Nota:
Anotação em 2009: Embora com o risco de deixar chocadíssimos os eventuais leitores, a verdade é que, para mim, Vestida para Matar, o Psicose de Brian De Palma, é tão bom quanto o original do mestre Hitchcock que seu seguidor homenageia. Ou melhor.
De Palma é um apaixonado por Hitchcock – um dos tantos bons cineastas apaixonados por Hitchcock, como François Truffaut e Peter Bogdanovich, para citar só dois que, além de homenagear o mestre em seus filmes, ainda escreveram livros sobre ele.
Truffaut fez dois filmes calcados na obra do velhinho inglês doido e tarado – Sereia do Mississipi, de 1969, e A Noiva Estava de Preto, de 1968, um brilho absoluto. E, tanto neste último quanto em Fahrenheit 451, ainda contou com a trilha sonora do compositor de vários dos filmes de Hitch, o maravilhoso Bernard Herrmann. Mas ninguém procura tanto seguir o estilo de Hitchcock quanto De Palma.
A câmara de De Palma é tão hitchcoquiana quanto a de Hitchcock: sempre se movendo, sempre em travelling, em movimentos elegantes, suaves. Se não tivessem inventado os carrinhos-tróleis que transportam as câmaras, sobre os quais elas deslizam, não haveria Hitchcock – nem De Palma, é claro.
E é uma câmara que volta e meia faz as vezes dos olhos de um voyeur, um tarado por observar, de preferência sem ser visto, as ações dos outros.
De Palma fez a sua própria versão de Janela Indiscreta em Dublê de Corpo/Body Double. E Vestida para Matar é a sua versão de Psicose – escancaradamente, escarradamente.
A cena do chuveiro vem já na abertura do filme
É tão escancarado que ele não espera 30 minutos para emular a cena do banho no chuveiro: já abre o filme com ela. E que seqüência magistral! Ao som da belíssima, envolvente, suave, sensual música de Pino Donaggio, a câmara, localizada em um quarto de dormir, mostra um banheiro – a porta entre o quarto e o banheiro está aberta. Lá vai ela em travelling, suavemente, entrando no banheiro; à esquerda, um homem faz a barba, com uma navalha. (Há navalhas ao longo de todo o filme.) À direita, atrás do boxe de vidro, Angie Dickinson toma banho, em meio ao vapor da água quente e a um imenso tesão; a câmara vai se aproximando dela, a vemos em close; e aí haverá diversas tomadas, em close-up, em super big close-up, de Angie Dickinson no chuveiro, esfregando lentamente o sabonete no corpo, no peito, em torno de um mamilo, do outro; a câmara acompanha as mãos dela, muito mais se acariciando do que passando o sabonete. E aí – crau – um homem chega por trás dela, a prende, a suspende do chão.
Corta, e o marido de Angie Dickinson está trepando nela – não trepando com ela, mas trepando nela, com um desleixo, uma preguiça, uma falta de talento de dar vergonha. Vemos o rosto de Angie Dickinson, e vemos clara, limpidissimamente, que tudo que ela gostaria na vida era de estar sendo bem comida.
Em seguida seremos apresentados ao filho da personagem de Angie Dickinson, Kate Miller: é um garoto de uns 16 ou 17 anos, Peter (Keith Gordon), que está em seu quarto criando uma geringonça tecnológica com a qual vai participar da feira de ciências da escola; é um desses garotos geninhos, tem uma habilidade fantástica para criar gadgets, aparelhinhos que serão imprescindíveis no desenrolar da história.
Kate conversa um pouco com o filho, e vai para a sessão com seu psiquiatra, o dr. Elliott (o papel do grande Michael Caine). Queixa-se do marido, da trepada ruim; provoca o médico, pergunta se ele a acha atraente, se gostaria de comê-la. O dr. Elliott reage à cantada com o maior rigor profissional.
No museu de arte, uma das seqüências mais maravilhosas da História
E em seguida Kate vai passear sua imensa carência em um museu de arte. Fica lá um bom tempo, e um desconhecido senta-se a seu lado. Não fala com ela, no entanto – e, frustrada, Kate passa a persegui-lo através dos belos, imensos salões do museu. Fazem um jogo de gato e rato, os dois, Kate e o desconhecido – até se encontrarem dentro de um táxi diante do museu. Ele vai tirando a roupa dela ali mesmo, no táxi – observado através do retrovisor pelo motorista, tão voyeur quanto o diretor do filme.
Essa seqüência do museu é longa – dura quase uns dez minutos. Não se fala uma palavra – ouvimos a música maravilhosa de Pino Donaggio, enquanto a câmara de De Palma acompanha as caminhadas de Kate pelos salões do museu em travellings espetaculares, sensacionais. Eu ousaria dizer que é uma das seqüências mais sensacionais, mais belas, mais bem realizadas do cinema.
E é, obviamente, uma citação da seqüência de outro filme de Hitchcock, Um Corpo que Cai/Vertigo – aquela em que James Stewart segue Kim Novak exatamente dentro de um museu de arte de San Francisco.
Como Janet Leigh em Psicose, Angie Dickinson, a estrela de Vestida para Matar, desaparecerá de cena antes que tenhamos visto meia hora, no máximo 40 minutos de filme.
É, com toda certeza, o melhor papel dessa atriz de presença forte, mais atraente do que propriamente linda de rosto, mas com um corpo escultural, fantástico, absurdamente belo – que o veterano Howard Hawks havia mostrado em diversas cenas de Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, em que ela interpreta a namorada do xerife John Wayne. Estava com 49 anos, ao dar vida ao personagem de Kate Miller. Está mais sensual do que 99,99% das atrizes de filmes pornôs que passam nos canais a cabo diariamente.
A importância e a beleza da trilha composta por Pino Donaggio
Na trama criada por De Palma (ele é o autor da história e do roteiro), há espaço para imitar Psicose até mesmo no pós-suspense, no momento seguinte à revelação de quem é o assassino. Como em Psicose, temos um psiquiatra para explicar aos personagens – e ao espectador – o que foi exatamente que aconteceu, como, por quê. Mas, como é De Palma, mesmo no pós-suspense, no pós-clímax, exatamente como ele havia feito em Carrie, a Estranha, de 1976, haverá novos sustos – e uma nova cena do chuveiro.
Em um filme tão rico, com tanta coisa boa, quero ressaltar a importância – e a beleza – da trilha sonora composta por Pino Donaggio. O filme não seria o mesmo sem ela. A música é fundamental na criação do clima de sensualidade, de mistério, de angústia. As melodias deslizam como desliza a câmara de De Palma atrás de Angie Dickinson. É uma belíssima trilha – e daquele tipo raro que se pode ouvir com grande prazer independentemente do filme. Encontrei o CD (uma edição americana, um tanto rara) em uma loja de Porto Alegre, e já o ouvi várias vezes, sem cansar – muito ao contrário.
Pino Donaggio fez várias trilhas para De Palma – ficou para ele assim como Bernard Herrmann para Hitchcock, Nino Rota para Fellini, Georges Delerue para Truffaut, Alberto Iglesias para Almodóvar, Carlos Cases para Ventura Pons.
Uma figura, Pino Donaggio. Quem tem mais de 50 anos certamente ouviu suas canções românticas dos anos 60, como “Io Che Non Vivo Senza Te”, “Come Sinfonia”, “Io per Amore”. “Io Che Non Vivo Senza Te” foi um imenso sucesso na gravação original, do próprio autor, e depois, vertida para o inglês como “You Don’t Have to Say You Love”, foi outro grande sucesso com Dusty Springfield e Elvis Presley. Nascido na região de Veneza, em 1941, estudou violino a partir dos dez anos de idade; passou pelo conservatório de Milão, mas deixou de lado a formação clássica para se dedicar ao pop; depois deixou de lado a carreira de cantor popular para se dedicar às trilhas. “Sua primeira trilha composta para o cinema foi a de Don’t Look Now (Inverno de Sangue em Veneza, 1973), notório drama/horror de Nicholas Roeg”, diz Guilherme de Martino, no seu livro Trilhas Sonoras. “Sua maior associação foi com o diretor Brian De Palma, para quem compôs trabalhos memoráveis como Carrie (Carrie, a Estranha, 1976), Dressed to Kill (Vestida para Matar, 1980), Blow Out (Um Tiro na Noite, 1981), Body Double (Dublê de Corpo, 1984) e Raising Cain (A Síndrome de Caim, 1984).”
Mais adiante, diz Guilherme de Martino: “A seqüência do museu em Dressed to Kill é um grande exemplo do talento narrativo de De Palma e da expressividade da música de Donaggio. Seu acompanhamento sonoro, “The Museum”, com quase sete minutos, está incluída na coletânea Donaggio – De Palma (Love and Menace)”.
Até Pauline Kael curvou-se diante do filme
Vamos a outras opiniões. Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4: “O autor-diretor De Palma trabalha com as emoções do espectador, não com a lógica, e mantém uma intensidade febril do começo ao fim. Trilha de Pino Donaggio dá calafrios.”
Roger Ebert, que deu 3 estrelas em 4 (e cujo texto estou lendo só agora, depois de anotar os parágrafos acima), faz a inevitável comparação com Hitchcock. Diz que o filme é um thriller hitchcockiano “estiloso, intrigante e muito violento”. E que De Palma “coloca ênfase nas mesmas coisas pelas quais Hitchcock tinha obsessão: movimentos de câmara precisos, detalhes visuais meticulosamente selecionados (…), e violência como uma súbita interrupção das situações mais normais”. E, mais tarde: “A seqüência do museu é absolutamente brilhante”.
Fantástico: Pauline Kael, que vê um monte de defeitos até em Casablanca, curvou-se diante de Vestida para Matar. “Um dos filmes mais simplesmente gostosos dos últimos anos, esta sofisticada comédia de horror, escrita e dirigida por Brian De Palma, está impregnada da essência destilada de pensamentos impuros. Passado em Manhattan, trata de sexo e medo; De Palma apresenta fantasias extremas e empurra a platéia para dentro delas com uma tão natural facilidade que o prazer do suspense se torna afrodisíaco. Angie Dickinson exibe uma gama de expressões muito mais sinceras do que se poderia esperar de uma loura dourada bonita, quarentona, casada e frustrada, ansiando por ser amada.”
Ahá! E agora vou inaugurar meu mais novo alfarrábio, que minha irmã Nilze e eu demos de presente pra mim, o Guide des Films do Jean Tulard, sexta edição, em três volumes maravilhosos de mais de 1.200 páginas cada. Um guia como todo guia gostaria de ser quando crescesse – mais de 15 mil títulos, com cotação, boa ficha técnica, sinopse e avaliação crítica; 41 colaboradores, coordenados pelo Tulard. A primeira edição é de 1990; esta sexta, de 2005. Maravilha: uma ferramenta para que eu não cite apenas opiniões de americanos, e possa contrabalançá-las com as daquele povo que tem alguns milhares de anos de civilização a mais. Depois do nosso comercial, vamos lá:
O Guide do Tulard dá 4 estrelas em 4; diz que a seqüência do museu remete a Um Corpo que Cai (Sueurs Froides, suores frios, na segunda língua da Carla Bruni) e a seqüência do elevador, a Psicose. “Mas é preciso ousar afirmar, o aluno (muito) dotado ultrapassou largamente o mestre por uma razão evidente e que se afirma quando se reflete: De Palma ama seus personagens, ao contrário de Alfred, que esnoba até seus personagens ‘positivos’. Pulsions (sim, lá Vestida para Matar teve o título de Impulsos) é uma obra-prima (…), é um filme antológico em que cada cena ‘produz efeito’, em que cada cena é pensada. (…) Nunca Nancy Allen (mulher, na época, do diretor) esteve tão bem quanto aqui. E quando se ousa filmá-la tão bem vestindo só a roupa de baixo, com ligas pretas (lugar-comum obrigatório do erotismo contemporâneo), é porque se está muito seguro de si mesmo.”
É isso aí! Eu quase pedi desculpas, no começo do texto, quando ousei comparar o filme a Psicose; o guia do Tulard diz que o aluno ultrapassou o mestre, na maior tranqüilidade. Ele pode.
É de fato um filme para rever sempre, com imenso prazer.
Vestida para Matar/Dressed to Kill
De Brian De Palma, EUA, 1980
Com Michael Caine (Dr. Robert Elliott), Angie Dickinson (Kate Miller), Nancy Allen (Liz Blake), Keith Gordon (Peter Miller), Dennis Franz (Detetive Marino), David Margulies (Dr. Levy), Kenny Baker (Warren Lockman), Fred Weber (Mike Miller)
Argumento e roteiro Brian De Palma
Fotografia Ralph D. Bode
Música Pino Donaggio
Produção Filmways Pictures
Cor, 105 min.
R, ****
Título em Portugal: Vestida para Matar. Título na França: Pulsions.
meu filme favorito do de palma é o dublê de corpo, mas esse também é muito bom.
Obrigado pelas informações sobre Pino Donaggio. Eu o conheço das famosas canções românticas italianas, que embalaram muitos dos meus bailes de juventude, e não havia notado sua presença nos filmes de De Palma (e suas sempre belas trilhas). Curioso isso. Apesar de muito ligado em trilhas de filmes (tenho bom acervo delas), nunca havia me chamado a atenção o nome do compositor preferido de De Palma (só recentemente, quando revi Vestida para matar). Pensei que ele estivesse presente só neste filme…
Lembro do enorme prazer ao assistir pela primeira vez a este filme, já visto por mim tantas e tantas vezes mais. O filme nos prende e nos faz interagir com ele e sua trama, que nos pega uma boa peça. Excelente!
Gostei bastante de o ver quando surgiu no cinema, mas, com o passar do tempo, acho que perdeu muito fulgor.
Comprei recente o DVD (usado) e não me entusiasmou.
O próprio De Palma tornou-se um realizador mais ou menos banal, para todo o serviço.
Não é, nem pouco mais ou menos, um novo Hitchcock.
Sérgio, eu adoro o Brian de Palma, acabei de rever Dublê de Corpo e só de ler o seu comentário a Vestida para Matar me deu vontade de revê-lo também, só para prestar atenção nesse detalhes de que você fala no post. Esse nosso vício em cinema ainda vai nos levar à morte rsrsrs. Depois que eu vir o filme escrevo o que achei.
Guenia Bunchaft
http://www.sospesquisaerorschach.com.br