havia sido preso a poucos metros de Trotski, sua mulher e seus amigos.

O espectador verá, já nesta sequência e ao longo do filme, que o coronel Salazar é um profissional extremamente competente.

Assim como é extremamente competente no que faz o espanhol (da Catalunha assim como o diretor Chavarrías) Ramón Mercader, o protagonista da história que aparece logo em seguida, quando o filme está com 5 minutos e um letreiro informa “Espanha, 1937”.

Letreiros assim, com o onde e o quando, aparecem sempre que começa uma sequência passada em local diferente da anterior. O Eleito é um desses filmes que retratam eventos históricos e ajudam o espectador com essas indicações de lugar e data.

A sequência que começa com o letreiro “Espanha, 1937” mostra uma batalha na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Ramón Mercader (o papel de Alfonso Herrera), soldado das forças republicanas que enfrentam as franquistas, num ato ao mesmo tempo de insubordinação e coragem, sai das trincheiras para salvar seu oficial, o capitão Carles Vidal (Roger Casamajor).

Ramón Mercader é competente em tudo o que faz

Pouco depois, num momento de trégua, de intervalo entre batalhas, Ramón recebe ali no front a visita de sua mãe, Caridad Mercader (Elvira Mínguez, na foto acima) – uma mulher que absolutamente não é digna de seu prenome. Rica, comunista de primeira hora e de carteirinha, influente, respeitada pelos líderes do Partido, amiga de soviéticos em posições de comando, Caridad mexerá todos os pauzinhos possíveis para oferecer seu filho para a GPU, a polícia secreta de Stálin, como candidato à honrosa missão de matar “o traidor”.

E a partir daí o filme mostra o treinamento de Ramón Mercader, na União Soviética, que começa com duríssimos exercícios para resistir à tortura, e depois incluirá sua transformação em Jacques Monard, um milionário belga, um sujeito elegante, rico, fino, chique, um dândi, um hedonista, um ser absolutamente apolítico. Será como Jacques Monard que ele vai ficar – “acidentalmente”, é claro – conhecendo em Paris a jovem socióloga americana Sylvia Ageloff (o papel da jovem inglesa Hannah Murray).

A tarefa é conquistar o amor incondicional de Sylvia, uma abnegada trotskista, para, com o tempo, através dela, chegar perto do “traidor”.

Mercader se mostrará tão competente no papel de Jacques Monard quanto havia sido um soldado competente no front anti-fascista e um voluntário a aprender como resistir à tortura.

O protagonista é famosíssimo no México

O Eleito é um daqueles filmes perfeitos em todos os aspectos técnicos, artesanais. Fotografia esplêndida, reconstituição de época maravilhosa, figurinos de babar. É tudo admirável.

A direção é segura, firme, tranquila – Chavarrías, nascido em 1956, tem experiência como produtor, roteirista e realizador. O Eleito é seu nono longa-metragem.

Todo o elenco está muito bem. Talvez os espanhóis (e entre eles os catalães) mais puristas estranhem a escolha de um ator mexicano para fazer Ramón Mercader – Alfonso Herrera é da Cidade do México, onde nasceu em 1983. Não tenho condições de saber se ele tentou fazer um sotaque catalão, mas a verdade é que ele aparece mais tempo em cena como o belga Jacques Monard do que como o espanhol da Catalunha Ramón Mercader. E, como se comunica com a americana Sylvia e as pessoas que cercam Trotski em inglês, essa língua que virou um esperanto naturalmente, o fato de ser mexicano não interfere em nada na sua atuação.

Não conhecia esse Alfonso Herrera, mas o IMDb diz que ele é “um dos talentos latino-americanos mais conhecidos”, com tremendo sucesso na música – participou da banda RBD, que ganhou 89 prêmios, incluindo o de melhor banda internacional nos prêmios da Billboard Latin American – e como ator de TV, cinema e teatro.

A obediência cega ao Partido, ao líder, esse horror

Para qualquer pessoa que tenha lido O Homem Que Amava os Cachorros, o extraordinário romance do cubano Leonardo Padura, é impossível ver este filme sem pensar no livro. Não há, nos créditos do filme, nem nos iniciais nem nos finais, qualquer menção a Padura e a seu romance, mas seguramente, certamente o livro foi uma das referências para a elaboração do roteiro, por maior e mais ampla que tenha sido a pesquisa feita para reconstituir a vida de Ramón Mercader. Porque tudo o que foi escrito sobre a vida de Mercader foi lido por Padura para escrever seu romance – um amplo painel histórico que relata com grande fidelidade aos fatos as trajetórias tanto de Liev Trotski no exílio quanto do homem escolhido para assassiná-lo.

O Homem Que Amava os Cachorros começa com a transcrição do telegrama da agência de notícias soviética Tass de 22 de agosto de 1940 noticiando a morte de “Leon Trotski em consequência de uma fratura no crânio, resultante de um atentado perpetrado no dia anterior por uma pessoa do seu círculo mais próximo”, e em seguida com a transcrição de parte “do interrogatório a que, na noite de sexta-feira, 23, e na madrugada de sábado, 24 de agosto de 1940, o coronel Leandro Sánchez Salazar, chefe do serviço secreto da Cidade do México, submeteu Jacque Mornard Vandendreschs, ou Frank Jacson, presumível assassino de Leon Trotski”.

(Um parênteses sobre a grafia do nome do líder comunista. Usei, nesta anotação, a grafia usada na edição brasileira do livro de Padura, Trotski, com a letra i no final. Mantive a grafia Trotsky apenas na citação do título do filme de Joseph Losey, que é assim, com y. E mantive Leon, a tradução para o francês de Liev, nas citações entre aspas.)

O assassinato de Trotski é um fato importantíssimo na História, que, evidentemente, exerce imensa fascinação sobre quem já foi ou continua sendo comunista, ou tem interesse em conhecer melhor os grandes eventos históricos do século XX.

A revelação dos monstruosos crimes patrocinados por Stálin, feita a partir da chegada de Nikita Kruschev ao poder na União Soviética, em 1953, assim como a repressão ao levante da Hungria contra a dominação soviética, em 1956, teve o efeito de uma bomba atômica entre os comunistas ao redor do mundo. Intelectuais e artistas europeus passaram a contestar os desígnios dos PCs de seus países – como, para citar apenas dois exemplos ligados ao cinema, o escritor e roteirista espanhol Jorge Semprun e o ator francês Yves Montand. (Em A Guerra Acabou, de Alain Resnais, de 1966, com roteiro original de Semprun, Montand interpreta um velho combatente do Partido Comunista Espanhol que começa a questionar os ditames da direção do partido, ainda apegada ao stalinismo.)

A obediência cega aos ditames do Partido – essa coisa tão próxima do fundamentalismo, seja ela xiita, evangélica, petista, bolsonarista ou terraplanista – é discutida em O Eleito em diversas ocasiões, em belíssimos, fascinantes diálogos. Bem no início da narrativa, quando Caridad Mercader vai visitar o filho no front, ela diz para Ramón: – “Você está fazendo um bom trabalho. Mas as guerras não são ganhas apenas nas trincheiras, passando fome e frio. È por isso que vim. Acho que seria mais útil trabalhando conosco” – ou seja, junto à cúpula do PCE em Barcelona.

Ramón contesta: – “Não. Não acho. Meu lugar é aqui, na linha de frente”.

Ao que Caridad replica: – “Só o Partido sabe e decide onde um comunista é mais útil.”

Um antiquíssimo dito estabelece que “Roma locuta, causa finita”. Roma falou, a discussão acabou. O que o Vaticano decide, os cristãos seguem.

É idêntico ao que Caridad Mercader define para seu filho Ramón – o homem que iria assassinar Trotski: Partido locuta, causa finita.

Anotação em outubro de 2019

O Eleito/El Elegido

De Antonio Chavarrías, México-Espanha, 2016

Com Alfonso Herrera (Ramón Mercader)

e Hannah Murray (Sylvia Ageloff), Henry Goodman (Trotski), Julian Sands         (Kotov), Elvira Mínguez (Caridad Mercader), Emilio Echevarría (coronel Salazar), Frances Barber (Natalia Sedova), Alejandro Calva (Siqueiros), Roger Casamajor (capitão Carles Vidal), Javier Godino (Costa), Toby Harper (Robins), Alexander Holtmann (Sheldon), Brontis Jodorowsky (Otto), Gustavo Sánchez Parra (Balderas), Humberto Busto (Homero)

Roteiro Antonio Chavarrías, Dominic Harari, Teresa de Pelegri

Fotografia Guillermo Granillo

Música Arnau Bataller

Montagem Ernest Blasi

Casting Heidi Levitt

Produção Oberón Cinematográfica, Alebrije Cine y Video, Crea SGR, Generalitat de Catalunya – Departament de Cultura, Institut Català de les Empreses Culturals (ICEC), Instituto de la Cinematografía y de las Artes Audiovisuales (ICAA). Distribuição Netflix.

Cor, 125 min (2h05)

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Título nos EUA: The Chosen

 

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