O Quarto Verde / La Chambre Verte

Nota: ★★★☆

O Quarto Verde, de 1978, décimo-sétimo dos 21 longa-metragens de François Truffaut, é sem dúvida alguma o mais estranho de toda a sua obra magistral. É um filme que fala o tempo todo de morte, em que o protagonista – interpretado pelo próprio Truffaut – é um homem que prefere viver entre os mortos.

É lúgubre, sombrio, tenebroso, quase macabro. Não parece Truffaut, esse realizador genial, maravilhoso, que amava apaixonadamente a vida, o amor, as mulheres, os livros, os filmes.

Não parece Truffaut. Truffaut fazia filmes pessoais, personalíssimos, sobre pessoas, situações, coisas que conhecia, de que gostava, que admirava.

Ao rever La Chambre Verte agora, depois de muitos anos, fiquei me perguntando por que raios, afinal, Truffaut quis fazer este filme. O que ele quis dizer.

Muito provavelmente vou encontrar a resposta ao ler, em seguida, o que dizem os livros sobre o cineasta – e o que ele próprio escreveu.

Uma filosofia de vida: como conviver com os mortos

La Chambre Verte começa com cenas da Primeira Guerra Mundial, a que, diziam, iria para acabar com todas as guerras. São imagens de cinejornais da época – as trincheiras, os canhões, as bombas, o rastro de destruição, soldados saindo das trincheiras e avançando, soldados sendo metralhados pelo inimigo, as pilhas de cadáveres na trincheira.

Justapostas às cenas da guerra, aparecem imagens do próprio Truffaut, em uniforme de soldado do Exército francês.

Os créditos iniciais vão rolando sobre as cenas da guerra. O roteiro é assinado por Truffaut e Jean Gruault, “sobre temas de Henry James”. Não me lembrava disso.

Um letreiro informa: “A História de ‘O Quarto Verde’ se desenrola em uma pequena cidade do Leste da França. Ela começa dez anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, que fez milhões de mortos.”

1914-1918. Dez anos depois – estamos portanto em 1928.

A primeira sequência do filme, após essas imagens de abertura, mostra um velório – e o roteiro escrito por Truffaut e Jean Gruault já naqueles primeiros momentos do filme define para o espectador, com maestria, com perfeição, muito da personalidade do protagonista, Julien Davenne, interpretado pelo realizador.

Gérard Mazet (Jean-Pierre Moulin) havia perdido sua Geneviève – e, a princípio até tenta fazer o amigo Julien não entrar no salão em que ela está exposta no caixão: – “Prefiro que você se lembre de Geneviève sorrindo, quando era viva. Não quero que a veja”. Mas Julien é firme: – “Quero ficar com você, Gérard”, e os dois entram no salão em que está Geneviève, loura, longos cabelos louros, uma bela mulher: a atriz Annie Miller faz o papel da morta, e a câmara do diretor de fotografia Nestor Almendros, um gênio, um dos maiores da História, a focaliza em close-up.

Instantes depois, a dor faz Gérard se descompor. Quando chegam funcionários para lacrar o caixão, ele começa a chorar, agarra-se ao corpo da mulher morta, diz que não vai deixá-la, implora para que ela não o deixe.

Um padre (interpretado por Jean-Pierre Ducos) entra em ação. Desfia aqueles argumentos católicos todos: ela não morreu, foi ter com o Senhor, quando chegar o Dia do Juízo Final todos se reunirão com o Senhor para a vida eterna, console-se, resigne-se, pense em Deus, paciência, paciência e esperança…

E então é Julien que intervém, e com firmeza, quase com virulência. Dá uma bronca no padre: – “Os que estão de luto não querem ver os mortos daqui a 20 ou daqui a mil anos. Querem vê-los de novo agora. Então, se não puder trazer Geneviève Mazet de volta agora, não tem nada o que fazer aqui!” – e vai empurrando o padre para fora da sala. “Saia, saia!”

Fecha a porta dupla do salão, e senta-se ao lado do amigo Gérard. E explica para o amigo a sua filosofia de vida – que, na verdade, é sua filosofia de como encarar a morte: – “Eu sei como você se sente. Você queria estar morto em vez dela, ou estar morto ao lado dela. Mas só depende de você que Geneviève continue a viver. Aconteceu exatamente o mesmo comigo, Mazet. Minha mulher morreu há 11 anos, meses depois do casamento, durante uma viagem à Itália. Como você, achei que não viveria sem ela. Como você, ouvi apenas palavras estúpidas de resignação. Como você, eu queria morrer.”

– “E encontrou coragem de continuar sem ela? – pergunta Gérard, o rosto molhado pelas lágrimas.

– “Decidi que, embora estivesse morta para os outros, para mim estava viva. Ouça, Mazet, é importante.” – Apaga a luz do salão, aproxima-se do caixão: – “Para os indiferentes, os olhos de Geneviève estão fechados. Mas para você, Gérard, estarão sempre abertos. Não pense que a perdeu. Pense que agora nunca poderá perdê-la. Dedique todos os seus pensamentos, as suas ações, todo o seu amor a ela. Os mortos pertencem a nós, se aceitamos pertencer a eles. Acredite em mim, Gérard: os mortos podem continuar a viver.”

Uma moça bela e jovem na vida do protagonista

Essa sequência, a primeira do filme, após os créditos iniciais, termina quando estamos com 7 minutos. Na segunda sequência, Julien Davenne está em uma casa de leilões, em que vão ser leiloados os bens da família Vallance – móveis, tapetes, objetos de arte, livros, como informa um cartaz pregado a uma porta.

A secretaria do leiloeiro, uma moça jovem, bonita, vem saber como pode ajudá-lo. Julien explica que está procurando um objeto específico, que pertencia à família Vallance – e ele descreve em detalhes um anel. A moça diz que as jóias não estão ainda ali, mas ela vai procurar por aquele item específico e, se encontrar, vai separar para que ele o veja de antemão, antes da realização do leilão das jóias.

Como é tudo bem costurado no roteiro criado por Truffaut e Jean Gruault!

O anel, a moça que trabalha para o leiloeiro, Gérard Mazet – todos esses elementos apresentados nestes primeiros 10 minutos de filme têm importância.

A moça veremos que se chama Cecilia Mandel, e é o papel de uma Nathalie Baye que me pareceu extremamente, mas extremamente jovem. Tem uma carinha de jovem de uns 20 anos e bem pouquinho. Na verdade, estava, em 1978, o ano de lançamento de La Chambre Verte, com 30 anos de idade. Este aqui foi o terceiro filme de Truffaut em que ela trabalhou. Em A Noite Americana, de 1973, fez o papel de Joelle, que é, teoricamente, a script-girl do filme que o diretor Ferrand (o papel do próprio Truffaut) está realizando, mas na verdade é muito mais que isso, é uma assistente do diretor, seu braço direito. Joelle, na verdade, é um papel inspirado em Suzanne Schiffman, uma das mais fiéis colaboradoras de Truffaut. (Neste La Chambre Verte ela é assistente de direção; em alguns filmes assinou o roteiro ao lado do realizador.)

Em 1977, no filme que vem logo antes deste aqui, O Homem Que Amava as Mulheres, Nathalie Baye havia interpretado Martine, uma das poucas moças que o protagonista da história fica conhecendo e não canta, não come.

Cecilia, o papel de Nathalie Baye aqui, é o segundo personagem mais importante do filme. Os nomes dela e de Truffaut aparecem no mesmo quadro, juntos, nos créditos iniciais.

Um santuário dedicado à mulher morta

Na segunda vez em que se encontram, Cecilia informa que aquele anel que Julien descreveu está, sim, entre os objetos a serem leiloados – e confessa para ele que os dois já haviam se visto anteriormente. Tinha sido muitos anos antes; ela ainda era uma adolescente, e tinha ficado muito impressionada porque ele não a tratou como criança, e sim como adulta. Diante dessas declarações, Julien pergunta o nome do pai dela, e vai se lembrando – embora um tanto vagamente – que, sim, de fato ele tinha conversado com ela, justamente numa viagem à Itália.

Há ainda um elemento que os une – ela depois dirá a ele. Ela ouvira falar que Julien tinha tido uma visão de Julie, sua esposa, logo depois que ela morreu. E o mesmo acontecera com ela: ela tinha tido uma visão do pai pouco depois da morte dele.

Porque ambos tiveram uma visão de pessoa querida morta, porque ela gosta de coisas antigas, e de pessoas mais velhas, os dois vão ficando mais próximos, quase amigos, a moça bonita e jovem e o homem de meia-idade que mais convive com a esposa morta do que com seres vivos.

Julien não tem coragem de ir ao leilão das jóias da família Vallance, mas manda no lugar dele sua governanta, uma senhora mais idosa, Madame Rambaud (Jeanne Lobre) – e ela arremata o anel que Julien queria.

O anel havia pertencido a Julie – na placa junto do túmulo de Julie, que Julien visita com bastante frequência, está escrito “Julie Davenne, née Vallance – 1897-1919”. Julie era Vallance antes de se casar; o anel tinha ficado entre os pertences da família.

Julien leva o anel e o coloca em uma mão de madeira que fica no quarto verde de sua ampla casa – o quarto verde é inteiramente dedicado à memória de Julie, cheio de fotos dela, de roupas dela, de coisas de que ela gostava. Um santuário dedicado à mulher morta.

Para Julien, recomeçar a vida, ser feliz, é um ultraje

Julien trabalha no Le Globe, um jornal, um semanário, creio, que se edita na cidade, que pouca gente mais nova conhece, está caminhando para desaparecer. (E ainda era 1978, antes da internet e da grande crise que se abateu sobre os jornais a partir dos anos 90…)

Ele é o responsável pelos obituários.

Um dia, vários meses depois do velório de Geneviève Mazet, um agora jovial, alegre Gérard Mazet aparece na redação do jornal à procura de Julien. Está feliz, ao lado de sua nova esposa, Yvonne (Marie-Jaoul de Poncheville). Quer agradecer a Julien pela grande ajuda que ele deu na época do falecimento de sua primeira esposa – explica ele a Bernard Humbert, o editor do Le Globe (o papel de Jean Dasté), e a Monique, a secretária (Monique Dury).

Julien estava chegando naquele momento – e ouve, ainda fora da sala em que o editor e a secretária recebem o casal, todo o diálogo.

Esconde-se para não ser visto por Gérard e sua nova esposa. E, quando se encontra com Cecilia, conta para ela a história, bravíssimo, irritadíssimo: como foi possível que aquele sujeito tivesse se esquecido de Geneviève, sua esposa morta tão recentemente? Como pôde ele, como ousou ele recomeçar a vida assim desse jeito, com outra mulher? Que absurdo! Que ultraje!

Um ator bissexto, um exímio diretor de crianças

Antes de ir às fontes – os livros, os alfarrábios, como gosto de dizer –, quero fazer dois registros. Um sobre o Truffaut ator e outro sobre Truffaut e as crianças.

O realizador trabalhou como ator em três de seus filmes. Em O Garoto Selvagem (1970), baseado em fatos reais, fez o dr. Jean Itar, cientista de uma instituição para surdos e mudos que, em 1798, acolheu em sua casa e cuidou de um garoto de uns 11, 12 anos. encontrado num bosque do interior da França, na região de Aveyron, que aparentemente nunca havia tido contato com a civilização, não falava uma palavra, parecia surdo e andava usando as mãos como patas dianteiras.

Em A Noite Americana (1973), talvez seu filme de maior sucesso internacional, Oscar de melhor filme estrangeiro, Bafta de melhor filme, interpretou Ferrand, um diretor de cinema bastante parecido com ele mesmo, que está realizando um filme e tem que enfrentar várias dificuldades surgidas entre os atores e membros da equipe.

O terceiro foi este O Quarto Verde aqui.

Em vários outros de seus próprios filmes, teve pequeninas participações, nada importante – algo parecido com as aparições de Alfred Hitchcock, um de seus maiores ídolos, nos filmes dele.

Um ano antes de interpretar esse Julien Davenne, havia tido uma experiência de trabalho interessante: foi convidado por Steven Spielberg, já então um prodígio das bilheterias, para fazer um cientista francês chamado Lacombe em Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977).

E aqui me permito contar um episódio. Geraldo Mayrink, um dos melhores textos do jornalismo cultural brasileiro, escreveu na revista Afinal, em que trabalhamos juntos, que não foi à toa que Spielberg chamou Truffaut para trabalhar em seu filme. Não, não foi nada à toa: Spielberg queria mesmo era, durante as semanas de convivência nas filmagens, tentar aprender com Truffaut como é que se faz para dirigir tão bem crianças. (Cinco anos depois de Contatos Imediatos, Spielberg lançaria E.T.: O Extraterrestre, em que três atores mirins dão aquele show. Isso sem falar de Gremlins e Os Goonies e tantos outros filmes com atores mirins que ele produziu.)

A afirmação de Geraldo Mayrink pode ser uma boutade, uma brincadeira, uma ironia – mas tem tudo a ver. Truffaut tem um talento absolutamente incrível, extraordinário, para trabalhar com crianças, para retratar crianças.

Mais uma vez, uma criança problemática

François Truffaut viveu apenas 52 anos; só teve tempo de fazer 24 filmes – 3 curtas e 21 longa-metragens. Quatro deles foram especificamente sobre crianças, e três sobre crianças de alguma forma mal tratadas – pela vida, pela sociedade, pelos pais. O primeiro deles é o mais leve, o mais alegre: Les Mistons, curta-metragem de 1957, mostra as brincadeiras de um grupo de moleques de uma cidade do interior.

No seu primeiro longa, Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups (1959), ele nos apresenta Antoine Doinel, que depois iria aparecer em mais quatro filmes, sempre na pele do mesmo ator, Jean-Pierre Léaud. Antoine é o alter-ego de Truffaut: diversas circunstâncias da vida dele aconteceram na vida do cineasta – o fato de não ter conhecido o pai e ter sido criado pelo padrasto e sem o afeto de uma mãe inteiramente distante, o flerte com a marginalidade, a ida para uma instituição correcional, a decisão de servir o exército na falta de outra opção na juventude.

Em 1970 fez o já citado O Garoto Selvagem. E, em 1976, faria Idade da Inocência/L’Argent de Poche, em que os personagens são um grande grupo de crianças da cidade de Thiers. Chega à escola em que os meninos estudam um novo garoto, estranho, diferente, fechado – bem mais tarde, vai se revelar que ele é vítima constante de maus tratos dos pais.

Na trama deste O Quarto Verde, Truffaut introduziu uma criança – e, de novo, uma criança problemática, sem parentes conhecidos, provavelmente abandonada pelos pais.

Chama-se Georges (Patrick Maléon), e vive na casa de Julien Davenne, sob os cuidados da governanta, Madame Rimbaud. O filme faz questão de não explicar muito sobre ele, sobre sua origem; sabemos que ele é surdo e mudo, e podemos intuir que Madame Rimbaud o achou abandonado e tomou para si a tarefa de cuidar dele – com a permissão e o apoio, é claro, do patrão. Julien se dá bem com o garoto, conversa com ele.

Na verdade, a sensação que se tem é de que a convivência com o garoto Georges é um dos poucos contatos de Julien com o mundo dos vivos.

Sim, mas e então? Voltando à questão do início: por que raios, afinal, Truffaut quis fazer este filme? O que ele quis dizer?

O filme é uma história de amor, define Truffaut

Pelo que o próprio Truffaut escreveu e falou sobre o filme, ele fez O Quarto Verde porque de fato acredita que as pessoas deveriam dar mais importância aos mortos. Truffaut, o cineasta da ternura, tinha uma imensa ternura para com seus mortos. E realizou O Quarto Verde num momento em que percebeu que quase tinha mais amigos mortos do que vivos.

“É uma história de amor”, ele definiu.

Eis um texto escrito por ele para ser distribuído à imprensa na época do lançamento – março de 1978 –, com o título de “Por que O Quarto Verde?”:

“A cada ano, temos que riscar nomes de nossa agenda de endereços, e chega um momento em que percebemos que conhecemos mais mortos do que vivos. Essa constatação, simples como até breve, nos ditou, a Jean Gruault e a mim, o roteiro de La Chambre Verte, que, sob a forma de um conto filmado, entrelaça o tema de dois contos de Henry James e de anotações biográficas sobre a fidelidade desse escritor à lembrança de sua noiva desaparecida.

“O filme mostra a evolução das relações entre dois seres que amam os mortos e os respeitam, um homem e uma mulher que recusam o esquecimento. Contrariamente àquilo em que os hábitos sociais e religiosos fazem crer, acontece que podemos ter com certos mortos relações tão agressivas e apaixonadas quanto com os vivos.

“As peripécias de La Chambre Verte giram em torno das seguintes questões: ‘Devem-se esquecer os mortos?’ ‘Tem-se o direito de ‘refazer a vida’?’ ‘O que se passaria se, indiferentes à corrosão do tempo, nós permanecêssemos atados aos mortos por sentimentos tão violentos quanto aqueles que nos ligam aos vivos?’

La Chambre Verte é uma história de amor, como todos os filmes que Jean Gruault e eu escrevemos juntos. Trata-se mais uma vez de mostrar as rasgaduras afetivas e também a luta que se trava em nossos corações entre os sentimentos provisórios e os sentimentos definitivos.”

Uau!

Depois desse texto de Truffaut, é preciso parar um tempo para respirar, pensar, refletir. Talvez para preparar uma bebida, e sorvê-la mansamente, sem qualquer pressa.

Interpretar Julien foi como escrever uma carta à mão

Por que Truffaut decidiu interpretar ele mesmo o protagonista de La Chambre Verte?

As jornalistas Danièle Heymann e Catherine Laporte, da revista semanal L’Express, fizeram essa pergunta ao cineasta, na época do lançamento, e publicaram a resposta dele na edição com data de 13 de março de 1978:

“Para que o filme fosse mais íntimo. Charles Denner interpretaria o papel magnificamente, mas eu acabava de fazer com ele L’Homme Qui Aimait Les Femmes, em que ele está presente o tempo todo. Outro Denner, eu não tinha idéia. Pareceu-me que, se eu fizesse o papel, eu obteria a mesma diferença que, ao cuidar da correspondência no meu escritório, eu dito algumas cartas, que são batidas à máquina, e escrevo outras à mão. Se você escreve à mão, não será perfeito, a escrita será talvez tremida, mas será você, a sua escrita. A máquina de escrever é diferente. Não que haja no meu espírito uma comparação depreciativa para os atores, porque há Olivetti com caracteres maravilhosos, Underwood, Remington, que têm muito personalidade. Eu adoro as máquinas de escrever!”

Que filho da mãe! Que filho da mãe!

O cara não apenas faz filmes maravilhosos, entre os mais maravilhosos que há, mas também escreve belissimamente. E dá entrevistas belissimamente.

Mas essa comparação entre as cartas escritas à mão e as cartas escritas à máquina é quase uma brincadeira, um momento de bom humor ao falar de seu filme sobre os mortos.

“Ansiamos pelo permanente – mas a vida ensina-nos o provisório”

É preciso voltar ao final daquele texto que ele escreveu no dossiê de imprensa. (Os dois textos, que ousei traduzir, estão reproduzidos no extraordinário livro Truffaut par Truffaut, um tesouro com textos e documentos reunidos por Dominique Rabourdin e editado pelas Editions du Chêne em 1985.)

“La lutte qui se livre en nos coeurs entre les sentiments provisoires et les sentiments définitifs.    “

A luta que se trava em nossos corações entre os sentimentos provisórios e os sentimentos definitivos

A distância abissal entre o provisório e o definitivo. O efêmero e o permanente. O passageiro e o constante. E que não se venha aqui com aquela deliciosa história de que tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e motorneiro, porque é hora de falar sério, diacho!

O provisório e o definitivo. O efêmero e o permanente. O passageiro e o constante. O transitório e o eterno.

Em seu livro François Truffaut – A Filmografia Completa, os autores Robert Ingram e Paul Duncan insistem, diversas, diversas vezes, em realçar que essa coisa da diferenciação entre o provisório e o definitivo é um dos pontos mais importantes de toda a obra do cineasta. Era uma preocupação constante que tinha – e que ele fazia questão de abordar, das formas mais diferentes, em seus filmes.

O livro conta que, naquela entrevista à L’Express publicada na edição de 13 de março de 1978, o cineasta afirmou: “Acabei de fazer 46 anos e já estou rodeado pelos mortos. Metade dos atores de Atirem no Pianista (seu segundo longa, de 1960) já desapareceu.”

Mais adiante, depois de contar a história do filme, o que o filme mostra, Ingram e Duncan escrevem: “A obsessão pela morte é tão esmagadora em O Quarto Verde e as referências são tão pessoais e pormenorizadas, que o filme se torna de difícil acesso para a maioria dos espectadores. No filme propriamente dito – discussão de Davenne com o padre – e fora dele, Truffaut teve dificuldade em deixar claro que O Quarto Verde não é um filme sobre o culto dos mortos, nem sob nenhum aspecto teórico, religioso. ‘Em A Noite Americana’, disse ele, ’havia a glorificação dos realizadores de cinema. Aqui há a glorificação das pessoas que tiveram importância. É como uma declaração de amor, e não é deprimente, nem mórbida, nem triste. É, em vez disso, a noção de que o ato de lembrar, a lealdade e as idéias fixas são mais fortes do que o presente… Nós não devemos desligar-nos das coisas e pessoas de quem já não se fala. Devemos em vez disso, se as amamos, continuar a viver com elas. Eu recuso-me a esquecer.’”

Os autores do livro prosseguem: “A maior parte das pessoas que viram o filme acharam provavelmente difícil aceitar a afirmação de que não é mórbido nem triste. O sentimentalismo e a obsessão cega de Davenne pela sua mulher e a sua patética morte dificilmente provocam qualquer outro tipo de efeito no espectador.”

E um pouco adiante: “Mais uma vez, a busca pelo absoluto é mostrada como destruidora e vã. Nós temos de aceitar que a vida é provisória, mesmo que isso seja doloroso. Por muito que Truffaut desejasse manter vivos os que amava, ele já não conseguia atingir a permanência na vida nem nas suas próprias relações pessoais. A única forma de permanência que o homem pode atingir é através da arte, e acima de todas as formas de arte, o cinema, uma vez que preserva (para sempre, agora que temos o DVD?) uma presença visual e a aura dos intérpretes. Essa permanência é, no entanto, ilusória, uma bela ‘astúcia’, como poderia ter dito Truffaut, mas nunca ‘real’. Ele foi forçado a aceitar a dura verdade que o absoluto, o definitivo e o permanente estão para além do domínio humano: ‘Mas no que diz respeito às emoções, tudo procura o permanente. Uma criança quer a sua mãe para toda a vida; os casais apaixonados desejam amar-se para sempre; tudo em nós anseia pelo permanente – mas a vida ensina-nos o provisório.”

“Tudo em nós anseia pelo permanente – mas a vida ensina-nos o provisório.” Filho da mãe. Filho da mãe. Vai escrever bem assim lá na…

Tudo o que Truffaut ansiava era fazer filmes que comunicassem com o público, dizem Ingram e Duncan. Ao contrário de muitos companheiros de ofício, Truffaut jamais fez filmes para agradar aos júris de festivais e aos críticos. Fazia filmes que fossem compreendidos pelo público nas salas de cinema.

Com La Chambre Verte, fracassou nesse quesito. O filme foi um rotundo fracasso de público – embora não de crítica.

O Guide des Films do mestre Jean Tulard, por exemplo, dá ao filme a cotação máxima de 4 estrelas – e sempre é necessário lembrar que ele é extremamente parcimonioso em dar estrelas. Apenas uma minoria dos 15 mil filmes analisados recebe estrelas; 4 estrelas, então, são poucos, bem poucos.

“Com La Chambre Verte, Truffaut certamente realizou seu filme mais grave e mais austero. Como em L’Enfant Sauvage, a sobriedade do tom, sua interpretação um pouco monocórdica, não fazem senão amplificar ao extremo a intensidade emocional do filme. Truffaut, a partir da constatação de que ‘chega um momento da vida em que se conhecem mais mortos do que vivos’, questiona, sem responder, o problema do culto feito aos mortos. O personagem de Davenne alcança uma loucura acentuada ainda por elementos do filme estranhos ou inquietantes (o pesadelo de Davenne, o garoto surdo e mudo, a projeção de fotos, etc). Por uma vez, F. Truffaut sai do tom leve que fez seu sucesso. Infelizmente, este filme, um de seus mais belos, foi um fracasso comercial, talvez justamente porque é um Truffaut não habitual, mais grave, que nos é apresentado.”

Um homem que amava os vivos e os mortos

Lá atrás, bem lá atrás, quando comecei este texto, escrevi: “Não parece Truffaut. Truffaut fazia filmes pessoais, personalíssimos, sobre pessoas, situações, coisas que conhecia, de que gostava, que admirava.”

Pois é: depois de ler o que ele mesmo escreveu sobre o filme, e o que diz esse ótimo livro François Truffaut – A Filmografia Completa, percebo que estava absolutamente errado. O filme é, sim, pessoal, personalíssimo, sobre pessoas, situações, coisas que ele conhecia, de que gostava, que admirava. La Chambre Verte é, como ele diz, uma história de amor – uma história de amor de François Truffaut a seus mortos, às pessoas que ele amava e se foram antes dele.

E é fantástico: na capela que Julien Davenne reforma para transformar num novo quarto verde, no templo em homenagem aos mortos, há fotos de amigos e ídolos do realizador. Estão lá fotos de Jeanne Moreau, Oskar Werner, Jean Cocteau, Guillaume Apollinaire, Oscar Wilde, Henry James, Maurice Jaubert – o autor da trilha sonora do filme, bela, mas grave, sombria.

Amigos, ídolos. Alguns mortos, alguns ainda vivos naquela época – indistintamente. Truffaut amava indistintamente os vivos e os mortos.

Anotação em abril de 2019

O Quarto Verde/La Chambre Verte

De François Truffaut, França, 1978

Com François Truffaut (Julien Davenne), Nathalie Baye (Cecilia Mandel)

e Jean Dasté (Bernard Humbert, o editor do jornal), Patrick Maléon (Georges, o menino), Jeanne Lobre (Mme Rambaud, a governanta), Antoine Vitez (o secretário do bispo), Jean-Pierre Moulin (Gérard Mazet), Serge Rousseau (Paul Masigny), Jean-Pierre Ducos (o padre no velório), Annie Miller (Genevieve Mazet), Nathan Miller (o filho de Genevieve Mazet), Marie-Jaoul de Poncheville (Yvonne Mazet), Monique Dury (Monique, a secretária do editor), Laurence Ragon (Julie Davenne), Marcel Berbert (Dr. Jardine)

Roteiro François Truffaut e Jean Gruault

Baseado em histórias de Henry James

Fotografia Nestor Almendros

Música Maurice Jaubert

Montagem Martine Barraqué

Assistente do diretor Suzanne Schiffman

Produção François Truffaut, Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés.

Cor, 94 min (1h34)

R, ***