O Milagre / The Wonder

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 12/2022.)

Em seu filme de 2022, The Wonder, no Brasil O Milagre, uma co-produção Irlanda-Reino Unido-EUA, o diretor chileno e agora internacional Sebastián Lelio abre e fecha a narrativa em um estúdio de cinema. Para realçar, ressaltar, enfatizar que a história contada é isso, uma história fictícia, uma invenção da mente humana.

Mas – nos diz uma moça no estúdio – as pessoas que viveram a história acreditam plenamente nela. Piamente – e o fato de elas acreditarem e a referência a uma coisa pia são de fundamental importância. Primeiro, porque a história é bastante fantástica, incrível, inacreditável. E segundo porque o advérbio “piamente” remete a modo piedoso, devoto, religioso.

É de religião que a história trata. De pessoas que ficam fanatizadas por religião. De religião levada às raias da loucura, da insanidade.

– “Olá. Este é o começo”, diz uma voz feminina, bem na abertura do filme, logo após aparecerem na tela os nomes das companhias produtoras, dos dois principais atores adultos, Florence Pugh e Tom Burke, e do diretor Sebastián Lelio, enquanto vemos um estúdio em que há uma casa em cima de vigas de metal.

– “O começo de um filme chamado O Milagre”, lemos na legenda. Claro que a voz diz “a film called The Wonder”. E ela prossegue, enquanto a câmara vai se virando suavemente para a esquerda, mostrando a amplidão do estúdio:

– “As pessoas que você vai conhecer, os personagens, acreditam em suas histórias com total devoção. Nós não somos nada sem histórias, por isso convidamos você a acreditar nesta. Estamos em 1862. Saímos da Inglaterra para a Irlanda.”

Nesse momento, à esquerda da tela, começamos a ver algo que está sendo encenado naquele estúdio. Um compartimento do que, veremos, é um navio.

“A Grande Fome ainda é uma assombrosa realidade, e os irlandeses responsabilizam os ingleses por essa tragédia. Ali, vemos uma enfermeira. Uma enfermeira inglesa, viajando sozinha. E nossa jornada se inicia com ela.”

Uau! Que abertura de filme, meu Deus do céu e também da Terra. Forte, inesperada, impactante.

Na verdade, O Milagre/The Wonder trata de um fenômeno que, apesar de incrível, aconteceu na vida real – numerosas vezes. Mas só vou falar disso bem mais adiante.

A tarefa: vigiar a garota que não come

A narradora se cala – só voltará a falar daí um bom tempo. Vemos a enfermeira inglesa desembarcando do navio – seguramente em Dublin, embora não haja letreiro para especificar o que não é mesmo necessário especificar. Vemos a enfermeira num trem, e depois em uma carroça, por uma pequena estrada do interiorzão da Irlanda.

Não chegamos sequer aos 5 dos 108 minutos de filme e ela está diante do dono de uma taverna e hospedaria do lugarejo. – “Você é a enfermeira inglesa”, diz ele.

Ela: – “Por quê?”

Ele: – “Porque eu estou esperando uma freira e uma enfermeira, e você não é freira.”

Adorei esse exemplo de lógica irlandesa.

A enfermeira Elizabeth Wright (o papel dessa impressionante Florence Pugh) havia sido contratada para ir até aquele lugarejo perdido no interiorzão da Irlanda para um trabalho que ela mesma não sabia exatamente qual era. O contratante era um comitê de cinco das pessoas importantes do lugarejo. O nobre da região, Sir Otway (Dermot Crowley). O médico, dr. McBrearty (Toby Jones). O padre Thaddeus (Ciarán Hinds). Aquele dono da taverna e da hospedaria, Seán Ryan (David Wilmot).

O trabalho da enfermeira Elizabeth e da freira, a irmã Michael (Josie Walker) será ficar junto da garotinha Anna O’Donnell (o papel de Kíla Lord Cassidy), em turnos de oito horas cada. Ficar junto dela. Vigiar. Fazer vigilância.

(Vigiar, fazer vigilância são os termos usados nas legendas em Português na Netflix. Em inglês é usado o verbo to watch, que é isso mesmo – observar, vigiar, prestar atenção a.)

Na primeira reunião de Elizabeth com seus contratantes, ela, de pé ao lado da irmã Michael, pede para falar:

– “Não me disseram exatamente o que há de errado com a garota.”

A resposta é: – “Absolutamente nada”.

Ao que Elizabeth retruca: – “Muito bem. Então retornarei para a Inglaterra.”

E aí os membros do comitê são forçados a dar alguma explicação à enfermeira e à freira que haviam contratado para vigiar, observar a garota: – “Anna O’Donnell não come.”

– “Se um paciente no hospital se recusa a comer, usamos a força”, diz Elizabeth.

– “Não é para forçar a menina”, diz alguém do comitê. “Nem interrogar ou atormentar.”

E o dr. McBrearty se apressa a acrescentar: – “Mas, caso ela peça comida, não se deve negar.”

– “A garota tem vivido miraculosamente sem comida desde o dia seu 11º aniversário”, diz Sir Otway.

– “O objetivo da vigilância” – diz um dos membros – “é determinar exatamente como Anna O’Donnel tem sobrevivido sem se alimentar.”

A enfermeira Elizabeth pergunta quanto tempo faz que a garota comeu pela última vez. Quando o médico afirma que são quatro meses, ela afirma, categoricamente: – “Isto é impossível”.

A garota tem certeza de que o Maná do Senhor  a alimenta

Quando, com a certeza incutida nela pela lógica, pelo senso comum e pelos fundamentos científicos que aprendeu no curso de enfermagem, Elizabeth Wright-Florence Pugh afirma categoricamente “Isto é impossível”, estamos com 7 minutos de filme.

Os O’Donnel vivem numa casa afastada do vilarejo – pai, mãe e a garota Anna. Ele, Malachy (Caolán Byrne), é sujeito de poucas palavras e, quando fala, prefere o Gaélico ao Inglês. Ela, Rosaleen (Elaine Cassidy), também é fechada, de poucas palavras. Havia também um filho primogênito, que havia morrido alguns meses antes da chegada de Elizabeth ao vilarejo. Há também uma parente, Kitty (o papel de Niamh Algar), que, veremos, é aquela narradora da história.

A garota Anna é bonita, simpática, agradável. Quando Elizabeth a examina pela primeira vez, ela parece inteiramente saudável fisicamente.

A questão é a cabeça.

Anna está absolutamente convencida de que se alimenta do Maná do Senhor, de que não precisa de outros alimentos a não ser o espiritual. E se recusa terminantemente a saber de comer essas coisas materiais que fazem as pessoas sobreviverem.

O jejum é uma homenagem a Deus, a Jesus, aos santos que ela admira. Anna recita orações quase sem parar, compulsivamente.

Esse é o quadro que Elizabeth fica conhecendo, ao chegar, ao ficar com Anna nos primeiros dias. Com o tempo, ficará sabendo de outras coisas, uma delas gravíssima – mas aí de fato já não tem mais sentido eu ficar relatando a trama.

Houve dezenas de casos assim na vida real

Uma mocinha que acredita que pode viver só com o alimento espiritual. Uma comunidade que contrata freira e enfermeira para constatar. certificar que a garota de fato não se se alimenta de nada material. Enquanto via o filme, fiquei imaginando o que será que os autores dessa história incrível, inacreditável – essa fantasia – queriam dizer com aquilo. O que seria a metáfora que eu não conseguia compreender.

Só agora, ao ler sobre o filme, sobre os autores, fiquei sabendo que histórias assim aconteceram às dezenas na vida real! Há um termo em inglês para essas moças: “fasting girls”. Garotas em jejum. Nunca tinha ouvido falar nisso, jamais poderia imaginar que houve numerosos casos assim.

Aprendo com a Wikipedia:

Na era vitoriana (na segunda metade do século XIX, a época em que se passa a ação do filme), houve diversos casos de moças, em geral pré-adolescentes, que diziam serem capazes de sobreviver por longos períodos de tempo sem consumir qualquer alimento ou outro nutriente. Além de recusar comida, as fasting girls diziam ter poderes especiais, religiosos ou mágicos.

A habilidade de sobreviver sem nutrientes – continua a Wikipedia – foi atribuída a alguns santos durante a Idade Média, inclusive Catarina de Siena e Lidwina de Schiedam, e tida como um milagre e um sinal de santidade. Numerosos casos de fasting girls foram relatados no final do século XIX. Crentes tinham esses casos como milagres.

Em alguns casos, as fasting girls também exibiam a aparência de stigmata – feridas ou cicatrizes que aparecem em lugares correspondentes aos sinais da crucificação de Jesus Cristo, mãos, punhos e pés. Médicos, como foi o caso de Wlliam A. Hammond, descreveram o fenômeno como fraude ou histeria por parte das moças. O historiador Joan Jacobs Brumberg acredita que o fenômeno tenha sido casos de anorexia nervosa.

 Uau! Jamais soube de nada disso. Como sempre diz a Mary: a gente não sabe coisa alguma!

 Confesso, estupefato: vi o filme com a certeza de que aquela era uma história inventada pelos autores. Saída da imaginação fértil de ficcionistas.

Mas que nada! O filme cria situações e personagens inspirados em histórias que de fato aconteceram!

          Emma Donoghue, a autora, tem tido grande sucesso

A autoria deste The Wonder é assinada assim: Emma Donoghue e Sebastián Lelio e Alice Birch. Baseado no romance de Emma Donoghue.

Pelos critérios do Screen Writers Guild, o sindicato dos roteiristas, quando há uma conjunção “e” entre dois nomes, isso significa que o primeiro escreveu e o segundo reescreveu, ou no mínimo mexeu bastante. Assim, teríamos que Emma Donoghue teria escrito uma primeira forma do roteiro, adaptando o seu próprio livro para a linguagem cinematográfica. Em seguida o diretor Sebastián Lelio teria feito modificações no roteiro da autora – para, em seguida, essa Alice Birch dar a forma final na história e na maneira de apresentá-la em imagens.

Emma Donoghue. Tudo surgiu na cabeça dela.

Conta para nós a Wikipedia: Emma Donoghue (nascida em 24 de outubro de 1969) é uma dramaturga, historiadora literária, romancista e roteirista irlandesa-canadense. Seu romance de 2010 Room foi finalista para o Booker Prize e um best-seller internacional. Seu romance de 1995 Hood venceu o Stonewall Book Award, e Slammerkin, de 2000, venceu o prêmio Ferro-Grumley para ficção lésbica. O romance Room foi adaptado pela própria autora para o cinema, e o filme, Room, no Brasil O Quarto de Jack, deu a ela uma indicação para o Oscar de melhor roteiro adaptado.

O romance The Wonder foi lançado em 2016, e sobre ele Stephen King, o autor de tantos e tantos best-sellers de mistério e terror, escreveu: “Um page turner da velha escola com uma intensidade crepitante”. Page turner não tem uma tradução perfeita: é o livro cujas páginas a gente não consegue parar de virar.

Eis a sinopse do livro feita pela Amazon, que em geral faz ótimos resumos:

“Anna O’Donnell, de 11 anos, pára de comer, mas permanece milagrosamente viva e bem. Uma enfermeira, escolhida para investigar se ela é uma fraude, encontra um jornalista ansioso por uma reportagem… Passado nas Midlands da Irlanda nos anos 1850 (no filme fala-se 1862), The Wonder de Emma Donoghue – inspirado em numerosos casos de ‘fasting girls’ registrados na Europa e na América do Norte entre os séculos XVI e XX – é um thriller psicológico sobre a ameaça do assassinato de uma criança em câmara lenta diante de nossos olhos.”

Um filme admirável – e importante, necessário

O Milagre/The Wonder é um filme admirável.

As interpretações são belíssimas, todas – em especial das duas atrizes principais, essa espetacular Florence Pugh e a garota Kíla Lord Cassidy.

Florence Pugh é jovem demais: nasceu em 1996, em Oxford – em 2022, ano de lançamento deste filme, estava portanto com apenas 26 anos. Começou a carreira aos 18 anos, já como protagonista, em The Falling (2014), em que interpreta uma das duas adolescentes colegas em uma escola rígida. Entre 2014 e 2022, estrelou 29 filmes e/ou séries de TV e colecionou 38 prêmios, fora 90 indicações, inclusive ao Oscar de melhor atriz coadjuvante pela enésima refilmagem do romance de Louisa May Alcott Little Women, de 2019.

A garotinha Kila Lord Cassidy nasceu em 2009, em Londres – estava portanto com 13 quando o filme foi lançado. É filha da atriz Elaine Cassidy, que faz Rosaleen O’Donnell, a mãe de sua personagem. Antes de interpretar Anna O’Donnel, havia participado de dois filmes e uma série de TV.

Sua interpretação é impressionante. Anna no começo do filme parece de fato saudável – mas ela vai definhando a olhos vistos. Incrível: ele fica de igual para igual nas muitas sequências em que estão apenas ela e essa Florence Pugh premiadíssima.

Dois grandes atores, famosos, de extensa filmografia, fazem pequenos papéis – Toby Jones o do Drd McBrearty, o médico do lugarejo, e Ciarán Hinds o do padre Thaddeus. Me parece muito claro que a participação dos dois demonstra, à exaustão, que a produção deste filme era considerada importante pela comunidade cinematográfica das Ilhas Britânicas.

O chileno Sebastián Lelio, esse talento, construiu um interior da Irlanda em 1862 com precisão semelhante à com que o polonês Roman Polanski recriou o interior da Inglaterra mais ou menos naquela mesma época em Tess (1979), aquela maravilha esplendorosa. Fiquei pensando nisso depois que o filme terminou – e, diabo, comparar um realizador a Roman Polanski é um dos maiores elogios que pode haver.

Lelio é um dos grandes nomes do cinema chileno, ao lado de Pablo Larraín, que aliás é seu amigo e companheiro de trabalho – um costuma produzir os filmes do outro. Os dois têm em comum também o fato de

terem impressionado produtores americanos e britânicos com seus filmes feitos no Chile, e sido convidados para trabalhar do outro lado do Equador.

Depois de Uma Mulher Fantástica (2017), Oscar de melhor filme estrangeiro, Lelio foi convidado a refazer seu Gloria (2013) nos Estados Unidos – e daí surgiu Gloria Bell (2018), com Julianne Moore no papel que no original havia sido de Paulina García. E em 2017 ele dirigiu Desobediência/Disobedience, uma co-produção Irlanda-Reino Unido-Estados Unidos. Os mesmos três que se reuniram de novo em 2022 para produzir este O Milagre/The Wonder aqui.

Além de ser um bom filme, por suas qualidades artísticas todas, é um filme importante. É sempre necessário que bons filmes demonstrem que o fanatismo religioso é um horror, é criminoso – e é tudo o que as religiões a rigor condenam.

Estão aí tantas ações da extrema direita mundo afora, de Donald Trump a seu imitador neste nosso pobre país, passando pelos aiatolás do Irã, que apostam no fanatismo e tanto mal fazem às pessoas.

Toda arte que se faça para combater esse horror, para denunciar os perigos desse horror, é absolutamente necessária e bem-vinda.

Anotação em dezembro de 2022

O Milagre/The Wonder

De Sebastian Lelio, Irlanda-Reino Unido-EUA, 2022

Com Florence Pugh (Lib, Elizabeth Wright)

e Kíla Lord Cassidy (Anna O’Donnell, a garota),

Tom Burke (William Byrne, o jornalista),

Niamh Algar (Kitty O’Donnell / a narradora), Elaine Cassidy (Rosaleen O’Donnell, a mãe de Anna), Caolán Byrne (Malachy O’ Donnell, o pai de Anna), Toby Jones (Dr McBrearty, o médico do lugarejo), Ciarán Hinds (padre Thaddeus), Dermot Crowley (Sir Otway), Brían F. O’Byrne (John Flynn), David Wilmot (Seán Ryan), Ruth Bradley (Maggie Ryan), Josie Walker (irmã Michael)

Roteiro Emma Donoghue e Sebastián Lelio e Alice Birch       

Baseado no romance de Emma Donoghue

Fotografia Ari Wegner

Música Matthew Herbert

Montagem Kristina Hetherington

Casting Nina Gold

Desenho de produção Grant Montgomery  

Figurinos Odile Dicks-Mireaux

Produção Ed Guiney, Juliette Howell, Andrew Lowe, Tessa Ross, Element Pictures, Fís Éireann / Screen Ireland, House Productions, LSG Productions

Cor, 108 min (1h48)

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