A Verdade / La Vérité

3.5 out of 5.0 stars

(Disponível no HBO Max em 9/2022.)

A Verdade/La Vérité, de 2019, é um muito belo e muito sensível filme sobre relações familiares, afetivas – essa coisa que é absolutamente fundamental na vida de todas as pessoas, mas sobre a qual o cinema acaba falando menos do que sobre serial killers, super-heróis e personagens de realidades paralelas tipo Game of Thrones ou Senhor dos Anéis.

Especificamente sobre uma relação mãe e filha.

A mãe é uma artista consagradíssima, assim como a pianista Charlotte Andergast interpretada por Ingrid Bergman na obra-prima Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman. Assim como a cantora Becky del Páramo feita por Marisa Paredes em De Salto Alto (1991), de Pedro Almodóvar.

A filha é uma mulher sensível, e mais frágil que a mãe – assim como Eva, a esposa do pastor interpretada por Liv Ullmann no filme do mestre sueco, assim como Rebeca, a apresentadora de TV feita por Victoria Abril no filme do coloridíssimo madrilenho.

Mas a relação entre mãe e filha em A Verdade não é nem de longe tão densa, pesada, angustiante quanto no filme de Bergman, nem explosiva, bombástica, extravagante quanto no filme de Almodóvar.

A Verdade é um belo, sensível filme que se torna mais e mais admirável porque não procura, em momento algum, os píncaros, os excessos, os exageros.

Já tem o píncaro, o excesso, o exagero de reunir, pela primeira vez, duas das maiores estrelas do cinema francês de todos os tempos, Catherine Deneuve e Juliette Binoche. Mais a curiosidade, a excentricidade de ser um drama familiar francês escrito e dirigido por um japonês.

Bem, mas não é um japonês qualquer. É Hirokazu Koreeda, um dos mais respeitados, aclamados realizadores que surgiram no cinema mundial nas últimas décadas.

Conheço quase nada da obra de Koreeda. Mas, pensando apenas neste A Verdade aqui e em sua obra-prima Pais e Filhos, de 2013, fiquei imaginando que esse talento fantástico de autor e diretor tem especial atração pelo que é mais simples, mais comum, em detrimento do mais espetaculoso, do mais foguetório, fogos de artifício.

Ver o primeiro filme de Hirokazu Koreeda filmado e passado em um país que não é o seu, numa língua que não é a sua, dá uma grande vontade de conhecer suas outras obras.

Fabienne não foi uma mãe presente, amorosa

Na trama escrita por Koreeda, Fabienne Dangeville é uma gigantesca estrela do cinema francês – tão grande quanto a atriz que a interpreta, essa Catherine Deneuve que, nestes anos 2020, está iniciando sua sétima década nas telas, com mais de 140 títulos na filmografia, 43 prêmios e outras 28 indicações mundo afora, incluindo dois Césars, entre nada menos de 14 indicações ao maior prêmio francês.

Fabienne Dangeville cabou de lançar sua autobiografia – e esse é o motivo da visita de sua filha única, Lumir (o papel de uma Binochinha linda demais aos 57 anos de idade em 2019, quando o filme foi lançado). Radicada havia anos nos Estados Unidos, onde tem uma boa carreira como roteirista, Lumir chega para visitar a mãe em Paris na época do lançamento da autobiografia juntamente com o marido americano, Hank, um ator de televisão, de segunda categoria, segundo avaliação da sogra e até dele mesmo, e a filhjnha de uns oito anos de idade, Charlotte, garota inteligente, esperta, absolutamente bilíngue. (Hank é o papel de um Ethan Hawke que ficou careteiro para interpretar o ator fraquinho, e Charlotte é feita por Clémentine Greenier, um talento impressionante.)

Fica claro desde o primeiro momento – e vai ficando mais e mais ao longo da narrativa – que o relacionamento entre mãe e filha não é tranquilo. Também não chega a ser um absoluto horror: elas não se detestam. Mas não é, de forma alguma, uma relação harmoniosa. Fabienne é uma estrela, já era uma estrela quando a filha nasceu; é uma mulher extremamente vaidosa, cheia de si – e para ela o centro do mundo é o seu próprio umbigo.

Não foi uma mãe absolutamente presente, afetuosa, quando Lumir era pequena. Isso fica claro, fica óbvio demais. Lumir cobra da mãe pequenas mentiras que ela conta em sua autobiografia, tipo “ah, a emoção que eu sentia quando pegava minha filha na escola”. A filha diz algo tipo: “Você nunca jamais me pegou na escola!”

Quem pegava Lumir na escola, quando ela era criança, e depois que a mãe se separou do marido, Pierre (Roger Van Hool), era Luc Garbois (Alain Libolt), há décadas e décadas o secretário particular de Fabienne, seu faz-tudo, seu braço direito – e esquerdo, e tudo o mais.

O faz-tudo de repente anuncia que vai se aposentar

Já com o peso da idade, Fabienne está agora cada vez mais dependente de seu faz-tudo. Ela vive com um companheiro – compagnon, como eles dizem, um termo cada vez mais usado lá, em que os casamentos sem papel passado são cada vez mais comuns –, Jacques (Christian Crahay). O compagnon está sempre presente para ela, solícito, sempre a mimando com pratos que prepara com jeito de chef. Mas é Luc que na prática conduz a vida da estrela, cuidando desde os contatos com produtores e diretores, como se fosse mesmo o agente dela, até cada detalhe da agenda de Fabienne, passando pela supervisão do que ela pode e do que ela não deve dizer em entrevistas à imprensa.

Koreeda incluiu no seu roteiro uma entrevista que Fabienne dá a um jornalista (o papel de Laurent Capelluto) para mostrar isso: Luc assiste à entrevista, e diz ao repórter para desconsiderar uma determinada resposta da estrela, que ele considera seria prejudicial à imagem dela.

A memória está começando a falhar, e seu gosto pelo vinho não ajuda muito nessa questão, o que torna Luc ainda mais imprescindível.

Mas eis que Luc, repentinamente, sem aviso prévio, informa a Fabienne e a Lumir que vai se aposentar daí a uns poucos dias. Está velho, cansado, quer aproveitar a companhia dos muitos netos.

Para Lumir – nas costas de quem deixará seus muitos afazeres –, ele argumenta que a autobiografia da estrela também o perturbou. Se sobre a filha Fabienne contou mentirinhas, sobre seu braço direito ela falou pouquíssimo, menosprezando a imensa importância dele em sua vida.

Lumir não está de forma alguma preparada para se transformar na faz-tudo da mãe; estava ali de passagem, para ficar alguns dias, algumas semanas no máximo, antes de voltar para suas obrigações nos Estados Unidos. Mas, como não tem outro jeito, vai se sujeitar a tentar suprir a repentina ausência de Luc na vida de Fabienne.

O filme dentro do filme é um absoluto achado

Fabienne havia aceitado o convite de um jovem cineasta (o papel de Sébastien Chassagne), que se declarava grande fã dela, para fazer um filme, Memórias de Minha Mãe, que é ao mesmo tempo uma história de relação mãe e filha e uma ficção científica.

Para a história do filme dentro do filme, o diretor e roteirista Koreeda usou um conto do jovem chinês de nascimento radicado desde os 11 anos nos Estados Unidos, Ken Liu.

A personagem central desse Memórias de Minha Mãe é uma astronauta, que passa boa parte da vida fora da Terra e, assim, não envelhece – permanece sempre com a mesma idade, cerca de 30 anos de idade, e é interpretada por Manon Lenoir (o papel de Manon Clavel, de que eu jamais tinha ouvido falar.)

A filha da astronauta, Amy, fica na Terra, e vai envelhecendo como todo mundo, e aparentando ser cada vez mais velha que a mãe. Quando garotinha, Amy é interpretada por Hannah Castel Chiche, uma menina com quem Charlotte, a neta de Fabienne, tenta conversar, no estúdio em que o filme está sendo rodado. A Amy ali pelos 40 anos é feita, numa participação especial, pela bela Ludivine Sagnier – que trabalhou ao lado de Catherine Deneuve (e mais Danielle Darrieux, Fanny Ardant, Emmanuelle Béart, Isabelle Huppert, Virginie Ledoyan) no maravilhoso 8 Mulheres, de François Ozon.

E a Amy já idosa é o papel de Fabienne.

Eis aí uma beleza de achado do autor e roteirista Hirokazu Koreeda.

A atriz que interpreta a mãe astronauta, Manon Lenoir, tem tido grande sucesso nos últimos anos, um sucesso que incomoda Fabienne, essa estrela que é vaidade pura, egocentrismo concentrado. E Manon Lenoir faz o papel de uma mulher que fica para sempre jovem – enquanto ela, Fabienne, que faz a filha, está velha, as marcas das muitas décadas de vida cada vez mais evidentes.

Ao mesmo tempo, na vida real, ela está tendo que, depois de muito tempo, conviver com sua própria filha, essa Lumir ainda cheia da vitalidade da maturidade jovem – já que hoje em dia as mulheres com 50 e tantos parecem jovem, como demonstra a Lumir feita por Juliette Binoche.

Meu, isso é que é filme dentro de filme. Isso é que é metalinguagem bem usada!

Tudo foge dos excessos. A narrativa é tranquila

E há ainda um elemento a mais, um grande complicador a mais: essa atriz em ascensão cuja fama incomoda Fabienne, essa Manon Lenoir, tem grande semelhança física com Sarah Mondavan, uma jovem atriz que havia sido a melhor amiga de Lumir. Sarah havia morrido muitos anos antes, e de alguma maneira Lumir acreditava que a mãe poderia ter feito algo para impedir a morte.

Na sua autobiografia, Fabienne não citava uma única vez essa moça Sarah, que havia tido tanta importância na vida de sua filha. Quando Lumir pergunta o motivo da ausência de Sarah no livro, Fabienne responde:

– “Minhas memórias. Meu livro. Eu posso escolher o que vou pôr, não?”

E ainda: – “Sou uma atriz. Não vou dizer a verdade. O que conto é muito mais interessante”.

E ainda: – “Eu fui uma mãe ruim, uma amiga ruim, mas e daí? Prefiro ter sido uma mãe ruim, uma amiga ruim e uma boa atriz. Você pode não me perdoar, mas o público perdoa. Mas por que estou dizendo isso? Você não consegue entender o que os atores sentem.”

Sim: trata-se de uma relação mãe e filha que não é, de forma alguma, tranquila, harmoniosa. Uma mulher egocêntrica, voltada para o próprio umbigo, que prefere ter sido uma boa atriz a uma boa mãe e boa amiga.

Mas, ao mesmo tempo, Fabienne não é um monstro, uma pessoa absolutamente horrorosa, desprezível.

E será possível, talvez, haver uma aproximação entre ela e a filha que mora longe.

Volto ao que falei no início: A relação entre Fabienne e Lumir não é nem de longe tão densa, pesada, angustiante quanto no filme de Bergman, nem explosiva, bombástica, extravagante quanto no filme de Almodóvar.

A Verdade não procura, em momento algum, os píncaros, os excessos, os exageros.

Nem no conteúdo – a história, os personagens – nem na forma.

Exatamente como em seu extraordinário Pais e Filhos, Hirokazu Koreeda não fica soltando fogos de artifício, invencionices, criativóis formais. Não há em momento algum do filme uma câmara torta, movimento doidão de câmara, um momento em que o diretor grita para o pobre espectador “olha como eu sou genial!”

A narrativa é sóbria, madura, tranquila.

De vez em quando, a câmara, com placidez, mostra árvores – a casa de Fabienne tem um belo jardim. É outono, tanto na vida da protagonista quanto na paisagem.

O garoto Koreeda faltava à aula para ir ao cinema

Hirokazu Koreeda nasceu em Tóquio, em 1962, o ano em que o já consagrado gigante Akira Kurosawa, então com 52 anos, lançava Sanjuro, após Homem Mau Dorme Bem e Yojimbo, o Guarda-Costas. Sete anos mais velho que Kurosawa, Yasujiro Ozu, que viria a ser o grande mestre de Koreeda, estava com 59 anos quando ele nasceu, e naquele ano lançava o último de seus filmes, A Rotina Tem Seu Encanto, um drama familiar sobre um viúvo que tenta arranjar um casamento para sua filha única. Ozu morreria em 1963, antes de completar 60 anos de idade, vitimado por um câncer.

O grande crítico Roger Ebert escreveu sobre a obra de Koreeda que pôde ver, até sua morte, em 2013: “Seus filmes abarcam o mistério da vida, e nos encorajam a pensar sobre por que estamos aqui, e o que nos faz verdadeiramente felizes”. Segundo Ebert, “se alguém pode ser considerado herdeiro do grande Yasujiro Ozu, seria Hirokazu Kore-Eda”.

Ah, sim, há essa questão da grafia do nome em nossos caracteres. O IMDb grafa Koreeda. A Wikipedia grafa Kore-eda, e há também a forma Kore-Eda.

Ele estreou como diretor em 1989, com uma série documental para a TV. Em setembro de 2022, sua filmografia como diretor continha 28 títulos, contando séries de TV e documentários. Longa-metragens de ficção tinham sido 15, ao longo de 33 anos. Nem tão prolífero quanto um Ingmar Bergman, um Pedro Almodóvar ou um Woody Allen, mas, como eles, autor da maioria das histórias que conta.

Colecionava, até o mês em que vi este belo La Vérité, setembro de 2022, 69 prêmios, fora 117 outras indicações. No Festival de Cannes, um dos três mais importantes do mundo, ao lado dos de Berlim e Veneza, o cara conseguiu emplacar oito filmes.

Parece que o jovem Hirokazu Koreeda era, em Tóquio, um adolescente cinéfilo como foram também François Truffaut em Paris, Martin Scorsese e Woody Allen em Nova York, para citar apenas uns useiros e vezeiros em ir aos cinemas com a mesma assiduidade que à escola.

Ele escreveu: “Em torno de Waseda (o bairro de Tóquio em que morava), tinha vários cinemas, e então a cada manhã, eu saía de casa e via filmes em vez de ir à escola. A experiência de encontrar filmes naquela época é uma das minhas maiores memórias. Antes disso eu não prestava atenção a diretores, mas eu estava na verdade tendo um curso com Ozu, Kurosawa, Naruse, Truffaut, Renoir, Fellini. Como eu sempre tinha sido uma pessoa mais introspectiva, estava mais interessado em ser um roteirista do que um diretor.”

“Uma verdade cruel ou uma doce mentira?”

Koreeda contou que Juliette Binoche tem parte da responsabilidade por ele ter se decidido a fazer La Vérité: “Se eu ousei enfrentar o desafio ambicioso de fazer um primeiro filme no estrangeiro, em uma língua que não é a minha e com uma equipe totalmente francesa, é porque eu tive a oportunidade de encontrar atores e colaboradores que exprimiram o desejo de fazer um filme comigo. Foi Juliette Binoche que provocou a primeira fagulha. Nós nos conhecemos a partir de uma viagem que ela fez ao Japão em 2011, e ela sugeriu que fizéssemos alguma coisa juntos.”

Mais um filme do cineasta sobre família, relações familiares. Em entrevista sobre La Vérité, Koreeda falou sobre o que ele pretende ao abordar seguidamente esse tema: “O que faz com que uma família seja uma família? É a verdade ou a mentira? O que cada pessoa prefere, uma verdade cruel ou uma doce mentira? Essas são as questões que eu não parava de me fazer, e espero que os espectadores procurem suas próprias respostas sobre isso.”

(A foto acima não é de verdade uma cena do filme: é a doce mentira de uma foto posada para o marketing.)

Anotação em setembro de 2022       

A Verdade/La Vérité

De Hirokazu Koreeda, França-Japão-Suíça, 2019

Com Catherine Deneuve (Fabienne Dangeville),

Juliette Binoche (Lumir, a filha de Fabienne)

e Ethan Hawke (Hank, o marido de Lumir), Clémentine Grenier (Charlotte, a filha de Lumir e Hank), Alain Libolt (Luc Garbois, o secretário particular de Fabienne), Manon Clavel (Manon Lenoir, a atriz que faz a mãe da personagem Amy), Ludivine Sagnier (a atriz que faz Amy aos 38 anos), Christian Crahay (Jacques, o companheiro de Fabienne), Roger Van Hool (Pierre, o ex-marido de Fabienne, pai de Lumir), Laurent Capelluto (o jornalista que entrevista Fabienne), Jackie Berroyer (o chef do restaurante), Sébastien Chassagne (o diretor do filme que está sendo rodado com Fabienne), Helmi Dridi (o motorista de Fabienne), Virgile M’Fouilou (o vendedor de arte africana), Hannah Castel Chiche (a atriz que faz Amy aos 10 anos), Mailys Dumon (a atriz que faz Amy aos 17 anos), Damien Dorsaz (o ator que faz o pai de Amy)

Argumento e roteiro Hirokazu Koreeda      

O filme dentro do filme é baseado em conto de Ken Liu 

Fotografia Eric Gautier 

Música Alexei Aigui     

Montagem Hirokazu Koreeda 

Casting Kris Portier de Bellair 

Direção de arte Riton Dupire-Clément       

Figurinos Pascaline Chavanne

Produção Muriel Merlin, 3B Productions, Bun-Buku, MI Movies, France 3 Cinéma, Canal+, Ciné+.

Cor, 106 min (1h46)

***1/2

2 Comentários para “A Verdade / La Vérité”

  1. Pela crítica acho que vou gostar muito desse filme!
    Vou assistir hoje mesmo.

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