Eis aí um filme extremamente surpreendente, ousado – e inusitado, singular. Três mulheres sequestram um homem e o submetem, durante 12 dias, a seguidos abusos sexuais.
O Livro das Revelações é uma produção australiana de 2006. A diretora Ana Kokkinos, co-autora do roteiro, ao lado de Andrew Bovell, não evita explicitudes – bem ao contrário. Consegue, no entanto, não cair na apelação, no quasepornô. Transita sobre o fio da navalha – e deixa o espectador atento, estupefato, ansioso pelo desdobramento da trama até o último minuto.
E o último minuto, aliás, é brilhante.
O bailarino sai para comprar cigarros – e desaparece
O protagonista, Daniel (Tom Long), é um bailarino, um rapaz aí de uns 30 e poucos anos, belo físico, bela estampa. Havia sido descoberto por uma coreógrafa importante, respeitada em sua cidade, Melbourne, Isabel (o papel de Greta Scacchi, o único nome do elenco conhecido aqui). Veremos que Isabel desenvolveu por Daniel um profundo afeto, como se o rapaz fosse seu filho.
Daniel vive há 3 anos com a estrela da mesma companhia de dança, Bridget (Anna Torv). Um dia, sai para comprar cigarros para a namorada – e não reaparece. A namorada e Isabel não têm nenhuma idéia do que possa ter acontecido. Isabel pede ao ex-marido, Olsen (Colin Friels), um policial, que tente descobrir o paradeiro do rapaz.
A companhia é obrigada a escalar outro bailarino para o papel desempenhado por Daniel. Bridget se sente abandonada, traída.
Ele tenta dar queixa na polícia – e os policiais riem dele
De uma caminhonete, Daniel é lançado num terreno baldio, com os olhos vendados; haviam aplicado nele uma dose de sonífero. Quando volta a si, caminha até um bar, pede uma cerveja e pergunta a data. Só aí faz as contas: tinha passado fora 12 dias.
Chega em casa esgotado, sob profundíssima angústia, imenso stress. Não consegue dizer para a namorada o que havia acontecido.
Tenta voltar aos ensaios da companhia de dança – mas simplesmente não consegue.
Chega a tentar dar queixa na polícia. Vai a uma delegacia, pede para ser ouvido numa sala onde não haja outras pessoas. Consegue balbuciar: “Um amigo meu foi sequestrado por três mulheres”. Os policiais se entreolham, e começam a rir. Um deles diz: “Sujeito de sorte!”
Só a partir daí, então, em flashbacks, será mostrado como foram os 12 dias de seqüestro e contínuos abusos.
As três seqüestradoras cercaram Daniel em uma rua deserta, e deram-lhe uma injeção com um sonífero. Quando ele acordou, estava deitado no chão de um cômodo fechado, com os braços e pernas presos a correntes, por sua vez atadas, nas pontas opostas, a argolas fixadas nas paredes.
Quando elas surgem diante dele, usam longos vestidos pretos até o chão, e têm os rostos quase inteiramente cobertos.
Há uma líder, a mais raivosa e brutal. Uma das duas subordinadas é capaz de executar as brutalidades a sangue frio. A terceira é, visivelmente, menos feroz e violenta que as demais – parece até se apiedar do torturado, mas é incapaz de se rebelar contra a líder.
A vítima tenta caçar suas seqüestradoras
Totalmente transtornado depois dos 12 dias de abuso, incapaz de voltar a conviver com a namorada, incapaz de voltar a dançar, Daniel irá se dedicar à tentativa de encontrar suas torturadoras. Não havia visto os rostos delas, mas havia tido oportunidade de reparar bem alguns sinais particulares. A líder tinha cabelos longos, castanho-claros, usava esmalte vermelho vivo nas unhas compridas e tinha uma pequena tatuagem acima dos seios. A outra violenta tinha uma grande tatuagem nas costas, logo acima da bunda.
Com essas poucas informações, o pobre Daniel vai à caça das torturadoras.
Elas o conheciam, sabiam seu nome, sabiam que ele era um dançarino de alguma fama. A líder havia obrigado Daniel a dançar para ela, depois de várias sessões de tortura.
Atenção: a partir daqui, spoiler. Quem não viu o filme deve parar de ler
O Livro das Revelações é muito bem realizado, em todos os quesitos. Para alguns (penso, por exemplo, na minha amiga Jussara Osmond), poderá talvez até parecer apelativo, forte demais, violento demais. Forte e violento ele é, sem dúvida. Cheguei até, em alguns momentos mais fortes e violentos, a pensar que ele é apelativo. Mas não é, não. Não é. É um filme sério. O final extraordinário comprova isso.
O que, afinal, essa diretora Ana Kokkinos quis dizer?
Não vou, evidentemente, revelar o final da história. No entanto, embora isso seja de alguma maneira um spoiler, adianto, para quem quiser ler a partir daqui, que este é (ou ao menos me pareceu ser) um filme contra a Lei do Talião. Contra o olho por olho, dente por dente. Contra a vingança cega, a tentativa de Justiça pelas próprias mãos.
Um filme que defende o oposto de coisas do tipo Desejo de Matar (1974), Olho por Olho (1996).
Um filme que quer dizer o mesmo que as obras do grande cineasta Robert Guédiguian, como Lady Jane (2008) e As Neves do Kilimanjaro (2011), ou Em Mundo Melhor (2010), da dinamarquesa Susanne Bier.
Guédiguian encerra Lady Jane com um provérbio da terra de seus antepassados, a Armênia, que vem do século XI, mil anos atrás: “Aquele que busca se vingar é como a mosca que bate contra o vidro sem ver que a porta está escancarada”.
O filme não explica muita coisa – quer fazer o espectador pensar
Procurar a vingança com as próprias mãos só leva ao desatino, à destruição, à aniquilação – mesmo quando o crime é inominável, absurdo, violentíssimo, hediondo, como o cometido pelas três mulheres da história apavorante.
Tudo bem. Essa moral da história fica absolutamente clara na bela sequência final do filme.
Mas o que quis a diretora dizer ao escolher essa história específica para defender essa bela tese?
Por que três mulheres de meios, de posses, de boa cultura, de uma grande cidade de país civilizado resolvem torturar um homem, submetendo-o a seguidos e violentos abusos sexuais?
O Livro das Revelações não revela a motivação delas. Creio que deixa para o espectador pensar, decidir.
(Um filme que faz o espectador pensar é sempre bem-vindo, nesta era de tanta porcaria.)
Seriam elas feministas fundamentalistas, querendo submeter um exemplar da beleza masculina ao pavor que sentem as mulheres abusadas, estupradas?
Talvez, talvez. Sim: uma vingança contra os machos. Olhe aí, seu filho da mãe, isso é o que gente do seu sexo faz contra o nosso, a toda hora, em todos os lugares do planeta. Então sofra, seu filho da mãe, seu representante desse gênero calhorda, violento, abusador.
Mas… Para que isso? Por que, para que ferrar a vida de um homem que não tem culpa específica alguma no cartório, que jamais havia violentado uma mulher? Apenas e tão somente porque ele é do gênero masculino?
Não sei. Mas insisto: um filme que deixa o espectador com perguntas, que faz o espectador pensar, ah, esse é um bom filme.
A diretora diz que não tem interesse algum em filmar em Hollywood
Diz o IMDb que Anastasia Kokkinos nasceu em 1958, em Melbourne, a cidade que retrata neste filme, uma das duas maiores de seu país, uma metrópole de mais de 4 milhões de habitantes. Terminou uma faculdade de Direito em 1982 e trabalhou como advogada durante 9 anos, até que, em 1991, matriculou-se numa escola de cinema. Seu trabalho de conclusão do curso, o curta-metragem Antamasi (1992), foi apresentado em diversos festivais.
O IMDb traz a seguinte frase dela: “Recebi vários convites de ir para os Estados Unidos depois de Head On (seu filme de 1998, o segundo dirigido por ela, aparentemente inédito no circuito comercial brasileiro). Mas não virei uma realizadora para ir para Hollywood. Sou apaixonada por filmes e pela possibilidade de contar histórias que são importantes para mim. Acho que Hollywood seria chocante. Eles têm uma idéia completamente diferente sobre o que os filmes querem dizer.”
(Faço rápido parênteses aqui. Na minha humilde opinião, essa declaração me parece um tanto estranha, um tanto falsa, um tanto marqueteira. Uma australiana – ou neo-zelandesa, ou georgiana, ou moldaviana, ou boliviana, ou ugandesa, não importa – recusar convite para filmar em Hollywood me parece tão incompreensível quanto um bom jornalista de Rio Branco ou Macapá ou Boa Vista recusar um convite para trabalhar no Estadão, na Folha ou no Globo, na Veja, na Época. Como diz Milos Forman: se ele fosse um arquiteto uns 3 mil anos atrás, gostaria de ir para o Egito construir pirâmides; como é diretor de cinema, foi para Hollywood. Não é necessário se entregar a Hollywood. Pode-se, perfeitamente, trabalhar na Meca do cinema e voltar para seu próprio país, como fizeram, só para dar alguns exemplos poucos, Jean Renoir, Fritz Lang, Jacques Demy, Walter Salles, Fernando Meirelles. Até mesmo Serguei Mikhailovich Eisenstein visitou Hollywood e chegou a projetar fazer lá um filme.)
O filme se baseia em um romance escrito pelo inglês Rupert Thompson, lançado em 2000. Diz sobre o livro a Wikipedia em inglês que o romance é singular pelas descrições detalhadas de um fora do normal caso de estupro de mulher sobre homem, e que a ação se passa em Amsterdã.
Pois é. Essa moça Ana Kokkinos pode ser uma grande marqueteira dela mesma. A rigor, nada contra cineastas marqueteiros de si próprios: Alfred Hitchcock e Federico Fellini são tão competentes marqueteiros de si próprios quanto grandes realizadores. Mas o fato é que ela fez um filme fascinante. Que deixa o espectador perplexo.
Que maravilha que haja filmes que nos deixam perplexos.
Anotação em março de 2014
O Livro das Revelações/The Book of Revelations
De Ana Kokkinos, Austrália, 2006
Com Tom Long (Daniel), Greta Scacchi (Isabel), Anna Torv (Bridget), Colin Friels (Olsen), Deborah Mailman (Julie), Zoe Coyle (Renate), Nadine Garner (Margot), Olivia Pigeot (Bernadette), Ana Maria Belo (Sally), Belinda McClory (Jeanette), Sibylla Budd (Deborah)
Roteiro Ana Kokkinos e Andrew Bovell
Baseado no romance de Rupert Thomson
Fotografia Tristan Milani
Música Cezary Skubiszewski
Montagem Martin Connor
Produção Film Finance, Wildheart Zizani.
Cor, 118 min
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Estou realmente feliz por ter encontrado este comentário sobre o filme. A muitos anos atrás assisti ao trailer do filme (costume antigo de quando alugava dvds) por um acaso, e desde então – sem ter anotado o nome – me esqueci do titulo mas não do dito trailer… hahaha
ótimo website
Que declaração pobre sobre a diretora não querer ir pra Hollywood.ĺll Você deveria saber que vários diretores e atores renomados não tem vontade nenhuma de se vender a esse sistema de clichês. É óbvio que Anastásia kokkinos não quer se render a essa indústria vendida em que o artista não tem opinião própria. Não chame alguém de marqueteiro se você não reconhece sua arte