A Insustentável Leveza do Ser / The Unbearable Lightness of Being

Nota: ★★★★

(Disponível em DVD da Warner Bros.)

Poucos escritores e poucos romances foram tão absolutamente incensados, admirados, amados quanto Milan Kundera e seu A Insustentável Leveza do Ser – pelo menos durante os tempos, como diria Bertold Brecht, que me deram para viver.

O romance do autor checo acompanha as vidas de quatro pessoas, dois homens, duas mulheres, durante a Primavera de Praga – aquele momento único na História da humanidade, um breve instante em que se tentou um “socialismo de face humana”, a convivência do comunismo com a liberdade – e logo depois dela. Final dos anos 60, início dos 70.

Amor, sexo, muito sexo – e o sonho de um mundo melhor. Que, durante aquele breve espaço de tempo, chegou a parecer que seria possível. Como não se apaixonar por um romance sobre isso, escrito com uma sofisticada linguagem e um erudito estilo que permitiam ao autor fazer considerações filosóficas, metafísicas?

A revista Time escreveu: “Um triunfo da inteligência sobre a amargura, da esperança sobre o desespero”. A francesa L’Express tascou: “Enquanto tantos intelectuais profetizam a morte da literatura, ele nos reafirma os poderes ainda infinitos do romance”.

Daqui a pouquinho chego ao filme – mas é que seria absolutamente impossível falar de The Unbearable Lightness of Being sem falar do romance que primeiro foi publicado como L’Insoutenable Légèreté de l’Être.

O cinema foi rápido na adaptação do romance

Milan Kundera escreveu seu romance em 1982, 14 anos após os tanques do Pacto de Varsóvia, enviados por Leonid Brezhnev, o ditador então de plantão na União Soviética, terem esmagado o sonho de um socialismo de face humana.

Evidentemente, o livro não poderia ser publicado na Checoslováquia do comunismo real – nem em qualquer um dos demais países do Leste Europeu que haviam sido libertados do nazismo pelo Exército Vermelho e transformados em satélites do Império Soviético. Da mesma maneira com que, só para lembrar de um romance admirável, um dos melhores que já foram escritos, o Doutor Jivago de Boris Pasternak, não pôde ser lançado na sua Rússia a não ser muitos e muitos anos depois.

Doutor Jivago foi publicado pela primeira vez na Itália; A Insustentável Leveza do Ser, na França. A Wikipedia diz que foi em 1984; a primeira edição brasileira de 1985, da Editora Nova Fronteira, traduzida do francês, diz que o copyright é de 1983. Mas o ano exato da primeira publicação não importa tanto. É importante saber que a primeira vez que o livro foi publicado em checo foi em 1985, por uma editora de exilados checos no Canadá. A segunda foi em 2006, quando a União Soviética e o comunismo já não existiam mais, assim como também não existia mais a Checoslováquia, já dividida em dois países, a República Checa e a Eslováquia.

O livro saiu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha em 1984 – um ano apenas antes da primeira edição brasileira.

Sabrina, a mulher libertária, ousada, independente, de apetite sexual pantagruélico – que no filme é interpretada pela maravilhosa sueca Lena Olin – morreria de tédio diante de todas essas informações que fiz questão de enumerar aí acima. Sabrina não dava a menor importância a qualquer coisa relacionada a política, História, essas coisas chatas. Só queria saber de criar – era artista plástica, uma vanguardista, algo que o realismo socialista detestava profundamente. Ah, sim, e de trepar, é claro.

Entre o lançamento do livro em inglês e o lançamento do filme, passaram-se apenas quatro anos.

E a quantidade de talentos que se reuniram para levar para as telas a história criada por Milan Kundera é um troço impressionante.

Uma absurda concentração de talentos

Philip Kaufman, Jean-Claude Carrière, Sven Nykvist, Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche, Lena Olin.

PelamordeDeus: é talento a dar com o pau, saindo pelo ladrão.

Philip Kaufman (Chicago, 1936) é daquele tipo de realizador ourives, o que fica um longo tempo burilando a jóia em que está trabalhando. Ao longo de 48 anos, entre 1964 e 2012, o cara dirigiu 13 filmes, apenas. Os mais importantes entre eles foram adaptações de obras literárias. Os Eleitos/The Right Stuff, de 1983, o filme anterior a este aqui, se baseia no extraordinário romance-reportagem de Tom Wolfe sobre uma época da corrida espacial EUA x URSS. No filme seguinte a este aqui, Henry & June, de 1990, prosseguiu na coisa do erotismo, adaptando um livro de Anaïs Nin sobre seu relacionamento com Henry Miller e sua mulher June. Em seguida ele descansou do erotismo adaptando um belo romance de ação-crime-espionagem industrial de Michael Crichton, Sol Nascente (1993), para voltar ao sexo em Contos Proibidos do Marquês de Sade (2000), baseado na peça de teatro de Doug Wright.

Poucos filmes, vários deles adaptações de romances, muitos gêneros, mas volta e meia sexo, erotismo. Um grande diretor de cinema.

Jean-Claude Carrière (1931-2021) é um senhor escritor, um senhor roteirista. Um dos maiores do cinema europeu, e portanto um dos melhores do mundo. Botou seu nome em mais de 150 títulos, trabalhou com vários dos maiores realizadores da História, de Luís Buñuel a Milos Forman, de Louis Malle a Volker Schlöndorff, de Carlos Saura a Andrzej Wajda. Saiu da máquina de escrever dele a maravilha que é a autobiografia de Buñuel, Mi Ultimo Suspiro. (O espanhol louco varrido, o mais absolutamente rebelde de todos os grandes cineastas, escreveu na abertura da sua autobiografia: “Yo no soy hombre de pluma. Tras largas conversaciones, Jean-Claude Carrière, fiel a cuanto yo le conté, me ayudó a escribir este libro.”)

O sueco Sven Nykvist (1922-2006) é um dos melhores diretores de fotografia da História do Cinema. Fez a fotografia de boa parte dos filmes de Ingmar Bergman – e, entre uma e outra grande obra do mestre, iluminava também, literalmente, filmes de outros realizadores, como Woody Allen, Bob Fosse, Bob Rafelson, Andrei Tarkóvski, Volker Schlöndorff,

E aí caímos no trio de atores que faz os principais papéis. Meu Deus do céu e também da Terra.

Três jovens atores extraordinários

Por algum motivo ou alguma conjugação de fatores que desconheço inteiramente, não vi The Unbearable Lightness of Being na época do seu lançamento, 1988, Nem me dispus a vê-lo ao longo de anos, mesmo tendo comprado o DVD em novembro de 2003. (Se sei disso é porque anotei, é claro. Como diziam lá no Senado romano, quase 2.000 anos antes da Primavera de Praga, verba volant, scripta manent. Ou, na última flor do Lácio, não anotou, dançou.)

Só finalmente me sentei diante dele agora, setembro de 2021, mais de 30 anos depois do lançamento.

E é interessante isso, porque, tendo ao longo destes 30 anos visto muitos filmes de Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin, me acostumei a vê-los enquanto nós todos enfrentávamos a passagem destas décadas – e então me surpreendi demais ao ver aquelas figuras tão absolutamente jovens no filme lançado em 1988.

Daniel Day-Lewis, inglês de Londres, tinha 31 anos quando o filme foi lançado, e parecia ter ainda menos que isso. Só depois viria a fazer aquela penca de filmes importantes, em que nos deu atuações memoráveis – Meu Pé Esquerdo (1989), O Último dos Moicanos 1992), A Época da Inocência (1993), Em Nome do Pai (1993), As Bruxas de Salém (1996), O Lutador (1997), Gangues de Nova York (2002), Sangue Negro (2007), Nine (2009), Lincoln (2012).

Daniel Day-Lewis demonstra estar muito à vontade no papel de Tomas, o cirurgião competente, admirado e respeitado pelo chefe e pelos colegas – tão competente e admirado como médico quanto como homem por todas as mulheres, senão do mundo, ao menos de Praga, aquela cidade de beleza impressionante que vivia uma atmosfera de liberdade plena e absoluta, tão plena e absoluta quanto nas grandes cidades ocidentais como Paris, Londres, Nova York, San Francisco.

Lena Olin, sueca de Estocolmo, estava com 33 anos. Filha de atores que haviam trabalhado com Ingmar Bergman, ela mesma já trabalhara em filmes do mestre (Fanny e Alexander, 1982, Depois do Ensaio, 1984) e tinha uma carreira consolidada na Suécia quando estreou no cinema americano no papel da sensual e libertária Sabina, exibindo uma beleza digna de suas antecessoras Greta Garbo, Ingrid Bergman, May Britt e Ann-Margret, para citar só algumas suecas que Hollywood importou.

Nunca vou compreender por que Lena Olin, com aquela beleza e aquele talento dela, não teve um bom número de oportunidades e bons papéis para virar uma gigantesca estrela – uma estrela da estatura de sua colega de elenco Juliette Binoche.

A Binochinha, como gosto de chamá-la, como se fosse amiga íntima, francesa de Paris, era a caçula do trio, com 24 aninhos, uma beleza incrível e um corpo escultural que o diretor Philip Kaufman faz questão de apresentar já em sua primeira aparição na tela, mergulhando na piscina de um spa do interior da Checoslováquia e atraindo imediatamente a atenção do médico Tomas, que havia ido até a cidade interiorana para operar um morador.

Já havia feito 11 filmes, inclusive Rendez-Vous, do grande André Téchiné, em que fazia o principal papel feminino, e aparecia em diversas cenas de sexo. Seu papel como Tereza, a jovem interiorana um tanto tímida, frágil, insegura, que invade a vida do médico bonitão e conquistador feito uma posseira, o primeiro em um filme de Hollywood, deu a ela grande visibilidade internacional, que só aumentaria com Perdas e Danos (1992) e O Paciente Inglês (1996).

Uma história em três movimentos, como uma sinfonia

Estão absolutamente soberbos, os três grandes atores, os três protagonistas da história. (Na adaptação do romance para a linguagem cinematográfica, Jean-Claude Carrière e Philip Kaufman diminuíram bastante a importância do quarto elemento daquele quadrado amoroso criado por Milan Kundera: Franz, o intelectual suíço que se apaixona por Sabina, e é interpretado por Derek de Lint, aparece bem menos, tem importância muitíssimo menor que o triângulo Sabina-Tomas-Tereza.)

Três grandes atores, três personagens fascinantes, muitíssimo bem construídos. E uma história de amor e sexo, muito sexo, com a Grande História como pano de fundo – uma história, a rigor, contada em três tempos. Como uma sinfonia.

Primeiro movimento: a Primavera de Praga em todo o seu esplendor. Liberdade, nada de censura – pode-se até publicar nos jornais um artigo de um respeitado médico comparando os soviéticos a Édipo Rei. E sexo, muito sexo.

Segundo movimento: chegam os tanques e acabam com a primavera, a liberdade. O jeito é fugir da pátria invadida, tentar viver no exílio.

Terceiro movimento: de volta à Checoslováquia, tudo vai de péssimo a ainda pior.

Todo o filme é repleto de belos momentos, de grande cinema – mas é forçoso registrar que são absolutamente, mas absolutamente brilhantes as sequências que mostram a chegada dos tanques do Pacto de Varsóvia às ruas de Praga.

Philip Kaufman, o diretor de fotografia Sven Nyvist e o montador Walter Murch fizeram um extraordinário trabalho de misturar cenas reais, filmadas nas ruas de Praga em 1968, com sequências criadas pela equipe, reconstituindo as imagens da época.

É de uma beleza espantosa – e de uma tristeza imensa.

O checo Milos Forman ofereceu a oportunidade a Kaufman

Milan Kundera, como dezenas de artistas e intelectuais, conseguiu fugir enquanto os invasores russos e as autoridades do novo governo ainda não haviam fechado todas as fronteiras. Radicou-se em Paris – foi lá que escreveu seu romance sobre aquele momento histórico.

Milos Forman foi outro que fugiu. Forman tinha sido um dos cineastas que fizeram filmes ousados, totalmente inesperados para um país comunista, aproveitando os ventos de liberdade trazidos pela Primavera de Praga. Em janeiro de 1997, época do lançamento de seu O Povo Contra Larry Flynt, em uma entrevista antológica no National Press Club de Washington, ele contaria: “Pertenci a uma geração de diretores checos que foram favorecidos por um instante de abertura” (ele não usou a expressão Primavera de Praga), “que fizeram filmes que foram aprovados no Ocidente, e os dirigentes comunistas detestavam aqueles filmes, mas ao mesmo tempo ficavam absolutamente contentes com o fato de aqueles filmes estarem recebendo elogios no Ocidente. E por isso pudemos continuar fazendo filmes, até que os tanques russos invadiram a Checoslováquia, em 1968, e aí eu fugi para cá.”

O segundo filme que Milos Forman fez no país para o qual fugiu, Um Estranho no Ninho/One Flew Over the Cucko’s Nest (1975), foi um extraordinário sucesso de crítica; teve nove indicações ao Oscar, e levou os cinco mais importantes – melhor filme, melhor direção, melhor ator para Jack Nicholson, melhor atriz para Louise Fletcher e melhor roteiro adaptado para Lawrence Hauben e Bo Goldman. O primeiro filme a ganhar todos os cinco principais prêmios em 41 anos – antes dele foi Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, outro imigrante, por coincidência, ou não.

Um dos produtores de Um Estranho no Ninho, ao lado do então jovem Michael Douglas, foi Saul Zaentz – o sujeito que, 13 anos depois, produziria este A Insustentável Leveza do Ser.

É fundamental lembrar essa relação entre o imigrante checo Milos Forman e o filho de imigrantes Saul Zaentz para melhor compreender esta informação que está na página de Trivia do IMDb sobre A Insustentável Leveza do Ser:

“Milos Forman pessoalmente ofereceu a Philip Kaufman a oportunidade de dirigir o filme depois de saber que havia estúdios interessados em fazer uma adaptação do bem sucedido romance de Milan Kundera. Forman teve que passar adiante a oportunidade de dirigir ele mesmo o filme porque tinha família na Checoslováquia, e temia por eles no caso de uma possível reação negativa do governo soviético, que ocupava o país naquela época.”

Pauline Kael ficou extasiada: “Glorioso”.

Interessante: Leonard Maltin primeiro deu 3.5 estrelas em 4 para o filme ao qual não poupou elogios; nas edições mais recentes do seu Movie Guide, no entanto, corrigiu-se e deu 4 estrelas. Eis o que ele diz:

“Adaptação extraordinariamente bem feita do aclamado romance de Milan Kundera sobre um jovem médico dos anos 1960 que tem jeito com as mulheres (um monte de mulheres) e aversão por política, mas que se vê preso na turbulência política de seu país – e numa crise de comprometimento com as mulheres de sua vida. A adaptação de Kaufman e Jean-Claude Carrière se desdobra exatamente como um bom livro, num ritmo suave, mas nunca se perdendo, ao criar uma pintura vívida da vida e dos tempos do personagem. Atuações sensuais, inteligentes e belas dos três atores principais; maravilhosa fotografia de Sven Nykvist.”

Dona Pauline Kael, a prima donna da crítica americana que em 98% do tempo é absolutamente cricri, começa seu verbete sobre o filme com o adjetivo “glorioso”. Vixe Maria! Eis o texto, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:

“Glorioso. Dirigida por Philip Kaufman, esta adaptação do romance de Milan Kundera é comovente de uma maneira sofisticada que não se esperaria de um diretor americano. Comédia sexual travessa, trata os acontecimentos políticos modernos com um delicado – embora quase irônico – senso de tragédia. A forma como as variações de ciúme e atração erótica são interpretadas pelos três atores principais – um inglês (Daniel Day-Lewis), uma sueca (Lena Olin) e uma francesa (Juliette Binoche), todos fazendo personagens checas – é que dá ao filme sua textura maravilhosamente irresolvida. A história começa em Praga, em 1968, durante o período de liberdade de expressão e florescimento artístico conhecido como o ‘socialismo de face humana’. O Tomas de Day-Lewis é um jovem e eminente neurocirurgião mulherengo e hedonista; a pintora Sabina de Olin, parceira sexual dele de longa data; e a Tereza de Binoche, com quem ele se casa, representa os dois pólos de sua vida – leveza e peso. Kaufman tem um temperamento exuberante, e o espírito do filme é mais jovem e solto que o do livro; conciso em seus 173 minutos, o filme é de uma beleza estonteante. Com Derek de Lint como o professor demasiado virtuoso para Sabina, Pavel Landovsky como o homem que tem um porquinho de estimação, Erland Josephson como o porteiro de bar que foi embaixador checo em Viena, Donald Moffat como o cirurgião-chefe, Stellan Skarsgard como o engenheiro, e Daniel Olbrychski como o funcionário do Ministério do Interior. Roteiro de Jean-Claude Carrière e Kaufman; editado por Walter Murch; fotografia de Sven Nykvist. (As cenas de Praga foram rodadas em Lyon e Paris.) Uma produção Saul Zaentz, distribuída pela Orion.”

Não me lembro de ter lido outra crítica de Dona Kael tão absolutamente elogiosa quanto esta.

Muito sexo – mas tudo longe da pornografia

O grande Roger Ebert também deu 4 estrelas em 4. O texto dele, belo como sempre, começa assim:

“No título do filme de Philip Kaufman The Unbearable Lightness of Being, a palavra crucial é unbearable” – e aqui interrompo mestre Ebert

para lembrar que unbearable é, de fato, o equivalente a insustentável, mas o primeiro sinônimo do adjetivo em Português é, creio, mais forte, mais virulento: insuportável. Insuportável, intolerável, confirma o ótimo Dicionário Exitus. O “insustentável” é mais elegante, mais poético. Unbearable, o adjetivo do Inglês, é sem dúvida mais virulento.

“O filme conta a história de um jovem cirurgião que tenta flutuar sobre o universo mundano da responsabilidade e do compromisso pessoal, para praticar uma vida sexual que não se conecta com o coração, para cscapar intocado do mundo de prazer sensual enquanto retém sua privacidade e sua solidão. Lá pelo final da história, sua liberdade ficou grande demais para que ele a suporte. O nome do cirurgião é Tomas, e ele em vive em Praga; nós o encontramos nos abençoados dias antes da invasão russa de 1968. Ele tem um entendimento com uma mulher chamada Sabina, uma pintora cujo objetivo é o mesmo que o dele – ter uma relação física sem uma relação emocional. Os dois amantes acreditam ter muita coisa em comum, já que têm a mesma atitude em relação aos parceiros que encontram, mas na verdade seus genitais têm mais em comum do que propriamente eles dois. Isso não quer dizer que eles não têm grande sexo; eles têm, sim, e isso é mostrado em detalhes, no filme sério mais erótico desde O Último Tango em Paris.”

Bem adiante, Roger Ebert conta que, a certa altura do filme, “algo curioso” aconteceu com ele: “Eu tinha começado a apreciar um tanto dos ritmos das vidas dos personagens. A maioria dos filmes tem um ritmo tão rápido e são tão dependentes da trama que acaba sendo sobre eventos, e não sobre vidas. The Unbearable Lightness of Being carrega o sentimento de profunda nostalgia, de um tempo já não mais presente, em que aquelas pessoas faziam aquelas coisas e esperavam pela felicidade, e foram pegas em eventos muito além de seu controle.”

E prossegue: “Kaufman consegue esse efeito quase sem aparentemente tentar. De início, seu filme parece ser exclusivamente sobre sexo, mas aí notamos em diversas tomadas e decisões da câmara que ele não permite que sua câmara se transforme num voyeur. Há muita nudez no filme, mas nenhum aspecto de documentário pornográfico; a câmara não se demora, ou se move para a melhor posição, ou saboreia o espetáculo da nudez. O resultado são algumas das cenas de sexo mais pungentes, quase tristes que eu já vi – sensuais, sim, mas doçamargas. E o elenco tem muito a ver com essa qualidade encantadora. (…) Lena Olin, como Sabina, tem um corpo exuberante, voluptuoso, com grandes seios, mas ela o habita tão confortavelmente que o filme nunca parece se fixar nele ou explorá-lo. Juliette Binoche, como Tereza, é quase etérea em sua beleza e inocência, e sua tentativa de reconciliar seu amor com o distanciamento de seu amante é provavelmente o cerne do filme.”

Grande Roger Ebert! É exatamente isso – e é maravilhoso como ele sabe traduzir em palavras o comportamento da câmara.

Logo que criei este site, inventei uma tag “quasepornô”, para os filmes que, embora não abertamente pornográficos, chegam deliberadamente bem perto das explicitudes todas. São filmes franca, abertamente safados – e nesse subgênero foram reis, em especial nos anos 80 e 90, o diretor Adrian Lyne e o roteirista Joe Eszterhas.

Pois bem: A Insustentável Leveza do Ser, apesar de tantas cenas de sexo, não caberia de forma alguma na tag “quasepornô”. A câmara do diretor Philip Kaufman não é jamais o instrumento de um voyeur. A câmara jamais se demora, ou se move para a melhor posição, ou saboreia o espetáculo da nudez.

É um belo filme. Muito belo, e muito triste.

 Anotação em setembro de 2021

A Insustentável Leveza do Ser/The Unbearable Lightness of Being

De Philip Kaufman, EUA, 1988

Com Daniel Day-Lewis (Tomas),

Juliette Binoche (Tereza),

Lena Olin (Sabina)

e Derek de Lint (Franz, o amante suíço de Sabina), Pavel Landovsky (Pavel, o camponês amigo de Tomas), Donald Moffat (o cirurgião chefe), Daniel Olbrychski (o oficial do Ministério do Interior), Stellan Skarsgard (o engenheiro), Tomek Bork (Jiri, o colega de Tomas), Erland Josephson (o embaixador), Bruce Myers (o editor do jornal checo), Pavel Slaby (o sobrinho de Pavel), Pascale Kalensky (a enfermeira Katya), Anne Lonnberg (a fotógrafa suíça), Laszlo Szabo (o interrogador russo)

Roteiro Jean-Claude Carrière, Philip Kaufman

Baseado no romance homônimo de Milan Kundera

Fotografia Sven Nykvist

Música Mark Adler, Keith Richards, Leos Janacek

Montagem Walter Murch

Direção de arte Pierre Guffroy

Figurins Ann Roth

Produção Saul Zaentz, The Saul Zaentz Company;

Cor, 171 min (2h51)

****

6 Comentários para “A Insustentável Leveza do Ser / The Unbearable Lightness of Being”

  1. Vi no cinema aqui na minha cidade Uruguaiana/RS, em pleno inverno, filme deslumbrante!!!!

  2. Prezado Sérgio

    Este filme é maravilhoso!
    Merece ser visto e revisto.
    Sua resenha captura todos os ângulos desse “clássico moderno”.

    Uma única observação.
    Você afirma:

    “Milan Kundera escreveu seu romance em 1982, apenas quatro anos após os tanques do Pacto de Varsóvia, enviados por Leonid Brezhnev, o ditador então de plantão na União Soviética, terem esmagado o sonho de um socialismo de face humana.”

    Na verdade, considerando que a Primavera de Praga se deu em 1968, o livro, de 1982, foi escrito quatorze anos após, e não quatro como colocado.

    Siga firme.

    Abraço grande

    André

  3. Caro André,

    Agradeço imensamente o seu comentário – pelo elogio e sobretudo pela correção da questão da data. Fiz a conta erradamente! Vou corrigir agora mesmo. Muito obrigado!

    Boa Páscoa!

    Sérgio

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