Os Incompreendidos / Les Quatre-Cents Coups

4.0 out of 5.0 stars

Les Quatre-Cents Coups, no Brasil Os Incomprendidos, é muita coisa ao mesmo tempo. É um dos filmes que lançaram a nouvelle-vague, um dos movimentos mais importantes do cinema mundial, possivelmente o segundo mais importante de todos, depois do neo-realismo italiano, de que copiou várias características.

É também o longa-metragem de estréia de um realizador que viria a ser um dos melhores e mais importantes de todos.

É a primeira parte de um conjunto de cinco filmes que acompanhariam, ao longo de 20 anos, de 1959 a 1979, a evolução de um mesmo personagem, Antoine Doinel – uma façanha a rigor sem par na História do cinema mundial.

Absoluto sucesso de crítica, no mundo inteiro, influenciaria muito do que o cinema faria depois de seu lançamento, em 1959.

Sobretudo, acima de tudo, Les Quatre-Cents Coups foi, e continua sendo, um dos filmes mais pessoais e mais confessionais da História do cinema.

A história que François Truffaut conta no primeiro de seus parcos 21 longa-metragens é sua autobiografia. Escancarada. Sem disfarces. Sem piedade.

Nenhum outro dos grandes mestres do cinema abriu sua intimidade mais íntima, se expôs tão claramente, tão abertamente, quanto François Truffaut neste filme.

E é louco, é fantástico ver que, ao fazer isso, esse realizador em tudo por tudo extraordinário veio a confirmar a teoria que ele mais que ninguém defendeu enquanto crítico: a de que os filmes têm autor.

O jovem crítico Truffaut teorizava que os filmes, embora produto de uma indústria, do trabalho de centenas de pessoas, eram, ou podiam ser, tão autorais quanto um romance, uma peça de teatro, um poema – produtos de uma cabeça, um coração.

Ao passar da crítica para a realização, da pedra na mão para o teto de vidro, demonstrou por 99 minutos de grande cinema que os filmes têm, sim, autor.

Quer arte mais autoral do que essa história da adolescência do próprio diretor do filme, com todos os detalhes tristes, amargurados, terríveis, horrorosos?

Uma mãe solteira que não ligava para o filho

Antoine Doinel, o protagonista da história (interpretado por Jean-Pierre Léaud), é filho de mãe solteira. Não conheceu seu pai biológico. Gilberte, sua mãe (o papel de Claire Maurier), se casou com Julien Doinel (Albert Rémy, na foto abaixo), que deu seu sobrenome à criança.

É exatamente a mesma coisa com François Truffaut. Sua mãe, Janine de Monferrand, filha de família de classe média, era solteira quando, aos 19 anos, em 1936, deu à luz em Paris ao garoto François. “Uma mãe solteira era fonte de vergonha em tais círculos e a criança, batizada François, foi entregue aos cuidados de uma ama-de-leite. Dezoito meses mais tarde, Roland Truffaut, desenhista industrial, ao casar com Janine aceitou o rapaz órfão de pai e deu-lhe seu sobrenome”, dizem Robert Ingram e Paul Duncan, autores de François Truffaut – A Filmografia Completa, da editoral Taschen (2004).

O filme mostra com clareza absurda que Gilberte não tinha amor pelo filho. Não dava carinho a ele, não procurava ser sua amiga, não conversava com ele. Bem ao contrário: era brusca, ríspida, tosca na relação com ele.

“A minha mãe não suportava o barulho, ou, devo dizer, para ser mais preciso, ela não me suportava”, disse François Truffaut em entrevista a Aline Desjardins, publicada em 1987 e reproduzida no livro citado logo acima. “Seja como for, eu tinha que fingir que não estava ali e ficava sentado numa cadeira, lendo. Não me era permitido brincar ou fazer qualquer barulho. Eu tinha que fazer com que as pessoas se esquecessem que eu existia.”

Meu Deus do céu e também da terra! Essas afirmações, saber disso, um testemunho como esse – é de fazer frade de pedra cair no choro.

A tristeza infinita, sem igual, que é um filho crescer sem conhecer o pai, e sem ter o amor da mãe, tendo, muito ao contrário, a consciência de que a mãe não o suportava, François Truffaut soube transportar para seu longa-metragem de estréia.

Em 1958, quando rodou o filme, ele estava com apenas 26 anos. Um garoto. Um talento sem fim.

Jean-Pierre Léaud, o rapaz escolhido para interpretar Antoine Doinel, tinha 14 anos.

O filme mostra Antoine com 15 anos. Ao longo dos quatro filmes seguintes da saga, o personagem e o ator passariam dos 14, 15, para os 34, 35.

Antoine cabulava aula para ir ao cinema

O espectador pode escolher praticamente qualquer característica de Antoine Doinel neste Les Quatre-Cents Coups, que ela corresponde com fidelidade a uma característica de François Truffut.

Na escola, Antoine Doinel não era um bom aluno. Era dispersivo, não era focado, não prestava muito atenção aos professores. E costumava faltar às aulas. Volta e meia matava aula, com seu maior amigo, René (Patrick Auffay).

Questionado por um professor sobre sua ausência nos dias anteriores, Antoine certa vez matou a mãe: – “É minha mãe, senhor! Ela morreu!”

Exatamente o mesmo aconteceu na vida real de François Truffaut.

Até nesse detalhe de ter dito um dia a um professor que havia faltado às aulas porque a mãe havia morrido.

Antoine e seu amigo René perambulavam pelas ruas de Paris. Volta e meia iam ao cinema. Numa das vezes, cometeram um pequenino ato de delinquência: na entrada de uma sala de cinema, roubam um dos cartazes em exibição. Dá para o espectador mais atento ver perfeitamente que é uma foto da jovem e bela Harriet Andersson, em Monika e o Desejo/Sommaren Med Monika (1953), de Ingmar Bergman (na foto abaixo).

O garoto François desenvolveu a arte de entrar nas salas de cinema de Paris pelas portas de saída, no momento em que estas eram abertas ao final de uma das sessões. Foi feito um levantamento, um cálculo, uma conta – claro que não exata, mas aproximada – e se chegou à conclusão de que o adolescente François Truffaut teria visto, entre 1946 e 1956, ou seja, entre os 14 e os 24 anos, algo em torno de 3 mil filmes.

(O adolescente Truffaut muito provavelmente não era tão organizado quando o adolescente Sérgio Vaz, que iniciou aos 12 anos seu caderno de filmes, onde anotava cuidadosamente cada filme que via. Viu 127 filmes no ano em que tinha 12 de idade, 121 no ano em que tinha 13, 146 aos 14, 181 aos 15. Ia muito ao cinema, o garoto mineiro – mas nada, nada, nada que se comparasse ao adolescente Truffaut. Até porque, bem ao contrário do francês, não cabulava aula; era até meio C.D.F.)

Um casal que permanece junto sem se amar

Há uma característica especialmente dolorosa da triste vida de Antoine Doinel que não sei se corresponde à verdade dos fatos da vida de seu criador: Gilberte, a mãe do garoto, era infiel ao marido.

A infidelidade de Gilberte tem grande importância no filme.

É triste, pesada – e belíssima – a sequência em que Antoine, cabulando aula, de repente vê a mãe, numa calçada, beijando um homem que não é seu marido.

À noite, deitado em sua caminha num cômodo que fica numa passagem, no pequenino apartamento em que vive sua família, de vez em quando Antoine ouve as discussões entre a mãe que não gosta dele e o padrasto que lhe deu o sobrenome. Ela diz que chegou tarde porque estava trabalhando. O marido está cansado de saber que aquilo é desculpa esfarrapada.

“Dor de amor quando não passa é porque o amor valeu”, escreveu Nelson Motta. E Vinicius escreveu que “o amor é a coisa mais triste quanto se desfaz”. São dois versos maravilhosos, esses – mas creio que tão triste quanto o amor que se desfaz, ou o amor que sequer valeu, é o casal que permanece junto sem se amar – como não sei se foi exatamente o caso de Janine de Monferrand e Roland Truffaut, mas obviamente é o caso de Gilberte e Julien Doinel.

Antoine Doinel não é apenas o filho de uma mãe que não o ama: é um garoto que chega à adolescência numa casa em que os dois adultos não se amam.

Les Quatre-Cents Coups é um filme de uma tristeza imensa.

Uma participação especial de Jeanne Moreau

Tem, no entanto, alguns momentos mais leves, até alegres. Como, por exemplo, a sequência em que Antoine está caminhando sozinho pela cidade à noite – não quis voltar para a casa, René indicou o local de trabalho de seu pai, uma gráfica, para ele dormir. Mas há muito movimento lá, e então o garoto sai para andar a esmo pela rua.

E então aparece uma jovem senhora procurando por seu cão, e pede ajuda a Antoine.

Um sujeito de terno pergunta a Antoine sobre a mulher, quem é ela – evidentemente quer ir atrás dela, paquerar. Oferece-se então para ajudá-la na busca pelo cachorro. Antoine reclama: – “Ela me pediu primeiro!” O homem o enxota, para ficar sozinho com a mulher; Antoine continua a andar pelas ruas, e nunca mais veremos aquela jovem senhora e aquele sujeito.

É um detalhe sem qualquer importância na história – um caco, como se diz no teatro quando um ator improvisa alguma coisa. Um evento qualquer, desses que acontecem muito na vida mas em geral os filmes não mostram, porque não têm mesmo importância alguma.

O delicioso, para quem gosta de filmes, é que a jovem mulher é interpretada por Jeanne Moreau, e o cara de terno, por Jean-Claude Brialy. Os dois já tinham nome, reconhecimento – ele começara a carreira em 1954, ela, um pouco antes, em 1949 – e seriam dos atores mais importantes do cinema francês nos anos 60. Brialy voltaria a trabalhar com Truffaut, e também ao lado de La Moreau, em A Noiva Estava de Preto (1968). Entre aquela participação especialíssima, não creditada, em Les Quatre Cents Coups, e o papel de Julie Kohner, a noiva viúva vingativa, Jeanne Moreau estrelaria Jules et Jim (1962). E Truffaut se apaixonaria por ela.

Mas Truffaut se apaixonar não era, de forma alguma, algo raro. Truffaut amava o cinema, as mulheres e amor, sabe-se lá em que ordem, ou se havia ordem. Bem cedo, amou Liliane Litvin, que via com eles filmes na Cinemateca – a Colette de Antoine et Colette, a segunda das cinco partes da saga Antoine Doinel, inspirou-se nela. Em 1957, aos 25 anos, casou-se com Madaleine Morgenstern, com quem teve seus dois únicos filhos. Amou Jeanne Moreau, Françoise Dorléac, Catherine Deneuve, Claude Jade, Jacqueline Bisset, Leslie Caron – e sossegou finalmente com Fanny Ardant.

Os autores de uma biografia dele, Baecque e Toubiana, escreveram: “Infiel, François Truffaut sempre foi, mas mais por uma necessidade de seduzir e de ser amado do que rivalizar com Don Juan”. E Roger Ingram e Paul Duncan, no livro sobre o homem e seus filmes, escrevem que, de maneira bem simplificada, dá para dizer que “ele passou a sua vida à procura do amor que a sua mãe lhe negara, desesperado para provar que era digno de ser amado, vezes e vezes sem conta.”

Cansado da reincidência, o padrasto o leva à polícia

Até mesmo o episódio que é certamente o mais brutal de todos os da adolescência de Antoine mostrados no filme, até mesmo aquele não foi fruto da imaginação de François Truffaut – e sim um fato de sua própria vida. Foi Roland Truffaut, o padrasto, que, cansado, irritado com os recorrentes problemas criados pelo rapaz, com a reincidência, levou-o a uma delegacia de polícia, de onde saiu para um período de punição numa instituição estatal para menores delinquentes.

Para citar mais uma vez um verso de canção, são demais os perigos desta vida – e, na adolescência, eles se avolumam, se agigantam, se concentram. Escapar dos perigos durante a adolescência é como tentar se esgueirar entre os pingos de uma chuva forte sem se molhar. As tentações são muitas, o caráter ainda é fraco, e cair na marginalidade é tão fácil quanto abrir a boca de sono.

Faz tempo que acho fascinante como o cinema traz exemplos de adolescentes que conseguiram fugir da marginalidade que parecia quase inevitável diante deles graças à arte, à cultura, à educação.

É assim com o Simon de Toda Uma Vida (1974), de Claude Lelouch, um bandidinho que chega a ser preso por seus pequenos delitos – e se salva da marginalidade quando encontra um inesperado talento para fazer filmes de publicidade.

É assim com a personagem título de Stella (2008), de Sylvie Verheyde, uma garotinha de 12 ou 13 anos, inteligente, esperta, que vive num ambiente de desajuste, com grande chance de se tornar uma pobre diabo, ou até uma delinquente.

É assim também com o personagem Chimo no filme Lila Diz…/Lila Dit Ça (2004), de Ziad Doueiri, de 2004. O apelo para a delinquência é fortíssimo – e o adolescente Chimo escapa do destino trágico praticamente traçado através o estudo.

Fica em aberto o que acontecerá com Antoine

Truffaut não indica, em Les Quatre-Cents Coups, como é que Antoine Doinel conseguirá escapar da marginalidade à qual parece condenado. Na verdade, nem sequer indica se ele conseguirá escapar dela. Deixa tudo em aberto, tudo absolutamente em aberto.

Ele mesmo, Truffaut, o autor, o que conta no filme trechos da história da sua própria vida, não escondendo as partes mais difíceis, terríveis, sabemos que escapou da marginalidade por seu amor aos livros e sobretudo aos filmes, e seu imenso talento para unir as duas coisas, o domínio da escrita e o amor aos filmes. Descoberto por André Bazin (1918-1958), um dos mais influentes historiadores, teóricos e críticos de cinema que já houve, foi incentivado a escrever sobre os filmes que via. Começou a fazer crítica em 1950, aos 18 anos de idade. Já em 1954, com apenas 22 anos, passou a escrever para os Cahiers du Cinéma, a revista que era a bíblia dos cinéfilos no final dos anos 50 e começo dos 60.

Escreviam para os Cahiers, na mesma época, vários jovens que, como o próprio Truffaut, eram frequentadores assíduos das sessões na Cinemateca Francesa – Jean-Luc Godard, Éric Rohmer, Claude Chabrol, Jacques Rivette. Passaram todos da crítica para a direção na mesma época, o final dos anos 50. Truffaut fez três curtas – Une Visite (1954), Les Mistons (1958) e Une histoire de l’eau (1958) – antes de estrear no longa-metragem com este Les Quatre-Cents Coups em 1959. Godard fez seu primeiro em 1960, Acossado/À Bout de Souffle, com base em roteiro original do então amigo Truffaut. Claude Chabrol havia estreado em 1958 com Nas Garras do Vício/Le Beau Serge, e Éric Rohmer fez seu primeiro longa em 1962, O Signo do Leão.

Diz-se (já foi dito até mesmo aqui neste texto) que a nouvelle vague foi um “movimento” – como o expressionismo alemão, o neo-realismo italiano, o Dogma dos dinamarqueses nos anos 90. O livro François Truffaut – A Filmografia Completa diz, na tradução portuguesa, que é a edição que tenho:

“A Nova Vaga nunca foi mais do que uma livre associação de realizadores que por acaso se reuniram numa época crítica. Eles partilhavam uma paixão comum pelo cinema e passavam longas horas em discussão na Cinemathèque, nos diversos clubes de cinema e nos escritórios dos Cahiers du Cinéma. Nunca chegaram a constituir formalmente um movimento e nunca subscreveram abertamente nenhuma teoria organizada e coerente. No entanto, partilhavam vários valores e, pelo menos durante algum tempo, uma abordagem de realização cinematográfica. Influenciado pelos neo-realistas italianos, cujos filmes viram nos clubes de cinema, optaram por um novo estilo de realismo. Viraram a costas aos estúdios e foram filmar para as ruas, com luz natural, e quando se tornou possível, com som directo.”

“O triunfo lança a moda do filme jovem”

O filme foi um grande sucesso – de crítica principalmente, mas também de público. Tornou conhecidos na França, mas também no resto da Europa e dos Estados Unidos, o novo cinema que começava a surgir ali.

As filmagens foram entre novembro de 1958 e 5 de janeiro de 1959; escolhido como um dos três representantes da França no Festival de Cannes, foi exibido no Palais des Fetivals no dia 4 de maio.

“Truffaut é roído pela angústia antes da projeção oficial de seu filme. A sala o ovaciona, todos os olhares procuram o rosto do jovem cineasta. À saída do Palais, Jean-Pierre Léaud é carregado em triunfo até os espectadores e fotógrafos. Cocteau se improvisa como o condutor de Truffaut no meio da histeria do festival. No dia seguinte, o acontecimento está na primeira página dos jornais: um cineasta de 28 anos e um ator de 14 rejuvenescem Cannes e o cinema francês. O filme ganha o prêmio de melhor direção e é lançado em Paris (no dia 3 de junho). O sucesso público é imenso, e ficará por longo tempo como o mais importante da carreira de Truffaut. Aclamado, Les Quatre Cents Coups se transforma em um fenômeno social, dando margem a reportagens e debates sobre a infância maltratada e os país ausentes.”

O texto saboroso do parágrafo acima está em Le Livre François Truffaut, uma publicação conjunta do jornal Le Monde e dos Cahiers du Cinéma, parte de uma coleção dedicada aos grandes cineastas. O texto prossegue:

“Sobretudo, o filme se impõe como o farol do fenômeno Nouvelle Vague. O triunfo de Les Quatre Cents Coups lança a moda do ‘filme jovem’. Em três anos, cerca de 170 cineastas iriam rodar seus primeiros longa-metragens usando a denominação ‘Nouvelle Vague’. O sucesso de Truffaut permite que Godard rode enfim seu primeiro filme, À Bout de Souffle, que sai em maio de 1960 com um sucesso comparável àquele de Les Quatre Cents Coups. Assim, ao fim de 1959, Truffaut aparece como o líder do jovem cinema francês, do qual Godard e Resnais são as cabeças intrigantes.”

Na época, negou que o filme fosse autobiográfico

Diz o Guide des Films de Jean Tulard:

Les Quatre Cents Coups é o primeiro longa-metragem de um dos pilares da Nouvelle Vague, François Truffaut; é também o primeiro filme da saga Doinel. Ali se encontram já as características da obra futura do cineasta, a infância, a educação, e uma grande sensibilidade na maneira de abordar a psicologia dos personagens. Embora Truffaut tenha negado, durante um tempo, este filme é em grande parte autobiográfico, mas ele deve muito também à personalidade de seu intérprete Jean-Pierre Léaud, cuja naturalidade é espantosa. O tom Truffaut já se impõe, e o júri do Festival de Cannes não errou ao lhe dar o prêmio de direção em 1959.”

Grande guia do mestre Tulard.

“Embora Truffaut tenha negado…”

Sim! Ele negou que o filme fosse autobiográfico – e não só uma vez, mas várias. Em entrevistas, em textos publicados na imprensa. Começa assim o texto que ele escreveu para a revista Arts, da qual era já antigo colaborador, na edição de 3 de junho de 1959:

“Contrariamente ao que tem sido muitas vezes publicado na imprensa desde o Festival de Cannes, Les Quatre Cents Coups não é um filme autobiográfico. Não se faz um filme sozinho, e, se eu tivesse desejado colocar em imagens minha adolescência, eu não teria pedido a Marcel Moussy que viesse colaborar comigo no roteiro e redigir os diálogos. Se o jovem Antoine Doinel às vezes se parece com o adolescente turbulento que eu fui, seus pais não se parecem de forma alguma com os meus, que foram excelentes, e sim com as famílias que se enfrentam nos programas de televisão.”

À pergunta de repórter da revista Telé-Ciné, em entrevista publicada em julho de 1959, sobre se o filme era “um tipo de autobiografia”, ele respondeu:

“Não, muito parcialmente. Tudo o que posso dizer é que nada foi inventado. Aquilo que não aconteceu comigo pessoalmente aconteceu com pessoas que conheço, a rapazes da minha idade e mesmo a pessoas cujas histórias leio nos jornais. Nada veio da ficção pura, mas não é um filme completamente autobiográfico.”

Então tá.

Franco, confessional em seu filme, Truffaut nos textos e nas entrevistas tentou escapar de fininho.

Truffaut e Léaud fariam mais 6 filmes juntos

Segundo o cineasta, Antoine Doinel acabou conquistando tanto a simpatia das pessoas por causa de Jean-Pierre Léaud.

Jean-Pierre Léaud tinha desde sempre fortes ligações com o cinema. Sua mãe, Jacqueline Pierreux, era atriz, e seu pai, Pierre Léaud, era roteirista e assistente de direção. O garoto tinha 13 anos quando estreou num pequeno papel em La Tour, prends Garde!, de 1957. No ano seguinte, foi um das centenas de adolescentes que atenderam ao anúncio publicado por Truffaut nos jornais, para a seleção do ator que faria o papel principal no filme que pretendia fazer. Deixou o jovem Truffaut encantado não só com seu belo rosto mas também, e principalmente, pela espontaneidade e pela capacidade de improvisar falas.

Truffaut e Léaud fariam juntos mais seis filmes. Léaud está em As Duas Inglesas e o Amor (1971) e em A Noite Americana (1973). E, claro, nos quatro filmes seguintes da saga Antoine Doinel:

Antoine et Colette (1962),

Beijos Proibidos (1968),

Domicílio Conjugal (1970),

O Amor em Fuga (1979).

Quando revi Antoine et Colette, em abril de 2015, escrevi o seguinte, no início do looooongo comentário:

“É preciso dizer de imediato: o conjunto de cinco filmes de François Truffaut com o personagem Antoine Doinel não é apenas uma das melhores obras do cinema, mas de toda a arte. As aventuras de Antoine Doinel são um patrimônio da humanidade à altura do David de Michelangelo, de Guernica de Picasso, de Guerra e Paz de Liev Tolstói, a Nona de Beethoven, As Quatro Estações de Vivaldi.”

Dias atrás, relendo isso, me assustei um pouco, confesso, com essas afirmações tão peremptórias, tão absolutamente superlativas – mesmo eu sendo mesmo um sujeito dado a superlativos.

Até mesmo para mim soou um tanto exagerado.

Pois é: o terceiro parágrafo do texto é assim:

“Exagero? O eventual leitor tem todo o direito de achar. Eu acho as afirmações acima a mais pura expressão da verdade dos fatos.”

Fazer o quê?

Anotação em setembro de 2018

Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups

De François Truffaut, França, 1959.

Com Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel)

e Claire Maurier (Gilberte Doinel, a mãe), Albert Rémy (Julien Doinel, o padrasto), Guy Decomble (‘Petite Feuille’, o professor), Georges Flamant (Mr. Bigey), Patrick Auffay (René, o amigo), Daniel Couturier (Betrand Mauricet)

(e os garotos) François Nocher, Richard Kanayan, Renaud Fontanarosa, Michel Girard, Serge Moati, Bernard Abbou, Jean-François Bergouignan, Michel Lesignor

Roteiro François Truffaut

Argumento François Truffaut

Adaptação Marcel Moussy & François Truffaut

Diálogos Marcel Moussy

Fotografia Henri Decae

Música Jean Constintin

Montagem Marie-Joseph Yoyotte

Assistente de direção Philippe de Broca

Produção Les Films du Carrosse, Sédif Productions.

P&B, 99 min (1h39)

R, ****

Título em inglês: The 400 Blows. Em Portugal: Os 400 Golpes. Na Espanha: Los Cuatrocientos Golpes.

9 Comentários para “Os Incompreendidos / Les Quatre-Cents Coups”

  1. Pô… Sensacional.
    Tá começando o ano desse jeito, com esse texto, com esse filme. Eu vou ter um piripaque!
    Matou a pau!

Comentário

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