Amores Parisienses / On Connaît la Chanson

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Nota: ★★★½

Nos deliciosos 120 minutos de On Connaît la Chanson, no Brasil Amores Parisienses, de 1997, mestre Alain Resnais mostra uma espécie de quadrilha drummondiana. Com música, muita música, bem mais de uma dezena de finos exemplares da chanson française.

É assim: Simon (André Dussollier) está perdidinho de amor por Camile (Agnès Jaoui), que sequer percebe isso e está começando a namorar Marc (Lambert Wilson), que acontece de ser o patrão de Simon numa agência imobiliária, que está atendendo naquele momento dois clientes: Odile (Sabine Azéma), que é irmã de Camile, e Nicolas (Jean-Pierre Bacri), que é um hipocondríaco e no passado foi muito amigo de Odile, que está casada com Claude (Pierre Arditi).

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Essa quadrilha drummondiana, a trama do filme, o roteiro, foram criados por Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri (os dois na foto acima), que são casados na vida real e fizeram vários filmes juntos, e são amigos de Alain Resnais e Sabine Azéma, que foram casados na vida real de 1998 – um ano após o lançamento deste filme – até a morte do cineasta genial, em março de 2014.

Vários dos atores do filme – André Dussollier, Lambert Wilson, Pierre Arditi, além da própria Sabine Azéma – trabalharam sob a direção de Resnais em diversos filmes.

É tudo uma quadrilha drummondiana. Resnaisiana.

E com música. Muita música.

O general nazista acaba de receber um telefonema furioso de Hitler – e aí dubla Josephine Baker!

A ação se passa nos dias atuais, quer dizer, os dias atuais de quando o filme foi feito, 1997, mas na primeira sequência, após os deliciosos créditos iniciais, ilustrados com desenhos de corpos montados com fotinhas dos principais atores, vemos – horror! – uma grande bandeira nazista. Um general nazista, Von Choltitz (Götz Burger) está ao telefone, recebendo uma ligação de Adolf Hitler, e o ditador está irado. Exige que Von Choltitz cumpra suas ordens e toque fogo em Paris. “Pela última vez” – ouvimos a voz do ditador berrar ao telefone –, “Paris tem que ser destruída! Em 24 horas!”

O general Von Choltitz põe o telefone no gancho e encara os membros de sua equipe, que o fitam com pavor estampado nos semblantes.

E então há um close-up do general Von Choltitz – e ele começa a cantar uma canção francesa!

Quer dizer, o ator que interpreta o general não canta a canção. A canção vem numa voz que não tem nada a ver com a do ator, nem de um general – uma voz fininha, fininha, aguda.

Götz Burger está dublando – e dublando tremendamente bem, os movimentos da boca perfeitamente sincronizados com o som – a gravação original de uma velha, conhecida canção, “J’ai deux amours”, de Vincent Scotto, Georges Koger e Henri Varna, com Josephine Baker, de 1930!

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Corta, e vemos que uma guia turística – Camile, a personagem interpretada por Agnès Jaoui – está levando um grupo de turistas a locais históricos de Paris. Naquele momento, ela está mostrando exatamente o prédio em que, durante a Ocupação, na Segunda Guerra Mundial, o alto comando alemão se instalou. Foi ali, diz a guia, que o general Von Choltitz recebeu o ultimato de Hitler – um ultimato que, como se sabe, ele não obedeceu.

Grandes clássicos da canção francesa, atores que são o crème de la crème

Entre os turistas que seguem Camile está Simon-André Dussollier (na foto acima), que absolutamente não é turista – é simplesmente apaixonado pela guia, e sempre que pode foge do trabalho na agência imobiliária para participar dos grupos, para ouvir a voz de sua amada.

Daí a algum tempo, veremos Simon-André Dussollier vestido em uniforme de gala da Guarda Republicana, imaginando-se desfilando junto com a tropa, e cantando a plenos pulmões os versos de Pierre Delanoë para a melodia quase marcial de Gilbert Bécaud na canção “Nathalie”. Quer dizer: André Dussollier dubla – com perfeição – a voz forte, poderosa de Bécaud. O narrador de “Nathalie” – a canção é de 1964, auge da Guerra Fria – é um francês em visita a Moscou, que está apaixonado pela russa que guia um grupo de turistas pela Praça Vermelha e outros locais históricos de Moscou. No final, o narrador sonha com o dia em que Nathalie irá visitar Paris, e seria ele, então, que serviria de guia para aquela russa linda.

On Connaît la Chanson é todo assim: vamos vendo momentos do dia-a-dia daquele grupo de personagens, e volta e meia os personagens começam a dublar belas chansons françaises. As letras se encaixam bem na trama, na fala dos personagens, como se tivessem sido escritas para o filme.

Diversas das músicas são clássicos, e são cantadas por gente importante da música francesa das últimas décadas. Os personagens são simpáticos, interessantes, a trama que entrelaça suas vidas é gostosa – e aquele grupo de atores é o crème de la crème do cinema francês. Não poderia ser diferente: o filme é absolutamente encantador, charmoso, delicioso, apaixonante. (Na foto abaixo, Agnès Jaoui e Sabine Azéma.)

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Para citar só algumas das canções que entram no filme, além das duas citadas acima:

* “Paroles, Paroles”, de Leo Chiosso, Giancarlo Del Re e Gianni Ferrio, com Dalida e Alain Delon;

* “Résiste”, de Michel Berger, com France Gall:

* “Ce n’est rien”, de Etienne Roda-Gil e Julien Clerc, Julien Clerc;

* “J’aime les filles”, de Jacques Dutronc e Jacques Lanzmann, com Jacques Dutronc;

* “Et moi, dans mon coin”, de e com Charles Aznavour;

* “Quoi”, de Guido De Angelis e Maurizio De Angelis, versão francesa de Serge Gainsbourg, com Jane Birkin.

Vemos as pequenas fraquezas, os pequenos equívocos que cometemos a cada dia

Alain Resnais estava com 75 anos quando fez este filme alegre, bem humorado, pra cima, alto astral. Acho isso absolutamente fascinante.

Há sutis, interessantes, fascinantes observações sobre o comportamento humano, em On Connaît la Chanson. As pequenas fraquezas, os pequenos equívocos, as pequenas besteiras que cometemos a cada dia em nossas vidas.

Por exemplo: Odile comete uma ação desagradável no seu trabalho. Recusa-se a dar um posto de trabalho a um jovem que parecia promissor. Depois, por uma dessas coincidências de que é feita a vida, julga ter encontrado, por mero acaso, o pai do rapaz, que conta que o filho está para ser pai, e está desempregado há muitos anos, mas agora, finalmente, tinha um emprego em vista. Arrependida, mortificada, Odile fará uma série de gentilezas para o filho daquele senhor que encontrou na rua – para depois descobrir que havia se enganado, que o filho do homem não era o rapaz a quem ela não dera o emprego.

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Outro exemplo: apesar de cortejada por Simon, Camile irá se interessar por Marc, o personagem de Lambert Wilson (na foto acima), que tem boa pinta, é mais jovem que o outro. Um pequeno imenso erro: o tempo mostrará que Marc é um absoluto mau caráter (aliás, o único mau caráter entre os personagens centrais da trama), enquanto Simon é gente finíssima.

E então mestre Resnais nos mostra esses pequenos equívocos, fraquezas, besteiras de que somos todos capazes. Mas faz isso com um olhar simpático para com aqueles personagens, um olhar compadecido, gentil. De uma maneira bem humorada, leve, agradável.

A narrativa é de uma simplicidade franciscana, uma clareza cristalina. Não há fogos de artifício. Aos 75 anos, inovador desde os anos 50, mestre Resnais não precisava, absolutamente, provar mais coisa alguma a ninguém.

Podia – como fez em seus últimos filmes – apenas celebrar a vida, os amores, o prazer de existir.

O filme ganhou sete Césars e teve 2,67 milhões de espectadores na França

On Connaît la Chanson venceu o César, o Oscar do cinema francês, em sete categorias, inclusive a de melhor filme. André Dussollier ganhou o prêmio de melhor ator, Jean-Pierre Bacri o de ator coadjuvante, Agnès Jaoui o de melhor atriz. O casal Jaoui-Bacri levou o de melhor roteiro, e o filme levou ainda os prêmios de melhor som e melhor montagem.

Estranhamente, ou ironicamente, o próprio Resnais foi indicado ao César de melhor diretor mas não levou o prêmio.

Algumas informações sobre o filme e sua produção, tiradas do site AlloCine, especializado em cinema francês:

* On Connaît la Chanson teve uma excepcional bilheteria na França: 2,67 milhões de ingressos vendidos, um número altíssimo para qualquer produção, ainda mais para um filme dessa qualidadade, desse gabarito. Na verdade, essa comédia romântico-musical foi o maior sucesso do gênio Resnais em sua própria pátria. No entanto, há um dado surpreendente no AlloCine, que me espanta: Hiroshima, Mon Amour teve 2,2 milhões de ingressos em 1959. Diacho: como tinha francês inteligente naquele tempo!

zzconnait4* Esta foi a segunda vez que mestre Resnais filmou um roteiro escrito pelos jovens Jaoui-Bacri. É do casal o roteiro do díptico Smoking e No Smoking, lançado em 1993. Só que o roteiro daqueles dois filmes não era original, e sim baseado em uma peça do inglês Alan Ayckbourn, Intimate Exchanges. O roteiro de On Connaît la Chanson foi o primeiro escrito pela dupla para o cinema a partir de uma trama original criada por eles, que até então haviam escrito apenas peças para o teatro.

* Três anos depois deste filme, Agnès Jaoui estrearia seu primeiro longa-metragem como diretora, O Gosto dos Outros. Seu primeiro trabalho como diretora foi o trailer deste On Connaît la Chanson!

* Nos créditos iniciais, é dito que o filme é em homenagem a Dennis Potter (1935-1994). Dennis Potter foi um roteirista, produtor e diretor inglês, que chamou a atenção de Resnais por incluir canções populares no meio de suas produções.

* A única atriz do filme que canta com sua própria voz é Jane Birkin, a inglesa que trabalhou com Michelangelo Antonioni em Blow Up e depois se casaria com Serge Gainsbourg, da união deles dois resultando Charlotte Gainsbourg. Jane Birkin aparece em apenas uma sequência, no papel da mulher de Nicolas-Jean-Pierre Bacri. Mas na verdade ela também dubla, como todos os demais atores. Dubla-se a si mesma, já que a gravação original da canção   “Quoi” havia sido feita 12 anos antes do filme.

Mestre Renais prova que o grande cinema não precisa ser chato

Diz, ao final do texto, o Guide des Films de outro mestre, Jean Tulard: “Um filme ‘de canções’, que encanta pela pertinência de seu propósito – o jogo de aparências – mesmo se por trás do otimismo de fachada se adivinha uma profunda melancolia.”

Não há como não respeitar o Guide de Tulard – e que há melancolia, ah, é claro que há.

Mas obra de arte, para ser obra de arte, tem que ser aberta. Cada um interpreta como quiser.

Para mim, On Connaît la Chanson é uma das mais maravilhosas provas de que o bom cinema não tem que ser chato e achar o mundo todo uma merda horrorosa e sem saída.

Para mim, mestre Alain Resnais, com seu profundo amor à vida, depois da maturidade, é a prova de que o grande cinema não precisa ser chato, pentelho.

A vida é curta – e/mas pode ser boa. Claro que ela é boa em especial para os gênios que até aos 90 e tantos anos fazem obras maravilhosas como este filme – mas por que não também não poderia ser boa também para nós, pobres seres humanos normais, gente como a gente, ordinary people, como os personagens deste filme esplêndido?

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Anotação em fevereiro de 2014

Amores Parisienses/On Connaît la Chanson

De Alain Resnais, França-Suíça-Inglaterra-Itália, 1997.

Com Pierre Arditi (Claude), Sabine Azéma (Odile Lalande), Jean-Pierre Bacri (Nicolas), André Dussollier (Simon), Agnès Jaoui (Camille Lalande), Lambert Wilson (Marc Duveyrier), Jane Birkin (Jane), Jean-Paul Roussillon (o pai), Nelly Borgeaud (a médica), Götz Burger (Von Choltitz), Jean-Pierre Darroussin (o jovem com o cheque)

Argumento e roteiro Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri

Fotografia Renato Berta

Música original Bruno Fontaine

Montagem Hervé de Luze

Produção Arena Films, Caméra One, France 2 Cinéma, Vega Film, Greenpoint Films, Canal+.

Cor, 120 min

R, ***1/2

 

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