4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um grande filme, uma beleza, feito com absoluta maestria. Para nós, brasileiros, nestes tempos duríssimos em que vivemos, em que Brasília nos manda diariamente notícias tristes, desalentadoras, indecentes, e nos deixa questionando pilares básicos da democracia, como a própria existência do Parlamento, é cheio de belas lições. Aumenta ainda mais nossa estupefação diante da maioria dos políticos do País, mas deixa belas lições.
Menos de 20 anos atrás, o Brasil expulsou da Presidência um político corrupto. Aquela figura renunciou, antes que fosse derrubada por um processo de impeachment no Congresso. Mas ele se elegeu de novo, e, senador, está de volta às primeiras páginas dos jornais, como um dos líderes da tropa de choque que defende outro político corrupto que preside o Senado Federal e, ao contrário do que fizeram dois de seus antecessores no cargo, que renunciaram para não perder o mandato; insiste em se manter no poder, com o total apoio do presidente da República, aquele lá que – não; melhor deixar pra lá.
Pouco mais de 30 anos atrás, o então presidente americano Richard Milhous Nixon renunciou, antes que fosse derrubado por um processo de impeachment no Congresso. Ao contrário do que acontece aqui, no entanto, jamais voltou a ter qualquer poder; não foi candidato a nada; passou para a História como o único presidente americano a renunciar, em mais de 200 anos consecutivos de democracia.
Precisão de documentário, ritmo de thriller
Este ótimo filme do veterano Ron Howard recria, com a precisão de um documentário e o ritmo acelerado de um thriller de primeira qualidade, a história da primeira entrevista que Nixon deu à televisão depois da renúncia. E que bela história.
O filme se baseia na peça de teatro escrita pelo inglês Peter Morgan, que foi também o autor do roteiro. Toda a história tem como base acontecimentos reais; os trechos da entrevista que aparecem são iguais ao que realmente aconteceu e foi ao ar em 1977, três anos depois da renúncia de Nixon. As frases de Nixon e de seu entrevistador, David Frost, são literais.
Ron Howard usa a estrutura de um documentário: ao longo da ação – que é apresentada em ordem cronológica, desde a renúncia, em 1974, até a entrevista, em 1977, e um pouco depois –, há depoimentos dos personagens da história. Só que não dos personagens reais, e sim dos atores que os interpretam. Ou seja: é a estrutura de um documentário, em um filme que recria inteiramente a realidade. As fotos que aparecem de Nixon – como uma dele ao lado de Mao Tsé-Tung – são com o ator que faz Nixon, e não com o próprio presidente.
Nisso, especificamente, o filme faz lembrar Confidencial/Infamous, a ótima recriação de como Truman Capote escreveu A Sangue Frio. E, indo mais para trás, faz lembrar Reds, o filme de Warren Beatty sobre a participação do jornalista americano John Reed na revolução comunista russa de 1917.
Esses depoimentos dos personagens da história ajudam um pouco o espectador a compreender os fatos. Mas o roteiro dá de barato que toda a história é amplamente conhecida pelo público. Assim, é claro que o espectador que não se lembrar das circunstâncias que levaram Nixon à renúncia estará bastante prejudicado.
Relembrando rapidinho: em 17 de junho de 1972, cinco homens foram presos ao assaltarem os escritórios do Comitê Nacional do Partido Democrata, no complexo de prédios Watergate, em Washington. Nixon era presidente da República, eleito em 1968, e disputava a reeleição com o democrata George McGovern (as eleições seriam em novembro). Investigações da polícia, de comitês do Senado e da Câmara dos Deputados e sobretudo da imprensa foram revelando que a invasão do comitê havia sido ordenada por funcionários da Casa Branca; o governo tentou o tempo todo negar que Nixon tivesse conhecimento dos planos para o assalto ao comitê adversário, mas foi ficando clara a participação de autoridades cada vez mais altas da Casa Branca, até se chegar ao próprio Nixon. Após dois anos de sangria, e antes que a Câmara votasse um processo de impeachment, Nixon finalmente renunciou, em 9 de agosto de 1974.
Com a renúncia, assumiu outro republicano, Gerald Ford, que, numa decisão que chocou o país, concedeu um perdão total a Nixon por quaisquer crimes que pudesse ter cometido enquanto estava no poder – ter ordenado ou no mínimo consentido com o assalto ao escritório da campanha adversária, mentido, ocultado provas, obstruído a ação da Justiça.
E o ex-presidente jamais admitiu qualquer crime, ou pediu perdão por eles.
Um grande duelo – e todos apostam em Nixon
É aqui que o filme começa
David Frost, um apresentador de talk shows nascido na Inglaterra, que tinha tido e perdido um programa na TV americana e estava, na época da renúncia, comandando um programa na Austrália, teve a idéia de pedir uma entrevista a Nixon. A idéia acabou virando uma obsessão; durante meses e meses e meses ele continuou tentando. O agente literário de Nixon, Swifty Lazar (Toby Jones, o Truman Capote do filme Confidencial/Infamous), que era uma das pessoas do círculo do ex-presidente com quem David Frost entrava em contato, acabou sugerindo que ele aceitasse dar a entrevista. O secretário particular de Nixon, Jack Brennan (Kevin Bacon), também o incentivou a aceitar.
Nixon havia recusado todos os pedidos de entrevista anteriores; não queria enfrentar, diante das câmaras de TV que já o haviam derrotado quando debateu com John Kennedy na campanha de 1960, um entrevistador sério, um repórter político experiente. O staff de Nixon, e depois o próprio ex-presidente, entenderam que seria um bom negócio falar com aquele inglês meio showman, mais acostumado a entrevistar personalidades do show business do que a tratar dos negócios sérios da política. Acharam que o ex-presidente poderia se sair muito bem, dar um show, mostrar-se como um estadista, talvez até voltar à política. E mais ainda: o apresentador de talk shows oferecia dinheiro, um bom dinheiro, pela entrevista, na verdade uma série de quatro entrevistas de duas horas cada. Acabaram fechando negócio pela quantia absurda de US$ 600 mil, mais um acordo previamente assinado pelas partes estipulando que apenas 25% do tempo seria reservado a Watergate, e os demais 75% a outros temas.
É preciso também lembrar que Nixon tinha do que se gabar, nos 75% do tempo em que não seria questionado sobre Watergate. Apesar de ter afundado mais e mais os Estados Unidos na guerra do Vietnã, iniciada por seus antecessores democratas, apesar de ter ordenado uma invasão sangrenta do Cambodja, durante seu primeiro mandato, Nixon tinha trunfos na política externa. A guerra do Vietnã terminara; e o presidente tinha tido reuniões de cúpula antes inimagináveis com o líder soviético Leonid Brejnev e com o chinês Mao Tsé-Tung, reuniões que abrandaram bastante o clima quente da guerra fria.
Para o entrevistador, só havia dois caminhos: ou ele conseguia encostar o entrevistado nas cordas, e esmurrá-lo até que confessasse seus crimes e pedisse perdão por eles, ou a entrevista não serviria para nada. Se fosse uma conversa morna, ninguém teria interesse em transmiti-la, e David Frost teria que arcar sozinho com o custo absurdo de toda a operação – seria o fim de sua carreira.
Todo mundo sabia: a série de entrevistas seria uma luta de boxe, uma disputa de campeonato mundial. Só haveria um vitorioso; o outro seria derrotado.
Todas as apostas eram de que Tricky Dick, como Nixon era chamado, daria uma surra no apresentador de talk shows bonitinho e bobão.
O espectador acompanha os preparativos dos dois contendores para o enfrentamento, cada um com sua equipe. Nixon se cerca de um grande staff; de seu lado, David Frost e seu produtor, John Birt (Matthew Macfadyen), contratam dois jornalistas e estudiosos para auxiliá-los no trabalho de pesquisa, levantamento e organização de informações – Bob Zelnick (Oliver Platt) e Jim Reston (Sam Rockwell). Aqui há um detalhe interessante: esse Jim é James Reston Jr., o filho de James Reston, sujeito liberal, progressista, que foi um dos colunistas mais importantes do New York Times e do jornalismo americano nos anos 70 e 80; me lembro que, começando em jornal, li, admirado, muitos textos de James Reston, republicados em O Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde.
O filme mostra que os jornalistas Zelnick e Reston Jr. ficavam exasperados, arrancavam os cabelos, porque, nas semanas que precederam as entrevistas, David Frost parecia não se dedicar ao trabalho, não se aprofundar nos temas; preferia ficar gozando a boa vida em festas e passeios em Los Angeles ao lado de Caroline Cushing, uma jovem beldade que ele conheceu na primeira classe de um vôo internacional (foto). Caroline é interpretada pela bela inglesa Rebecca Hall, que fez a Vicky de Vicky Cristina Barcelona. Ela funciona meio como o “female interest” do filme, a bonita figura de mulher que dá algum encanto aos olhos da platéia num filme povoado por senhores engravatados. Mas serve também para mostrar que o velho Nixon, por mais bandido que fosse, tinha uma qualidade: era tarado por mulher.
Frank Langella tem o melhor papel da vida
Assim como aconteceu com Helen Mirren ao interpretar a Rainha Elizabeth II em A Rainha, de Stephen Frears, ou com a bela francesa Marion Cotillard, que ficou feia para fazer Edith Piaf em Piaf – Um Hino ao Amor, Frank Langella teve o melhor papel de sua vida como Richard Nixon. Sua atuação é estupenda, extraordinária, maravilhosa. Ela é toda cheia de matizes; seu Nixon demonstra arrogância, prepotência, inteligência, safadeza com relação a sexo, insegurança, medo, uns momentos de bom humor, e até mesmo arrependimento.
No papel do apresentador de talk shows meio playboy, mundano, festeiro, mulherengo, menosprezado pela imprensa dita séria, mas na verdade inteligente, rápido de raciocínio, seguro, conhecedor das manhas da TV, Michael Sheen enfrenta o duelo com Frank Langella, o duelo Frost/Nixon, de igual para igual. Está muito bem esse ator nascido no País de Gales em 1969 que, no filme A Rainha, interpretou, também com brilho, o primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Os dois atores tinham já representado os mesmos papéis no teatro. Incorporaram seus personagens. Langella ganhou um Tony, o Oscar da Broadway, pelo papel.
Não poderia dizer com toda certeza se pessoas menos interessadas em política, em História contemporânea, iriam desfrutar tanto deste filme bem realizadíssimo, mas imagino que, sim, iriam. É uma história fascinante, riquíssima, e o diretor Ron Howard de fato conseguiu contá-la com um ritmo de um bom filme de suspense. O filme vai num crescendo de tensão, como um bom thriller, até atingir, bem no finalzinho de seus 122 minutos que passam de maneira extremamente rápida, o clímax, um grande clímax.
O filme teve cinco indicações ao Oscar no início deste ano de 2009: filme, direção, ator (para Frank Langella), roteiro adaptado e montagem. Não levou nenhuma estatueta da Academia, mas ganhou nove outros prêmios e teve outras 36 indicações.
Segundo o iMDB, diversos diretores importantes demonstraram interesse em dirigir o filme baseado na peça Frost/Nixon: Martin Scorsese, Mike Nichols, George Clooney e Sam Mendes.
Outra informação interessante que o iMDB apresenta é que o diretor Ron Howard admitiu ter votado em Richard Nixon em 1972, em vez de em McGovern. É estranho, porque uns 95% da comunidade do cinemão americano votam nos democratas.
Um lembrete para quem for ver o filme no DVD: não se pode deixar de ver, nas apresentações especiais, os trechos da entrevista do verdadeiro Nixon ao verdadeiro Frost. É fascinante comparar as imagens. A direção de arte recriou o local da entrevista nos mínimos detalhes.
Imprensa, mesmo ruim, é o melhor que pode haver
Voltando ao começo, como diz o Gonzaguinha, como se deve fazer sempre: o filme nos traz lições, boas lições – embora eles lá no Império sejam tão diferentes da gente, vivam num mundo tão distante da gente.
Nem é o caso de falar de Sarney, Collor, Renan, essa corja toda, hoje tão umbilicalmente ligada ao presidente que dizia que iria fazer tudo diferente, tudo ao contrário do que sempre foi feito. Nem é o caso. Até porque essas pessoas fedem.
É o caso, no mínimo, de constatar de novo essa velha noção que não podemos nunca esquecer: a imprensa pode ser ruim, pode ser uma bosta, pode até mesmo ser vendida – mas é a melhor coisa que há. Sem imprensa que faça oposição ao poder, sem imprensa que denuncie, que investigue, o cidadão se fode, o Estado se agiganta, manda, prevalece.
Não dá para compreender como ainda exista gente que já leu mais do que o Pato Donald e não entenda isto. Não dá para compreender como ainda existam jovens que defendam os Chávez, os Fidel, os Stálin, os Hitler, os Mussolini, os Gaddafi, os Khomeini, os Ahmadinejad da vida – porque eles são todos absolutamente iguais. Todos eles se colocaram na posição de deuses onipresentes, oniscientes, com o dom de promover a Grande Justiça Social (mas normalmente só enchendo seus próprios bolsos, e os dos parentes e amigos), e esmagaram a imprensa, e todos aqueles que fossem contrários a seus desígnios.
Quem defende Estado forte, Estado grande, Estado sempre presente, não defende as pessoas – está contra elas.
É tão simples, é tão claro, é tão límpido – oh, when will they ever learn?
Frost/Nixon
De Ron Howard, EUA-Inglaterra-França, 2008
Com Frank Langella, Michael Sheen, Sam Rockwell, Kevin Bacon, Matthew Macfadyen, Oliver Patt, Rebecca Hall, Toby Jones
Roteiro Peter Morgan, baseado em sua peça teatral
Fotografia Salvatore Totino
Música Hans Zimmer
Produção Universal, Imagine, Working Title, Studio Canal. Estreou em SP 6/3/2009
Cor, 122 min
****
Seus comentários, mais uma vez, são perfeitos. O filme eh ótimo. A comparação com os dias atuais também. Assim como as atuações.
Pareceu um economista liberalista falando no final. Se vc pensa em ser jornalista, meu filho, terá grande sucesso se escrever para A globo, folha de são paulo, ou veja. Se já não for o caso.
Liberdade = bagunça. E é isso que nós vemos. Uma emissora como A globo ter mais influência que o próprio presidente.
O quarto poder precisa ser calado, antes que se torne o primeiro poder.
Uma coisa vc tem razão. Um grande filme. O langella estava ótimo, e esse inglês tem grande carreira pela frente, se escolher os filmes certos.