Lupin – Parte 3 / Lupin – Partie 3

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(Disponível na Netflix em 10/2023.)

Em time que está ganhando não se mexe – ainda mais se o time está ganhando de goleada. E então a terceira temporada de Lupin, lançada pela Netflix em 5 de outubro de 2023, dois anos e pouco depois da segunda, tem tudo para satisfazer os milhões de espectadores que viram as anteriores. Estão lá os maiores exageros possíveis – Assane Diop, o protagonista, interpretado pelo astro Omar Sy, é mais perfeito, inteligente e safo que o Super-Homem, Indiana Jones e o Capitão Marvel juntos –, e um monte enorme de situação divertidas, agradáveis, gostosas.

Diversão garantida.

E, se a diversão é garantida, se o dinheiro entra sem parar nas burras dos produtores graças à extraordinária audiência, por que parar, parar por quê? Então, depois dos cinco episódios da parte 1, lançada em  janeiro de 2021, dos cinco episódios da parte 2, lançada em junho daquele mesmo, o sétimo episódio desta terceira temporada termina… fisgando o espectador para a temporada 4!

Apenas quatro dias após a estréia desta temporada, em 9 de outubro, o site AlloCiné, que tem tudo, absolutamente tudo sobre os filmes e séries franceses, já trazia uma reportagem com declarações de George Kay, o criador da série, sobre o que vem por aí – ainda não se sabia quando.

“É um final muito aberto que deixa claramente uma enormidade de coisas a explorar e que deixa muitas questões”, disse George Kay ao RadioTimes.com, em entrevista citada pelo AlloCiné.

Nem seria necessário ele dizer isso. Qualquer pessoa que vê esta temporada 3 percebe que é um final muito aberto, que chama o espectador para a temporada 4. Mas achei fascinante que o site especializado no cinema francês já trouxesse essa reportagem apenas quatro dias após a estréia mundial dos sete novos episódios da saga de Assane Diop, o ladrão que se inspira em Arsène Lupin – o personagem criado no iniciozinho do século XX pelo escritor Maurice Leblanc – e se transforma, como seu ídolo havia sido um século antes, no criminoso mais famoso da França.

Portanto, caro eventual leitor, é garantido que vem aí o Lupin Partie Quatre. Mas, diacho, é preciso falar da Partie Trois.

É fundamental deixar claro: esta temporada 3 tem uma trama policial específica, com começo, meio e fim. A primeira grande trama policial havia ocupado as temporadas 1 e 2.

Ahn… Vou tentar explicar melhor.

Esta temporada 3 só tem sentido se o espectador tiver visto antes as outras duas. São feitas muitas referências a fatos da história da vida de Assane Diop mostrados nas temporadas 1 e 2. Assim, é preciso que o espectador tenha visto as primeiras temporadas para compreender o que acontece com o protagonista aqui.

No entanto, rolam acontecimentos, casos policiais, que – ao menos aparentemente – têm aqui na terceira temporada começo, meio e fim.

Um erro de lógica, um erro de geografia

Na minha opinião, a temporada 3 começa com um danado de um erro de lógica. Para o pessoal do site AlloCiné, ela começa com um errinho de geografia bobo, mas que qualquer parisiense nota de cara.

Diz uma reportagem no site:

“Se desde seu lançamento em 2021 Lupin faz questão de honrar a cidade de Paris ao fazer os assinantes da Netflix viajarem aos quatro cantos da capital, a produção comete às vezes pequenos erros, como é o caso no primeiro episódio da temporada 3. Um pequeno detalhe da sequência de abertura, que se passa no metrô parisiense, parece de fato ter escapado às equipes. No princípio do episódio, vemos Assane entrar no metrô pela estação Trocadéro, servida pelas linhas 6 e 9. Duas linhas que ainda não são automatizadas e, portanto, ainda conduzidas por motoristas. Porém, quando Assane está na plataforma, os assinantes não deixaram de notar que o personagem está em uma linha automatizada, e mais precisamente na linha 14, cujo código de cor é roxo escuro. Uma linha que não passa pelo Trocadéro.”

Achei isso delicioso. Nos filmes que se passam em lugares que conheço, presto sempre atenção a esse tipo de detalhe – e sempre reparo quando há algum erro óbvio de localização dos personagens. Imagina se um filme mostra o protagonista entrando na Estação Vila Mariana do metrô de São Paulo, Linha Azul, e logo em seguida descendo daquele mesmo trem, digamos, na Vila Prudente, Linha Verde. Absurdo, meu!

Claro que sei que isso é bobagem, é minudência, não tem importância alguma, mas, diabo, eu reparo nesses detalhes. Adorei ver isso no AlloCiné.

O erro que vi exatamente nessas primeiras sequências da temporada 3 de Lupin foi, como já disse, de lógica.

Há uma reunião com uns trocentes figurões da Polícia francesa para falar sobre a entrega da valiosíssima Pérola Negra a uma autoridade tal e qual. E aí um único policial é escalado para, num carro da Polícia sem identificação como tal, levar a preciosidade.

Truco! Ora, meu, isso é ilógico! Não tem sentido! Uma peça de valor astronômico não poderia jamais ser levada por um único policial civil em um carro normal – seria, com toda certeza, carregada em um carro forte, com guarda armada.

Quando o policial recebe um telefonema de Assane Diop, fazendo-se passar por um oficial superior e dizendo que ele deveria descer do carro, já que o motorista era suspeito, e prosseguir de metrô, gritei “Truco! Isso aí não tem lógica alguma!”

Mary, paciente, retorquiu com o óbvio, tipo: “Cara, isso aí é Lupin, é diversão, é fantasia. Pára com essa coisa de exigir lógica…”

Obviamente Mary estava certa, e o idiota da objetividade aqui estava na canoa errada. Para ver Lupin, e se divertir com a delícia que é a série, é preciso que o caro espectador pegue a lógica e a deixe quieta na mesinha ao lado da poltrona.

Assane está escondido, na moita, na muda

Como as duas anteriores, talvez mais ainda do que as anteriores, esta terceira temporada vai e volta no tempo. Mostra basicamente dois momentos da vida de Assane Diop: os dias de hoje, que a série identifica como sendo 2021, e a época em que Assane era adolescente – 1998. Essas duas datas aparecem várias vezes na tela, ao longo dos sete episódios da terceira temporada, assim como já haviam aparecido nas duas primeiras.

Nos dias de hoje, 2021, Assane está vivendo em Marselha escondido do mundo, recluso, na moita, na muda. Esperando, talvez, a poeira baixar um pouco: logo antes disso, no final da segunda temporada, ele havia aparecido demais na mídia, ao expor ao mundo, da maneira mais teatral possível, os casos de corrupção de seu Inimigo Número 1, o bilionário Hubert Pellegrini (Hervé Pierre).

Só que o roteiro escrito por diversas mãos sob a coordenação de George Kay –  roteiro esperto, malandro, safo –começa com fatos de um pouco antes disso, 2017. Os quatro algarismos aparecem na tela sobre uma belíssima tomada aérea de Paris, a Torre Eiffel em primeiro plano. Segue-se a tal sequência em que um único sujeito se encarrega de levar a Pérola Negra, a jóia que é tão preciosa que “encerrou a guerra franco-taitiana em 1847”, até uma determinada repartição do governo francês. No caminho, o policial recebe um telefonema de Assane se passando por um superior hierárquico,  cai no conto dele, desce do carro, entra no metrô.

Segue-se a sequência de ação em que Assane, ladrão elegante e não violento como seu ídolo Arsène Lupin, rouba a pérola do agente bobão.

Mas Assane não consegue fugir com o butim. Antes de sair da estação de metrô, é dominado por policiais.

Foi o único fracasso de sua carreira, ele dirá, mais de uma vez, ao longo desta temporada.

Só depois desse lance ocorrido em 2017 é que vemos Assane nos dias de hoje, escondido em Marselha.

Todos os sete episódios usam aquele esqueminha que virou padrão: há uma ou duas sequências de abertura, chamativas, envolventes, para fisgar o espectador, e aí então, ali pelo terceiro, quarto minuto de ação, entram os créditos iniciais.

E, enquanto rolam os créditos iniciais, vemos um Assane Diop-Omar Sy vestidão como um árabe, com uma espessa barba, chegando em sua casa em Marselha, falando olá para seu amado cachorrinho J’Accuse e ligando a televisão.

A televisão mostra que não adiantou ele se esconder, ficar quieto, na muda: Assane Diop continua sendo notícia. “Um ano após seu golpe espetacular no evento dos Pellegrini, o ladrão mais famoso da França está desaparecido”, diz a apresentadora do telejornal. “A Polícia diz ter várias pistas, mas não houve ainda nenhuma prisão. Seria impossível desaparecer sem cúmplices ou uma grande rede criminosa, mas tudo aponta para a esposa de Assane Diop. A parceira do fugitivo, que nega saber de algo, continua sendo o foco da polícia e da mídia.”

E então Assane e o espectador vêem na tela da TV imagens rápidas da bela mulher dele, Claire (o papel de Ludivine Sagnier, na foto acima), tentando se esquivar do enxame de repórteres, e pedindo, em vão: “Nos deixem em paz, por favor”.

Diante das imagens na TV de sua mulher sendo assediada pelos repórteres, Assane toma a decisão: “Vamos, J’Accuse. Vamos para casa.”

E aí vemos uma tomada geral e Paris à noite – uma tomada de beleza esplendorosa.

(O detalhe do nome do cachorrinho é uma delícia. J’Accuse, eu acuso, talvez algum eventual leitor não se lembre, é o título do artigo de Émile Zola, em forma de carta aberta ao presidente da República, publicado na primeira página de um jornal parisiense em 1898, proclamando a inocência de Alfred Dreyfuss, que havia sido condenado por traição.)

Tudo tem a ver com fatos do passado – e com lealdade

Assane marca um encontro com Claire. Seria a primeira vez em que se veriam frente a frente depois de muitos, muitos meses.

A sequência é de uma fantástica beleza plástica.

Assane propõe que os três – o casal e o filho, Raoul (Etan Simon), adolescentão aí de uns 15 anos – fujam, saiam da França, “para longe, onde não nos conheçam“.

Claire é dura: – “Quer consertar as coisas? Então se entregue. É a única maneira.”

E, diante da expressão dele de que se entregar está fora de cogitação, Claire diz (e essa moça Ludivine Sagnier está simplesmente brilhante naquela tomada): – “Foi o que pensei. Você não é um herói, Assine. Você é um covarde”.

Estamos aí chegando aos 10 minutos dos 42 que dura o primeiro episódio desta terceira temporada. Claire vai embora, Assane fica paradão, sem saber o que fazer.

Sem saber o que fazer só naquele exato momento, para criar uma sequência legal, interessante. Porque Assane Diop, melhor que qualquer super-herói da Marvel ou da D.C. Comics, sempre sabe tudo – e na sequência seguinte, conversando com seu amigo da vida inteira Benjamin Ferel (Antoine Gouy, na foto acima), ele diz: – “Eu tenho um plano. Mas é complicado.”

O que todos os sete episódios desta terceira temporada mostram, a partir daquele momento, 10 minutos do primeiro, é a execução do plano que Assane Diop bolou a partir daquele rápido diálogo com Claire.

A temporada mostra a execução do plano – e diversas sequências de um quarto de século antes, que explicam por que estão acontecendo muitas das coisas que estamos vendo ocorrer nos dias de hoje.

Lupin – Parte 3 insiste muito em mostrar que quase tudo do que rola em 2021 tem origem um quarto de século antes, quando ele, Assane, e também Ben, e Claire, e mais outro grande amigo, Bruno, eram adolescentes. (O Assane adolescente é interpretado por Mamadou Haidara; Claire, por Ludmilla Makowski, uma gracinha; Ben, por Adrian Valli De Villebonne; e Bruno, por Noé Wodecki.)

Tudo, ou no mínimo quase tudo o que acontece com Assane, o protagonista, se explica pelo passado, tem origem no passado.

E tudo tem a ver com lealdade.

Só que – interessante – a série não é muito leal com seus espectadores.

Nas temporadas 1 e 3, o importante era o pai de Assane. A mãe sequer aparecia, pelo que me lembro.

Nesta terceira temporada, o pai mal é citado. A mãe, interpretada por Naky Sy Savane (na foto abaixo), surge de repente, do nada – e ela é fundamental na trama.

O mirabolante plano que Assane bola – um último sensacional assalto bem na Place Vendôme, o local que concentra as maiores joalherias, à vista de todo o mundo, a França inteira observando, e depois a encenação, falsa, é claro, de sua própria morte – vai muito bem. Como tudo que esse super-herói faz. Mas aí ele recebe o aviso de que sua mãe, recém-chegada a Paris, vinda do Senegal, havia sido sequestrada. E as exigências dos sequestradores eram imensas, amazônicas, jupiterianas.

Um sucesso extraordinário, fenomenal

A primeira temporada de Lupin – lançada, como já foi dito, em janeiro de 2021 – foi um sucesso avassalador. Uma coisa impressionante.

A série conseguiu um feito histórico: foi a primeira produção francesa a chegar à lista das 10 mais vistas na Netflix nos Estados Unidos – e conseguiu chegar ao topo da lista, deixando para o segundo lugar a badaladíssima Bridgerton! E não foi só nos Estados Unidos, mas em diversos países que Lupin ficou entre as produções mais vistas na Netflix – inclusive o Brasil.

De acordo com um levantamento feito pela Decode, empresa especializada em coleta de dados e performance, a busca no Google pelo título de livros com o nome “Lupin” disparou 4.336%, enquanto a pelo nome do ator Omar Sy aumentou 1.802% após a estréia da série.

A Hachette, que edita os livros de Maurice Leblanc na França, relançou vários deles. Os livros estavam fora de catálogo no Brasil, e vários deles foram relançados

O sucesso continua agora. O site AlloCiné fez reportagem mostrando que Lupin foi a série mais vista da semana de seu lançamento, e transcreveu comentários entusiásticos dos espectadores. Um deles disse: “Devorei todos os episódios em uma única tarde. A temporada 3 é muito bela. Omar Sy sempre no topo. Passei um bom momento. Que venha a temporada 4”.

Deve ter gente sentindo a mesma coisa mundo afora.

Anotação em outubro de 2023

Lupin – Parte 3/Lupin – Partie 3

De George Kay, criador, roteirista, França, 2023

Direção Ludovic Bernard, Daniel Grou, Xavier Gens

Com Omar Sy (Assane Diop)

Ludivine Sagnier (Claire), Etan Simon (Raoul, o filho de Assane e Claire), Antoine Gouy (Benjamin Ferel, o grande amigo de Assane),

 Mamadou Haidara (Assane adolescente), Ludmilla Makowski (Claire adolescente), Adrian Valli De Villebonne (Benjamin Ferel adolescente), Noé Wodecki (Bruno adolescente).

Soufiane Guerrab (Youssef Guedira, o policial que sabe tudo sobre Arsène Lupin), Shirine Boutella (tenente Sofia Belkacem), Naky Sy Savane (Mariama), Martha Canga Antonio (Fleur Bélanger, a repórter), Salif Cissé (Jean-Luc Keller, da academia de boxe), Adèle Wismes (Clémentine Vidal), Sandra Parfait (Manon), Nicolas Berno (Ferdinand), Julien Pestel (Arnold de Garmeaux)

e, em rapidíssimas participações especiais, Nicole Garcia (Madame Anne Pellegrini) e Hervé Pierre (Hubert Pellegrini)

Roteiro George Kay, criador, e François Uzan, Florent Meyer, Tigran Rosine, Marie Roussin, Nathan Franck, Louis Penicaut, Kam Odedra. Adam Usden

Baseado nos personagens dos livros de Maurice Leblanc

Fotografia Maxime Cointe, Nicolas Massart

Música Mathieu Lamboley

Montagem Jean-Daniel Fernandez Qundez 

Casting Michael Laguens, Clémence Aubry

Desenho de produção Françoise Dupertuis 

Figurinos Olivier Bériot

Produção Isabelle Degeorges, Nathan Franck, Martin Jaubert, Sidonie Dumas, Christophe Riandee, Omar Sy, Gaumont Television, Netflix.

Cor, cerca de 320 min (5h20)

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