Aconteceu Naquela Noite, O Galante Mr. Deeds, Horizonte Perdido e A Mulher Faz o Homem


Nota: ★★★★

Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2000: Nos últimos meses, a Columbia TrisStar lançou quatro filmes de Frank Capra (1897-1991), um dos mais fascinantes diretores da história do cinema. São, os quatro, obras-primas, realizados nos anos 30, quando os Estados Unidos viviam sob o impacto da Grande Depressão e às vésperas da Segunda Guerra Mundial – e o cineasta estava em seu período dourado. Ele já havia feito 21 longas, entre 1926 e 1932, mas foram estes quatro os filmes que o consagraram – e transformaram a Columbia em um dos grandes estúdios americanos.

Três deles são comédias, um (Horizonte Perdido) é um drama; as comédias são em torno de tipos absolutamente americanos, em cenários comuns de estúdio, e o drama é passado na China e no Tibete; mas todos têm roteiro e diálogos do mesmo autor, Robert Riskin (Capra e ele trabalharam juntos em oito filmes), e em todos transparece nítida uma mesma visão de mundo – um idealismo absoluto, uma crença em princípios básicos, uma fé profunda na bondade do homem comum e na sua capacidade de suplantar os problemas e enfrentar as instituições corrompidas. Todos tiveram imenso sucesso de público num país empobrecido, com a existência de legiões de desempregados tornando mais brutal o fosso entre a maioria e os riquíssimos.

A tal história do homem certo no momento certo.

O quadro simplifica o que Capra mostrou:

Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night) – 1934 O Galante Mr. Deeds (Mr. Deeds goes to town) – 1936 Horizonte Perdido (Lost Horizon) – 1937 A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington) – 1939
Casal central Clark Gable e Claudette Colbert Gary Cooper e Jean Arthur Ronald Colman e Jane Wyatt James Stewart e Jean Arthur
Tema Pobre X rica O Povo X os poderosos Utopia X realidade O Povo X os poderosos
Trama Herdeira milionária foge do pai para se casar; no caminho, encontra um jornalista de bons princípios que se dispõe a ajudá-la em troca da exclusividade da história. Apesar das diferenças imensas entre eles, se apaixonam. Rapaz interiorano de bons princípios herda fortuna de US$ 20 milhões deixada por tio e é levado para NY para recebê-la; suas experiências na cidade viram assunto de reportagens sensacionalistas feitas por uma repórter cínica que se faz passar por moça pobre. Ele tem que provar que não é louco para poder usar a herança na ajuda a fazendeiros pobres. Apesar das diferenças imensas entre eles, se apaixonam. Escritor e diplomata inglês e mais um pequeno grupo se perde em vôo na China e vai parar em Shangri-La, terra desconhecida, a utopia, o admirável mundo perfeito. O irmão do diplomata não consegue fugir à tentação de voltar para o mundo real e seu esquema de vida baseado na competição e na ambição. Rapaz interiorano de bons princípios é indicado para  mandato-tampão no Senado por grupo empresarial- político corrupto para não atrapalhar milionária transação ilegal envolvendo imóveis. Secretária cínica é encarregada de cuidar dele. Apesar das diferenças imensas entre eles, se apaixonam.
Conclusão A honestidade do herói encanta e seduz a herdeira e o pai milionário, e o amor triunfa. A honestidade do herói encanta e seduz a jornalista cínica e os juízes céticos, derrota os advogados corruptos e o bem triunfa. Há os que não conseguiriam viver em uma sociedade fraterna e sem conflitos; e eles são mais numerosos e poderosos. A honestidade do herói encanta e seduz a cínica. Um bando de escoteiros consegue derrubar uma máquina poderosíssima.
Detalhe O herói sem um centavo é mais talentoso, eclético, preparado para a vida e feliz que a mocinha riquíssima. Os moradores das pequenas comunidades são mais resolvidos e felizes; a grande cidade mata os sonhos e os ideais. Feliz é quem aceita trocar as glórias da fama por uma vida longe da “civilização” Os moradores das pequenas comunidades são mais resolvidos e felizes; a grande cidade mata os sonhos e os ideais.
Moral da história A felicidade destrói as barreiras entre as pessoas de classes antagônicas. Um idealista pode vencer as instituições corruptas. A crença tranqüila nos valores corretos consegue transformar cínicos em believers. Em um mundo entre guerras, sob a ameaça do totalitarismo, a utopia só existe para quem faz por merecê-la. Um idealista pode vencer as instituições corruptas. A luta obstinada pelos valores corretos consegue transformar cínicos em believers; quem aderiu ao mal é capaz de se arrepender.
Oscar 5: Filme, diretor, ator, atriz, roteiro adaptado – venceu todas as categorias para as quais foi indicado. Até hoje, é um dos três únicos a vencer nas cinco principais categorias. 1: Diretor. (Teve outras 4 indicações: filme, ator, roteiro, som.) 2: Direção de arte, montagem. (Teve outras 5 indicações: filme, ator coadjuvante para H. B. Warner, assistente de direção, trilha sonora, som.) 1: Argumento original. (Teve outras 10 indicações: filme, diretor, ator, ator coadjuvante (Harry Carey), ator coadjuvante (Claude Rains), roteiro original, direção de arte, montagem, trilha sonora, som.
Orçamento US$ 325 mil US$ 800 mil US$ 2,5 milhões US$ 1,5 milhão.

O quadro, é claro, é uma simplificação. O fascinante de se ver e rever nos filmes é como tudo funciona bem. Capra obtém de seus atores desempenhos magníficos, e das duplas centrais uma química poderosa, cativante, envolvente. Extraordinário diretor de atores, ele teve também a sorte de contar com os melhores: sua obra inclui interpretações de monstros como Barbara Stanwyck, Jean Harlow, Claudette Colbert, Jean Arthur, Katharine Hepburn, Bette Davis, Walter Houston, Clark Gable, Gary Cooper, James Stewart, Cary Grant, Spencer Tracy, Bing Crosby, Frank Sinatra.

A crença em que a luta persistente do homem comum é capaz de melhorar o mundo pode parecer ingênua para muita gente, hoje. Mesmo se for assim, é a única coisa nos filmes de Capra que teria envelhecido. Sua obra é tão atual hoje quanto foi mais de 60 anos atrás. As comédias românticas de todas as décadas que se seguiram à fase áurea do cineasta devem muito a Aconteceu Naquela Noite. O casal improvável seria tema de dezenas e dezenas de comédias mais tarde. E Horizonte Perdido antecipa a fascinação que o Tibete exerceria sobre o mundo ocidental nas últimas décadas do século. O nome Shangri-La, criado no livro de James Hilton e popularizado pelo filme, virou sinônimo de paraíso – a edição de 1992 do Dicionário da Língua e da Cultura Inglesa da Longman explica que Shangri-La é “um lugar imaginário distante e belo onde tudo é agradável”. E o humanismo de Capra sintetizado em Mr. Deeds e A Mulher Faz o Homem (na foto abaixo) serve de inspiração para autores de várias gerações, como os irmãos Coen em Na Roda da Fortuna/The Hudsucker Proxy), de 1993.

A qualidade de imagem e de som de Aconteceu está ótima – mas a dos três outros é ainda melhor. Mr. Deeds e A Mulher Faz o Homem foram completamente restaurados pelo Centro de Conservação de Filmes da Biblioteca do Congresso; estão absolutamente perfeitos; é como ver um lançamento recentíssimo em cinema bom. Assim como Horizonte Perdido – que passou por um processo muitíssimo mais complexo de restauração, ao longo de 25 anos terminados em 1998.

A história do filme Horizonte Perdido é quase tão fascinante quanto a obra em si. Foi, sem dúvida, o trabalho mais ambicioso de Capra, e só se tornou possível devido ao estouro de bilheteria dos dois anteriores e ao prestígio adquirido com os cinco inesperados Oscars de Aconteceu Naquela Noite. O chefão da Columbia, Harry Cohn, aceitou um orçamento inicial de US$ 1,250 milhão, mas o filme acabou custando o dobro. Ao terminar as filmagens (que duraram cerca de 100 dias, contra as quatro semanas de Aconteceu), Capra tinha quase seis horas de filme. Houve uma première de teste em Santa Barbara com 3 horas e meia; depois de muito trabalho nas salas de montagem, o filme estreou nos cinemas americanos, em março de 1937, em uma versão oficial, aprovada por Capra, de 132 minutos.

Depois de alguns meses, o estúdio cortou essa versão para 118 minutos. Poucos anos mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, houve um relançamento nos cinemas com algumas mudanças na abertura para que funcionasse como propaganda contra os japoneses – e, como o então presidente Franklin D. Roosevelt tivesse demonstrado gostar muito do nome do local imaginário no Tibete, o próprio título foi alterado para Horizonte Perdido de Shangri-La.

Em 1967, o negativo original havia se deterioridado. Em 1973, o American Film Institute (AFI) começou uma pesquisa mundial à procura das diferentes versões existentes; foi encontrada a trilha sonora da versão de Capra, de 132 minutos, mas faltavam 7 minutos de filme – que, nesta cópia restaurada, são preenchidos por fotos. Para o trabalho final de restauração, feito em conjunto com o AFI, a Sony, hoje dona da Columbia, e a Universidade da Califórnia em Los Angeles usaram todas as maravilhas da mais moderna tecnologia digital; o DVD traz a versão de Capra que estreou nos cinemas antes dos cortes determinados pelo estúdio. Um brilho.

Todos os detalhes desta história e do processo de restauração são contados nos “special features” do DVD. Há apenas um problema, que está presente em praticamente todas as apresentações especiais dos DVDs lançados no Brasil: não há legendas, apenas o som original em inglês. Os filmes em si, é claro, podem ser vistos – como sempre – com o som original e legendas ou em português, ou em espanhol ou em inglês; mas as distribuidoras ainda não resolveram investir em legendas nas apresentações especiais.

Desses quatro lançamentos de filmes de Capra, o mais recheado de apresentações especiais é Horizonte Perdido. Traz três diferentes documentários. Em “Photo documentary”, um excelente making of de 30 minuto de duração, produzido em 1999, o estudioso Kendall Miller conta histórias sobre as filmagens e detalhes técnicos sobre, por exemplo, a construção cuidadosíssima dos sets, fala da difícil escolha do ator que representaria o Lama (as cenas do enterro do guia espiritual de Shangri-La foram feitas antes que o ator fosse escolhido) e mostra diversas fotos de seqüências inteiras que foram abandonadas por Capra na sua versão final. Outro documentário, “Restoration – Before and After Comparison”, narrado por Robert Gitt, que participou dos trabalhos de restauração do filme, mostra o que foi mudado na versão apresentada durante a Segunda Guerra, e dá exemplos de cenas antes e depois dos trabalhos de laboratório para recuperar as imagens. Há tomadas do enterro do Lama que não foram aproveitadas por Capra. O terceiro documentário, bem curtinho, mostra o final alternativo feito a mando de Harry Cohn, à revelia do diretor; a diferença é pequena – e no entanto é profunda. O final de Cohn é muito mais óbvio, mais tradicionalmente happy ending; felizmente, ele só foi apresentado durante alguns meses, em 1937; depois Capra repôs o seu.

Aconteceu Naquela Noite traz um brinde muito especial: uma versão da história em novela de rádio, de 60 minutos, com as vozes de Clark Gable e Claudette Colbert (os dois na foto acima) e apresentação de Cecil B. DeMille, que foi ao ar em 20 de março de 1939, quando Gable estava filmando … E o Vento Levou. A novela tem três atos – e, entre eles, há propagandas do patrocinador, o sabão Lux. E, como boa parte da história se passa dentro de um ônibus, a voz de DeMille – que tremendo canastrão e marqueteiro de si próprio – entrevista um motorista de ônibus, que conta casos e dá explicações sobre os sinais de luzes trocados nas estradas.

Todos os quatro filmes foram lançados em formato de tela de TV; não há a opção de ver em widescreen.

O quadro mostra o que cada DVD tem nas apresentações especiais:

Aconteceu Naquela Noite O Galante Mr. Deeds Horizonte Perdido A Mulher Faz o Homem
Pérolas extras A história em forma novela de rádio (ver texto acima). Três documentários sobre o filme (ver texto acima).
Opção: comentários em áudio. Frank Capra, Jr vai contando histórias sobre a filmagem. Robert Gitt, que participou da restauração, e o técnico Charles Champlin contam sobre o processo de trazer o filme de volta como era em 1937. Frank Capra, Jr vai contando histórias sobre a filmagem.
Documentários “Frank Capra, Jr. Remembers”, 10 min. Exemplos do que ele lembra: Claudette Colbert levou US$ 50 mil dos US$ 250 mil que o filme custou – e,  no último dia de filmagem, disse a amigos: “Terminei o pior filme que já fiz na vida”. “Frank Capra, Jr. Remembers”, também de 10 min.. Gary Cooper foi a primeira e única escolha, mas Capra teve que insistir muito com o chefão Harry Cohn para colocar Jean Arthur no elenco. A partir daí, ela virou uma grande estrela. São os três citados acima. Eles mostram, por exemplo, que, para filmar as cenas passadas nas montanhas geladas do Himalaia, Capra usou um armazém frigorífico em Los Angeles – o vapor que sai da boca dos atores não poderia ser mais real. “Frank Capra, Jr. Remembers”, em 10 min. Antes das filmagens, Capra visitou Washington, e fez um passeio pelos monumentos históricos muito semelhante ao que o personagem de James Steward, Jefferson Smith, faz no filme. Políticos e jornais desceram a lenha no filme.
Trailers Todos os quatro filmes trazem trailers uns dos outros – os originais, exibidos nos cinemas nos anos 30.
Cartazes Outro brinde que os filmes têm em comum, menos “Horizonte Perdido”: reprodução de cartazes da época, de oito a 12 cada um; muitos são coloridos, com aquela aparência de trabalho manual que os cartazes antigos tinham.
Fichas Os três (menos “Horizonte”, que já tem coisa demais) trazem sucintas filmografias do diretor e dos principais atores.

Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2000

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