Uma Jovem Tão Bela Como Eu / Une Belle Fille Comme Moi


Nota: ★★★½

Anotação em 2009: Esta comédia de François Truffaut continua tão absolutamente deliciosa de se ver hoje, 37 anos depois que foi feita, quanto da primeira vez que vi, décadas atrás. É uma história cruel, cheia de ironia, esta que o diretor mais terno do cinema escolheu para contar.

É a história de um sociólogo, trouxa, inocente, que se apaixona por seu objeto de estudo, uma presidiária absolutamente malandra, safada, sacana. Tadinho do nosso sociólogo: ela fará dele gato e sapato.

Não me lembrava em absoluto da primeira seqüência, que é deliciosa. A primeira tomada é de uma prateleira de livros – Truffaut ama os livros, os livros estão sempre presentes em suas histórias. Uma cliente está numa livraria, procurando um determinado livro, Mulheres Criminosas; a atendente diz que vai procurar entre os romances, e a cliente a corrige: não, não, é um trabalho de sociologia. A atendente a conduz então ao patrão, e ele se lembra bem: sim, Mulheres Criminosas, por Stanilas Prévine; chegou a ser anunciado pela editora tal, entrou no seu catálogo, mas afinal não foi publicado, ele diz. E ele mesmo demonstra agora sua dúvida: mas de fato – por que ele não chegou a ser publicado?

E aí, em seguida, sim, vamos à história. É como se fosse um flashback, mas não chega propriamente a ser um flashback; aquela seqüência inicial foi só uma pequena introdução, como aquelas canções da grande música americana e também da MPB que têm uma introdução antes que comecem a melodia e a letra propriamente ditas.

Veremos então um jovem professor de sociologia sendo apresentado por um velho advogado a uma carcereira; a direção do presídio já sabe que o sociólogo está ali para entrevistar presas para seu trabalho de doutorado. Ele quer começar pela presa Camille Bliss. A carcereira se espanta, tenta dissuadi-lo: diz que Camille Bliss é só uma pequena putinha desinteressante. “Aqui temos casos muito mais significativos”. E enumera, com o experiente advogado completando as frases e informações: uma assassina que percorreu 450 km para matar o polonês da oficina; aquela que cortava os homens com uma serra elétrica; a gigante que estrangulou o marido com uma única mão, a esquerda, porque era canhota…

Mas o professor Prévine quer começar por Camille Bliss. Tadinho dele.

Prévine entrevistará Camille diversas vezes, com seu gigantesco gravador de rolo, sua ingenuidade, sua certeza firme de que vai usar a história dela para provar sua tese de que a sociedade, o meio social, a infância pobre e triste foram os responsáveis por moldar nela o caráter que a levou a cometer os crimes. Já na primeira entrevista, em que Camille conta histórias bastante diferentes daquelas que o espectador vê nas telas, fica claro: aquilo ali é coisa ruim, é a total falta de caráter, é o mal em si, fossem quais fossem seu meio social, sua infância, seus pais.

Tadinho do professor Prévine.

Hélène, a bela jovem que datilografa para ele os depoimentos de Camille, mais os comentários em sociologuês que ele faz, bem que tentará mostrar a verdade dos fatos para ele. Mas o bicho já está enfeitiçado.

         Da novela americana para Bernadette Lafont

Truffaut contou que começou a ler a novela americana Such a Gorgeous Kid Like Me, de Henry Farrell, num vôo entre Paris e Madri; dava gargalhadas a cada página, e de imediato, à medida em que ia avançando pelo livro, ia vendo Bernadette Lafont na pele da anti-heroina Camille Bliss. Bernadette Lafont e ele haviam debutado no cinema juntos, no curta-metragem Os Pivetes/Les Mistons, de 1957 – foi o primeiro filme dele como diretor, o primeiro filme dela como atriz.

Jovem Tão Bela 1Bernadette Lafont ficou perfeita na pele da bandida Camille. Na pele e na carne – e que carne. Acho que em nenhum outro filme de Truffaut aparecem tanto as coxas e os peitos de uma mulher como neste aqui, e faz absoluto sentido, porque Camille, uma mulher absolutamente livre, leve e solta, está sempre tirando a roupa. Ela dá mais que chuchu na cerca.

“Assim que eu termino de fazer um filme triste, tenho apenas um desejo: fazer um filme alegre. De maneira geral, o desejo de não se repetir incita a maior parte dos cineastas a fazer movimentos contrários de um filme a outro: a calma depois da tempestade, a ternura depois da violência, o lirismo depois do cotidiano”, escreveu ele, num artigo publicado em fevereiro de 1972 no Le Monde du Spectacle, e depois reproduzido no fascinante livro Truffaut par Truffaut, editora Chêne, publicado em 1985. Ele havia concluído As Duas Inglesas e o Amor/Les Deux Anglaises et Le Continent – era hora de fazer um filme alegre. 

Quando foi atrás dos direitos do livro de Henry Farrell, o diretor ficou sabendo que eles já haviam sido comprados pela Columbia; o estúdio americano tinha tentado fazer uma adaptação, mas depois de algum tempo desistiu; Truffaut acabaria fazendo o filme para a Columbia. (Depois, naquele mesmo ano de 1972, ele começaria a filmar A Noite Americana, que lhe deu o Oscar de melhor filme estrangeiro.)

         Uma organizada traição da realidade

Jovem Tão Bela 2Os créditos iniciais, ao som de uma melodia alegre, jocosa, de Georges Delerue, têm um pequeno porém grave problema. O nome de Bernadette Lafont (ao lado, com Truffaut durante as filmagens) aparece com o destaque devido: ela é o centro do filme mesmo; mas em seguida o destaque é dado Claude Brasseur, Charles Denner, Guy Marchand, atores então já conhecidos. O nome do ator que faz o segundo personagem mais importante, o sociólogo e professor Stanilas Prévine, no entanto, aparece bem pequeno, em meio a outros que fazem papéis menores. É André Dussollier, em sua primeira aparição no cinema; outra estreante foi a garota Anne Kreis, que faz Hélène, a assistente do sociólogo. Ela participaria depois de mais de 50 filmes e/ou episódios para a TV. E Dussollier seria um dos mais importantes atores do cinema francesa nas três últimas décadas do século passado e nesta primeira do atual.

Truffaut, que escreve maravilhosamente bem, com um texto extraordinário, uma vez disse esta frase maravilhosa: “A arte de fazer filmes só pode realmente existir através de uma muito bem organizada traição da realidade”. E ele poucas vezes esteve tão longe de qualquer realismo como neste filme aqui. O tom é de farsa – nada a ver com a realidade. Num dos primeiros flashbacks que mostram a verdadeira história do que Camille está contando ao gravador do sociólogo Prévine, isso já fica muito claro. O pai da garotinha Camille dá-lhe um pontapé na bunda e a menina literalmente voa vários metros, até cair numa carroça de feno.

“A arte de fazer filmes só pode realmente existir através de uma muito bem organizada traição da realidade”. Filho da mãe. Além de fazer belíssimos filmes, ainda sabe escrever como poucos.

Uma Jovem Tão Bela Como Eu/Une Belle Fille Comme Moi

De François Truffaut, França, 1972

Com Bernadette Lafont, André Dussollier, Claude Brasseur, Charles Denner, Guy Marchand, Anne Kreis, Philippe Léotard

Roteiro François Truffaut e Jean-Loup Dabadie

Baseado no livro de Henry Farrell

Música Georges Delerue

Produção Columbia e Les Films du Carrosse.

Cor, 98 min

R, ***1/2

Título em Portugal: Uma Bela Rapariga

8 Comentários para “Uma Jovem Tão Bela Como Eu / Une Belle Fille Comme Moi”

  1. Gostei muito desse filme, não apenas pela genialidade e sensibilidade de François Truffaut mas também porque amo o ator Charles Denner. Gostaria de encontrar a letra da música cantada pela personagem Camilie. Procurei na Internet mas não encontrei.
    Obrigada.

  2. De fato, vi este maravilhoso filme do grande cineasta Truffaut nos anos 70, na TV, e gostaria de revê-lo. A personagem encantadora, enganadora e de maldade tão pura, encantou os galãs e o público. A mim cativou para sempre. Os gênios como Truffaut não deveriam morrer! Deveriam ficar eternamente enriquecendo a humanidade!

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