Criminal: Reino Unido / Criminal: United Kingdom

Nota: ★★★☆

Criminal: Reino Unido tem um episódio, em especial, que já valeria todo o conjunto de séries Criminal, feitas por equipes do Reino Unido, França, Alemanha e Espanha. Tem o título de “Alex”, e Alex (interpretado, brilhantemente, por Kit Harington), está sendo interrogado porque foi acusado de estupro.

É uma maravilha, um absurdo de coisa bem feita – e que magnífica, extraordinária coragem mostrar aquela história, defender aquela posição!

“Alex” é o episódio que mais me impressionou, que me deixou absolutamente chapado de admiração entre os sete realizados pelo Reino Unido. Há outros excelentes, mas nem todos têm a mesma qualidade – e isso é algo absolutamente natural.

Antes de falar especificamente dos episódios do Reino Unido, no entanto, acho que é necessário dar uma geral sobre o conjunto de séries Criminal. E aí é forçoso reconhecer: é um belo trabalho – quatro séries realizadas e lançadas simultaneamente, a partir de um mesmo modelo, e executadas por equipes de quatro diferentes países.

Quatro países, quatro séries, cada série originalmente com três episódios de cerca de 45 minutos cada. O mesmo modelo, o mesmo formato: cada série mostra um grupo de policiais interrogando suspeitos – um suspeito em cada um dos episódios. Cada episódio tem como título o prenome do suspeito.

Toda a ação se concentra em uma central de polícia. Não há flashback, não há cenas exteriores. Tudo se passa na sala de interrogatório e na sala ao lado, em que ficam policiais que observam tudo mas não são vistos pelo suspeito – aquele esquema de duas salas contíguas separadas por uma grande janela que de um lado é vidro, simplesmente, e do outro lado é espelho.

Os policiais da sala ao lado esquadrinham todos os movimentos do suspeito, que está sendo filmado quase todo o tempo. Já na sala de interrogatório, em que há apenas uma grande mesa e cadeiras, o que se vê é apenas um grande espelho.

Há também um corredor que liga as duas salas e um hall externo com máquinas com refrigerantes e salgadinhos e doces.

A idéia básica, geral, partiu dos jovens produtores e roteiristas ingleses Jim Field Smith e George Kay, donos de uma produtora independente, Idiot Lamp, e foi comprada pela Netflix. Equipes de roteiristas, diretores, atores e técnicos de cada um dos demais países criaram e executaram suas próprias séries, sob a supervisão geral de Smith e Kay. É absolutamente extraordinário, fascinante, como há uma unidade formal em todo o projeto – e, ao mesmo tempo, como cada série reflete nitidamente muitas das características específicas de seu país.

Os realizadores optaram por algo surpreendente: todo o conjunto de salas, corredor e hall, todo o espaço físico da central de polícia é exatamente o mesmo em Londres, em Paris, em Berlim e em Madri. Exatamente o mesmo: todos os 12 episódios iniciais, três de cada um dos quatro países foram filmados num estúdio usado pela Netflix na região de Madri.

Fantástico: no aspecto físico, visual, é tudo absolutamente idêntico – por mais diferentes que sejam as economias, as tradições, os costumes, as formas com que cada polícia se organiza naqueles quatro países.

Mudam os métodos de interrogatório, assim como mudam as leis penais de país para país. Muda um tanto a forma com que os policiais se relacionam entre eles, é claro. Muda muita coisa – enquanto muitas características são idênticas.

Todos os 12 episódios – os interrogatórios de 12 suspeitos – foram lançados pela Netflix no mesmo dia, 20 de setembro de 2019.

Os ingleses, os criadores da coisa toda, partiram logo para uma segunda temporada e fizeram quatro novos episódios até aqui, lançados em 16 de setembro de 2020. Não sei se há planos de alemães, franceses e espanhóis criarem suas novas temporadas.

Reino Unido, França, Espanha, Alemanha: o mesmo padrão

Mary e eu deixamos para ver por último os sete episódios do Reino Unido, depois de termos visto os episódios de França, Alemanha e Espanha. Não por um planejamento, um esquema – simplesmente aconteceu assim. A ordem com que cada espectador vê as quatro diferentes séries, de qualquer forma, não importa nada – são histórias absolutamente independentes uma da outra.

Não saberia dizer qual das quatro é a melhor, qual é a pior. Acho que todas são bastante boas, no geral – e todas podem ser colocadas no mesmo padrão de qualidade.

A espanhola me impressionou bastante, entre outras características, por mostrar como os policiais de Madri tentam obter a confissão dos suspeitos por meios menos dignos, menos corretos, mais fora das regras. A série alemã é fantástica por mostrar características específicas do país: a herança da divisão da Alemanha em duas, a capitalista e a comunista, que durou entre 1945, o imediato pós-guerra, e 1989, com o fim do Império Soviético e seus satélites, e a questão da convivência com os refugiados são temas importantes dos três episódios.

Em todas as quatro séries, as atuações são excelentes. É impressionante como nesse ponto há um padrão imutável. A direção de atores é magnífica, a escolha do elenco é ótima.

Os atores que fazem os policiais não são grandes astros, não são muito famosos internacionalmente. Talvez os mais conhecidos, entre os que interpretam os policiais, sejam a espanhola Emma Suárez, que está em Julieta (2016) de Pedro Almodóvar, e o inglês Lee Ingleby, que fez Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (2004).

Na série francesa, há a participação especial da grande Nathalie Baye, como um dos suspeitos interrogados – e está brilhante a atriz com quem François Truffaut fez três de seus 21 longa-metragens. Da mesma maneira, na série alemã a maravilhosa Nina Hoss faz uma das interrogadas. As participações de Nathalie Baye e Nina Hoss são uma cereja no bolo, uma absoluta delícia.

Sophie Okonedo dá um show como uma interrogada

 Criminal: Reino Unido tem a participação especial de Sophie Okonedo (nas fotos acima e abaixo), que faz o papel de Julia Bryce, a interrogada do episódio 1 da segunda temporada.

Sophie Okonedo dá um show de interpretação. Uma aula. Meu, a moça podia estar entre os professores do Actors Studio, a lendário escola de atores de Nova York por onde passaram Marlon Brando, Paul Newman, Warren Beatty, Al Pacino, Robert De Niro.

Julia é chamada àquela central de polícia para depor sobre detalhes relacionados ao assassinato cometido pelo seu ex-marido, Philip, que estava preso. Ela não é suspeita – é uma testemunha, convidada a dar esclarecimentos. Tanto assim que quem faz as perguntas a ela é uma oficial de menor importância dentro da equipe, a detetive policial Vanessa Warren (o papel de Rochenda Sandall).

Na central de polícia inglesa, há uma rígida divisão de classes, como de resto em toda a sociedade inglesa. Temos uma inspetora chefe, Natalie Hobbs (Katherine Kelly). Abaixo dela, há os detetives inspetores. São dois, Tony Myerscough (o papel de Lee Ingleby, como já foi dito), e Paul Ottager (interpretado por Nicholas Pinnock). Há um detetive sargento, Jamie Reiss (Aymen Hamdouchi). E, abaixo deles os detetives policiais. Além de Vanessa Warren, estão nesse nível o experiente Hugo Duffy (Mark Stanley) e o bem jovem Kyle Petit (Shubham Saraf).

É dada tão pouca importância ao depoimento da testemunha Julia que não há ali, naquele domingo, nenhum dos elementos mais importantes na escala social-policial. Na sala de interrogatório está Vanessa, soldado raso, e na sala de controle, de onde se vê tudo o que se passa na outra, está Kyle, outro soldado raso.

O ex-marido de Julia, Philip, havia sido preso por assassinar Max, um aluno dele numa escola de Letras. E Vanessa vai fazendo as perguntas a Julia para checar as informações que a polícia tinha já, para ver se não há alguma discrepância.

Julia-Sophie Okonedo vai falando com a policial de uma maneira simples. Parecia pouco à vontade no início do interrogatório, mas vai ficando mais à vontade à medida em que a policial se mostra tranquila, afável.

Julia-Sophie Okonedo é uma cidadã britânica simples, working class. Como tem a pele escura, e certamente enfrentou situações de discriminação social e racial, mostra-se um tanto tímida, diante de uma agente da polícia, do Estado.

Tudo vai seguindo de uma forma quase entediante – quando, de repente, na sala de controle, o rapaz Kyle percebe que há algo muito estranho no que Julia acabava de dizer.

E então tudo muda.

Kyle liga para um superior. Que, depois de algum tempo, liga para um superior seu.

Tudo, no rosto, no comportamento corporal, na voz, em todas as atitudes, tudo muda: Julia-Sophie Okonedo é outra pessoa agora, completamente diferente da anterior.

Confesso que não me lembrava de Sophie Okonedo quando vimos este Criminal: Reino Unido, mas ela é uma atriz de belíssimo currículo. Foi indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por sua interpretação de Tatiana Rusesabagina em Hotel Ruanda (2004). Em 2010, fez o papel de Winnie Mandela no filme feito para a TV Mrs Mandela, pelo qual recebeu indicação ao Bafta de melhor atriz.

Ela está também no elenco do belo A Vida Secreta das Abelhas/The Secret Life of Bees (2008). E, como bem lembrou meu amigo José Luís Fino, está ainda no ótimo Coisas Belas e Sujas/Dirty Pretty Things (2002).

Atenção: vem aí spoiler!

As séries alemã, francesa e espanhola fizeram belos episódios em que os interrogados revelavam fatos absolutamente insuspeitados pela polícia até então.

A série do Reino Unido traz, em “Alex”, um caso que é único em todo o conjunto Criminal.

Mas aqui é obrigatório advertir: o eventual leitor que ainda não viu Criminal: Reino Unido tem que parar de ler este texto agora.

Ao falar do episódio “Alex”, vou apresentar spoilers.

Para apresentar spoilers, eu aviso, e aviso, e aviso. Se o eventual leitor optar por continuar lendo, o problema é dele.

Eu bem que avisei.

Atenção, atenção, atenção: spoiler total!

Alex garante aos policiais que não estuprou a moça que o acusa.

É Jim Field Smith, um dos criadores de todo o conjunto de séries, que dirige os episódios do Reino Unido.

“Alex”, o segundo episódio da temporada dois, começa com uma longa, bem longa, mas bem longa tomada do ator Kit Harington (na foto acima), que interpreta Alex. Ele vai apresentando sua versão de como as coisas aconteceram, naquela noite em que ele e Sarah foram a um bar, com colegas da firma, e depois foram para a casa dele.

A tomada de abertura é de se aplaudir de pé, como na ópera. Dura incríveis seis minutos. seis longos minutos, sem corte, a câmara diante de um ator, o ator falando aquelas longas, intermináveis falas.

A fala de uma tomada de, digamos, 30 segundos, é fácil de decorar. É fácil de filmar. Dá para filmar várias vezes – para depois, mais tarde, na sala de montagem, se escolher qual foi a melhor. Unidas as diversas tomadas curtas em que o ator diz suas falas, temos aí um depoimento longo – apresentado da forma mais tradicional, mais usual.

Já uma tomada de 6 minutos é um colosso. É para a gente aplaudir de pé, como na ópera.

Na imensa maioria dos 16 episódios do conjunto de séries Criminal, o interrogado começa mentindo. É o tal jogo de gato e rato, o jogo de especialista e criminoso – um enfrentamento psicológico, gente treinada para interrogar versus suspeito, provável criminoso.

Na imensa maioria dos 16 episódios, o interrogado é culpado.

Alex não é culpado. Alex não estuprou Sarah.

A acusação falsa que se espalha aos ventos

E é aqui que este Criminal: Reino Unido deixa de ser uma simples série policial e se transforma em algo muito maior.

No episódio “Alex”, Criminal; Reino Unido ousa ir contra a maré que vem, há anos e anos e mais anos, garantindo que todo homem é absolutamente culpado e toda mulher é absolutamente inocente nos casos em que ela denuncia que foi estuprada.

Com uma coragem enorme, imensa, descomunal, Criminal: Reino Unido vem dizer que não é sempre assim, não.

Nem toda acusação de estupro corresponde à verdade dos fatos.

Há mulheres que mentem.

E, quando a mulher mente, e o acusado de ser um molestador, um tarado, um criminoso, um violador, um estuprador, é inocente… Como é que se faz?

Depois de acusado injustamente, depois de ter seu nome exposto em público como estuprador, o homem perde o respeito de sua mulher, de seus filhos, de seus amigos, de seus colegas de trabalho – e aí, como é que se faz?

Quando, ao ter acesso a uma evidência sobre a vida de Sarah, a acusadora, os policiais percebem que Alex é inocente – ou no mínimo, no mínimo, que não têm prova alguma, e ele pode ser inocente – me lembrei, de imediato, do magnífico Dúvida/Doubt (2008).

Em Dúvida, espalha-se um boato, uma mentira. E o protagonista da história, o padre Flynn (papel do grande Philip Seymour Hoffman), faz um sermão absolutamente maravilhoso, sobre a fofoca, a maldade que se espalha como um veneno que ninguém depois tem condições de aprisionar de volta:

– “Uma mulher estava fofocando com sua amiga sobre um homem que elas mal conheciam – eu sei que nenhum de vocês faz isso. Naquela noite, ela teve um sonho: uma grande mão apareceu apontando para ela. Ela foi imediatamente tomada por uma gigantesca sensação de culpa. No dia seguinte foi se confessar. Chegou-se para seu velho pároco, o Padre O’Rourke, e contou tudo para ele. ‘Fofocar é pecado?’, perguntou. ‘Era a mão de Deus Todo Poderoso apontando contra mim? Devo pedir sua absolvição? Padre, eu fiz algo errado?’ ‘Sim’, respondeu o padre O’Rourke. ‘Sim, mulher ignorante, mal criada. Você prestou falso testemunho sobre seu vizinho. Você brincou com a reputação dele, e deveria se sentir profundamente envergonhada.’ E então a mulher disse que sentia muito, e pediu pelo perdão dele. ‘Não tão depressa’, disse O’Rourke. ‘Quero que você vá para casa, pegue um travesseiro, coloque-o no alto de sua casa, corte o travesseiro com uma faca, e volte aqui.’ Então a mulher foi para casa, pegou um travesseiro de sua cama, uma faca da gaveta, subiu até o telhado e esfaqueou o travesseiro. Depois voltou ao velho padre, conforme ele havia ordenado. ‘Você cortou o travesseiro com a faca?’, ele perguntou. ‘Sim, padre.’ ‘E qual foi o resultado?’ ‘Penas’, ela respondeu. ‘Penas’, ele repetiu. ‘Penas, em todos os lugares, padre.’ ‘Agora quero que você volte lá e junte cada uma das penas que voaram com o vento.’ ‘Bem’, ela disse, ‘isso é impossível. Não sei para onde elas foram. O vento as levou para todos os cantos.’ ‘E isso’, disse o padre O’Rourke, ‘é o boato!’’

O caso de Alex é ainda pior. Não foi um boato, foi uma informação verdadeira que se espalhou – a de que ele havia sido preso acusado de ser um estuprador, um criminoso.

E agora? Como fazer para ir recolhendo pela cidade inteira as penas que foram voando, espalhando por todos os lugares que o cara tinha sido preso como estuprador?

Alex insiste em exigir que os policiais que o prenderam façam alguma coisa para recolocar tudo no lugar em que estava antes.

Os policiais não demonstram sequer vergonha, arrependimento – quanto mais simpatia pelo sujeito que acusaram injustamente.

É o momento, entre todos os 17 episódios desse conjunto de séries, em que o espectador tem todo o direito de odiar os policiais.

Anotação em dezembro de 2020

Criminal: Reino Unido/Criminal: United Kingdom – A Primeira e a Segunda Temporadas

De: Jim Field Smith e George Kay, criadores, Inglaterra, 2019-2020

Direção Jim Field Smith

Com Katherine Kelly (detetive inspetora-chefe Natalie Hobbs), Lee Ingleby (detetive inspetor Tony Myerscough), Rochenda Sandall (detetive policial Vanessa Warren), Shubham Saraf (detetive policial Kyle Petit), Mark Stanley (detetive policial Hugo Duffy), Nicholas Pinnock (detetive inspetor Paul Ottager), Aymen Hamdouchi (detetive sargento Jamie Reiss)

e David Tennant (Dr. Edgar Fallon, o interrogado do episódio 1), Hayley Atwell (Stacey Doyle, a interrogada do episódio 2), Youssef Kerkour (Jay Muthassin, o interrogado do episódio 3), Sophie Okonedo (Julia Bryce, a interrogada do episódio 1 da segunda temporada), Kit Harington (Alex, o interrogado do episódio 2 da segunda temporada), Sharon Horgan (Danielle Dunne, a interrogada do episódio 3 da segunda temporada), Kunal Nayyar (Sandeep Singh, o interrogado do episódio 4 da segunda temporada)

e Lolita Chakrabarti (Anita Baines), Mark Quartley (Jeremy Nicholson), Kevin Eldon (Michael Walker), Rakhee Thakrar (Nasreen Shah), Amanda Drew (a advogada de Alex, sem nome), Jyuddah Jaymes (Henry Regis), Annette Badland (Donna Swift), os advogados

Argumento e roteiro Jim Field Smith e George Kay

Fotografia Jamie Cairney

Montagem David Webb

Casting Amy Hubbard, Yaël Moreno

Direção de arte Alejandro Fernández

Produção Idiot Lamp Productions. Distribuição Netflix.

Cor, cerca de 315 min (5h15)

***

7 Comentários para “Criminal: Reino Unido / Criminal: United Kingdom”

  1. Sophie Okonedo entrou num filme de que o Sérgio (e eu) gostamos muito: Dirty Pretty Things que se chamou no Brasil Coisas Belas e Sujas e em Portugal Estranhos de Passagem.
    Lembra-se? Fazia o papel da prostituta que trabalhava no hotel.

  2. Verdade, caríssimo José Luís, verdade!
    Eu não me lembrava! Muito obrigado pela lembrança.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Gostaria de saber se as séries retratam fatos verídicos que ocorreram em cada país.
    Tô amando Criminal.

  4. Não, Leila. Que eu saiba, são histórias fictícias. No material todo que li não havia qualquer menção a casos baseados em eventos reais. É imaginação mesmo.
    Um abraço.
    Sérgio

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