Nota:
Anotação em 2009: Depois de ter revisto, após muitos anos, As Duas Inglesas e o Amor, me lembrei de uma frase do livro Justine, um dos quatro que formam O Quarteto de Alexandria, de Lawrence Durrell, que li ainda adolescente: “What a marvellous capacity for unhappiness we writers have”.
Que maravilhosa capacidade para a infelicidade têm os personagens do escritor francês Henri-Pierre Roché, que Truffaut – esse artista maior, tão sensível e terno para retratar tanto a alegria quanto a tristeza – filmou duas vezes.
Claude (Jean-Pierre Léaud), um jovem parisiense de confortável situação social, mimado e superprotegido pela mãe (Marie Mansard), primeiro conhece Ann (Kika Markham), uma jovem do País de Gales, filha de uma amiga de sua mãe. Ann está em visita a Paris; ficam amigos, conversam muito, passeiam, visitam os lugares em que há esculturas de Rodin, cujo talento ainda não era de todo reconhecido – estamos na rodada do século XIX para o século XX. Ann fala bastante de sua irmã mais nova, Muriel (Stacey Tendeter). Algum tempo depois, Claude viaja até o País de Gales, e se hospeda na casa dos Brown, onde vivem Ann, Muriel e sua mãe (Sylvia Marriott). Mrs. Brown, assim como Madame Roc, a mãe de Claude, é viúva.
O espectador percebe que Ann tem atração por Claude. Mas, de uma estranha maneira, ela faz com que ele e Muriel se aproximem. Claude pede Muriel em casamento (estamos, repito, na rodada do século XIX para o século XX). Muriel tem todas as dúvidas do mundo; uma espécie de conselho familiar decide que os dois devem passar um ano sem se verem – se, após aquele período, persistirem na decisão, então poderão se casar.
Eventualmente, Claude e Ann se tornarão amantes – mas não será um caso de amor em paz. Os dois insistirão em que cada um possa ter a liberdade de viver outras experiências. Muriel não sabe do caso da irmã com o homem que ela ama sem saber direito se ama ou não; sofrerá muito, demais da conta, com a ausência dele. Vão se reencontrar, vão se separar novamente – que imensa, terrível incapacidade de serem felizes têm aquelas pessoas.
Em um determinado ponto, Claude escreverá seu primeiro romance, Jerôme et Julien, inspirado em sua própria história de um homem que ama duas mulheres ao mesmo tempo. No livro, ele conta a história de uma mulher que ama dois homens ao mesmo tempo, uma mulher para dois – Jerôme et Julien, tudo a ver com Jules et Jim, no Brasil Uma Mulher para Dois, o romance do mesmo Henri-Pierre Roché filmado por Truffaut em 1962, a obra que, depois de Os Incompreendidos/Les Quatre Cents Coups, o consagrou como um dos melhores e mais admirados cineastas do mundo.
O cineasta que amava os livros
Em Jules et Jim (uma cena do filme é a ilustração do alto deste site, embora eu ainda não tenha tido coragem de fazer uma anotação sobre ele), Jim diz a seguinte frase, que Domingos Oliveira copiaria poucos anos depois e poria na boca no personagem de Paulo José na jóia rara Todas as Mulheres do Mundo: “Um dia voltarei à literatura com uma história de amor cujos personagens serão insetos”.
François Truffaut é um cineasta apaixonado pela literatura, pelos livros. Os livros povoam seus filmes. Em Domicílio Conjugal, o jovem casal se senta na cama antes de dormir cada um lendo seu livro, que a câmara focaliza e exibe. Em O Homem que Amava as Mulheres, o personagem escreve um livro sobre suas experiências amorosas. Em Uma Jovem Tão Bela Como Eu, as primeiras seqüências são numa livraria, em que uma cliente procura um determinado livro. Truffaut, apesar da origem humilde, da falta de escolaridade formal, tem um texto brilhante, extraordinário, de babar, como demonstram suas críticas na revista Cahiers du Cinéma, em vários jornais, e seus livros Os Filmes da Minha Vida, O Prazer dos Olhos e Hitchcock por Truffaut.
Este As Duas Inglesas e o Continente abre, nos créditos iniciais, com a capa e algumas páginas abertas e anotadas do livro de Roché, Les Deux Anglaises et le Continent. Bem lá mais tarde, haverá tomadas da capa do livro que Claude escreve, Jerôme et Julien, e da gráfica em que o livro está sendo impresso.
E aqui me permito uma tergiversação.
Os livros, só eles, já servem para preencher a vida de prazer. Jamais consegui compreender as pessoas que dizem ter tédio. “Só os imbecis têm tédio” – não sei de quem é essa frase, mas ela é brilhante. Como é possível ter tédio, se há tantos livros que a gente pode ler na vida? Os livros são a maravilha mais maravilhosa que existe; até o cheiro dos livros é saboroso, como de um charuto especial, como de um vinho extraordinário.
Não é por acaso que foi Truffaut que filmou Fahrenheit 451, a anti-utopia, ou distopia, de Ray Bradbury sobre um futuro apavorante em que o Sistema baniu os livros, e os bombeiros, num mundo onde já não há mais incêndios, se dedicam a queimar os livros que ainda existem, e a Resistência contra o regime é exercida por pessoas que decoraram os livros, e os vão passando oralmente para os filhos e os netos.
“Sábato, Bradbury, Quijote y San Francisco, apuntem fuego a los ladrones del amor”, como dizia a genial letra de Horácio Ferrer em cima do tango de Piazzolla Preludio para um Canillita. Ih, tergiversei de novo.
Uma narrativa em capítulos, como num livro
O estilo narrativo de Truffaut neste filme aqui é quase absolutamente tradicional, clássico – como, aliás, é seu estilo; nada de invencionices, criativóis babacas. Ele espalha por todo o filme trechos ditos por um narrador, com voz em off, um narrador terceira pessoa, que não participa da história. Trocam-se muitas cartas, na história: de Claude para cada uma das irmãs, das irmãs para Claude; umas três ou quatro vezes, Truffaut coloca as atrizes que fazem Ann e Muriel em close-up, falando o texto de suas cartas diretamente para a câmara.
São mulheres interessantes, essas duas, Kika Markham e Stacey Tendeter, que Truffaut escolheu para fazer as irmãs galesas, que alternam o inglês e o francês. Não são lindas, não chegam sequer a ser bonitas, mas são boas atrizes, têm presença marcante e uma rara capacidade de terem, cada uma delas, diferentes caras ao longo do filme. Não me lembro de tê-las visto em nenhum outro filme; no entanto, Kika Markham fez mais de 70 trabalhos, entre filmes e episódios para a TV, e Stacey Tendeter, exatos 16, segundo o iMDB.
O ator Jean-Pierre Léaud é presença constante nos filmes do diretor. Foi escolhido ainda garoto, aos 15 anos de idade, para fazer o protagonista de Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups, Antoine Doinel, o alter-ego do próprio Truffaut – rapaz de infância triste, pobre, que beirou a delinqüência, tudo exatamente como o cineasta. Depois de Os Incompreendidos, Truffaut acompanharia a vida de Antoine Doinel à medida em que ele ia amadurecendo, nos maravilhosos Antoine e Colette (episódio do filme de vários autores O Amor aos 20 Anos, de 1962), Beijos Roubados, de 1968, Domicílio Conjugal, de 1970, e Amor em Fuga, de 1979. Um feito raríssimo, um cineasta acompanhar a vida de um personagem ao longo de 20 anos, sempre interpretado pelo mesmo ator. Léaud trabalharia também, fazendo um personagem que não Antoine Doinel, como neste filme aqui, em A Noite Americana, de 1973.
Georges Delerue, um dos melhores e mais prolíficos compositores de trilha sonora da história, que trabalhou com Truffaut em diversos de seus filmes, inclusive este aqui, aparece numa ponta.
Mas, voltando ao estilo narrativo: Truffaut construiu seu filme como se fosse um livro de capítulos curtos; ao final de cada seqüência, ele usa um longo fade out e fade in, o recurso de montagem em que a tela fica preta por alguns segundos. Por diversas vezes, antes do fade out, o desaparecimento da cena, ele usa um recurso que os filmes bem antigos de Hollywood usavam, que é de ir fechando o quadro em torno de um círculo pequeno no meio, em geral no rosto de um dos personagens. Não me lembro do nome desse recurso; se eventualmente um leitor souber, agradeceria se ele me informasse. Mas o fato é que Truffaut faz isso – essa coisa de pontuar a narrativa com segundos em que a tela fica negra, entre um acontecimento e outro, como que dividindo o filme em capítulos – de uma forma suave, terna. Nada de foguetório, olhem aqui, prestem atenção nisso; ele faz tudo suavemente, docemente. Como sempre, como em toda a sua magnífica obra.
Um Truffaut garoto encontra o livro de um senhor idoso
“Um dia, por acaso, comprei Jules et Jim em uma livraria do Palais-Royal”, contou Truffaut em entrevista ao jornal Le Monde em 1962. O acontecimento que ele descreve se deu em 1955; era, então, um jovem de 23 anos de idade, via filme após filme e escrevia críticas sobre eles. “O título me agradou de cara e, quando li na contracapa que era o primeiro romance de um homem de 76 anos, fiquei mais interessado ainda: adoro os relatos ‘vividos’, as memórias, as recordações, as pessoas que contam sua vida. Ao mesmo tempo em que achei o livro maravilhoso, fiquei chocado com o caráter escabroso das situações e com a pureza do conjunto.”
Henri-Pierre Roché, nascido em Paris em 1879, foi, como seu personagem Claude em Les Deux Anglaises et le Continent, pintor, colecionador de arte. Como Claude, foi amante de uma artista, a pintora Marie Laurencin. No filme, aparecem obras dos então jovens artistas que surgiam. Na vida real, Roché tornou-se conselheiro de grandes colecionadores; segundo a Wikipedia, foi ele que iniciou Gertrude e Leo Stein na arte moderna; por seus conselhos, o casal comprou seus primeiros quadros de Picasso ainda em 1905.
Roché publicou Jules et Jim em 1953 e Les Deux Anglaises et le Continent em 1956, já no fim da vida, portanto – dois romances autobiográficos, o primeiro falando de uma mulher dividida entre dois homens, o segundo, de um homem dividido entre duas mulheres.
Depois que comprou o livro de Roché por acaso, Truffaut viu A Madrugada da Traição, de Edgar Ulmer. “Era um western barato”, contou ele ao Le Monde, “mas, durante uns 15 minutos, mostrava-se ali, como em Jules et Jim, e com o mesmo frescor, uma mulher hesitando entre dois homens igualmente simpáticos. Em minha crítica do filme – eu trabalhava para a revista Arts – mencionei o romance de Roché, que me enviou uma carta para agradecer. Continuamos a nos corresponder, e eu lhe disse que estava pensando em filmar Jules et Jim. Falamos da adaptação, e ele imaginava diálogos ‘arejados e densos’. Ele certamente os teria escrito se não houvesse morrido pouco antes do lançamento de Os Incompreendidos.”
Roché morreu em 1959 (o ano em que nasceu Mary), exatamente o ano em que Truffaut fez Os Incomprendidos, seu primeiro filme com Jean-Pierre Léaud. Jules et Jim viria em 1962, e este As Duas Inglesas e o Amor, em 1971. Apesar de ter construído personagens capazes de ser profundamente infelizes, foi um homem de muita sorte, esse Roché; teve, ao que tudo indica, uma vida fascinante – e ganhou a loteria de ter seus dois romances filmados por um gênio.
As Duas Inglesas e o Amor/Les Deux Anglaises et le Continent
De François Truffaut, França, 1971
Com Jean-Pierre Léaud, Kika Markham, Stacey Tendeter, Marie Mansard, Sylvia Marriott
Adaptação e diálogos François Truffaut e Jean Gruault
Baseado no romance de Henri-Pierre Roché
Fotografia Nestor Almendros
Música Georges Delerue
Produção Les Films de Carrosse
Cor, 130 minutos (versão original do diretor), 116 minutos (versão exibida na França), 108 minutos (versão exibida nos EUA)
R, ***1/2
Título em Portugal: As Duas Inglesas e o Continente; em inglês, Two English Girls.
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