Violência e Paixão / Gruppo di famiglia in un interno

Nota: ★★★☆

Anotação em 2011: Importante, cultuado, reverenciado, premiado, penúltima obra do mestre Luchino Visconti, Violência e Paixão não me pareceu, na revisão hoje, um filme agradável de se ver. Ao contrário. Ao apresentar aquela galeria de tipos abjetos, na sua recorrente exposição da decadência da burguesia, Visconti provoca engulhos no espectador.

Bem, esta era, aparentemente, sua intenção. E ele consegue realizá-la, sem dúvida alguma.

A história – de autoria de Enrico Medioli, roteirizada por ele, mais a grande Suso Cecchi d’Amico e o próprio Visconti – gira em torno de um professor idoso, respeitável, muito rico, um intelectual, homem de muita cultura, que vive cercado de livros e de dezenas e dezenas de obras de arte – retratos de famílias, ou conversation pieces – em um gigantesco apartamento em Roma. É o papel de Burt Lancaster (e mais adiante será necessário falar de Burt Lancaster e Luchino Visconti).

Todos o chamam de Professor, com o maior respeito, e o espectador não ficará sabendo seu nome, seu sobrenome, como de resto não ficará sabendo de muita coisa de seu passado, de quem ele é. Veremos que sua mãe era italiana, mas ele é americano, viveu muito tempo nos Estados Unidos, lutou na Segunda Guerra, e faz décadas mora no apartamento imenso que herdou da mãe.

Não se parece em nada com outros milionários americanos radicados na Europa mostrados em dezenas e dezenas de filmes – novos ricos, ignorantes, espalhafatosos, certos de que o dinheiro pode tudo. De forma alguma. O professor tem todo o porte de um aristocrata europeu, um homem sábio, refinado, extremamente cioso de sua solidão, isolado em sua torre de marfim.

Uma mulher grosseiramente impetuosa irrompe na calmaria da vida do Professor

Sua vida tranqüila, solitária, entre livros, quadros antigos de grande valor, conversation pieces de pintores ingleses famosos do séculos XVIII e XIX, e discos das melhores gravações de peças eruditas, é abalada na seqüência que abre o filme. Uma mulher rica, impetuosa, grosseiramente impetuosa, irrompe na calmaria da vida do Professor sem pedir licença. Chama-se Bianca Brumonti, é marquesa, surge na pele de Silvana Mangano, essa atriz maravilhosa, uma das grandes estrelas do cinema europeu (na foto abaixo), e quer porque quer alugar o andar de cima do apartamento do Professor, que também pertence a ele e está atualmente desocupado.

O Professor é firme: o andar de cima não está para alugar; ele pretende reformá-lo e passar para lá sua biblioteca.

A Marquesa Brumonti é uma mulher que não aceita um não como resposta, e insiste em ver o apartamento de cima. Estão lá os dois, o Professor educado, contrito, ar senhorial, aristocrático, e a marquesa intrusa, intrometida, com aquele ar de novo rico (apesar do título de marquesa, provavelmente adquirido do marido) que tudo pode, que tudo compra, quando o lugar é literalmente invadido por uma jovem aí de uns 18 anos, Lietta (Claudia Marsani), a filha da marquesa, um jovem amigo da família, Stefano (Stefano Patrizi) e um homem de beleza tão grande quanto sua empafia, Konrad (o papel de Helmut Berger).

É como uma manada de elefantes invadindo uma loja de louças

O espectador não vai demorar a saber – será dito com todas as letras pela própria marquesa – que Konrad é o amante dela, teúdo e manteúdo por ela. É para ele que a marquesa quer alugar o apartamento – para ser usado por ele, e também, eventualmente, por ela e sua filha Lietta, quando estiverem em Roma, e não na casa de Paris, na casa de Londres ou viajando pelos diversos lugares europeus frequentados pelos muito ricos.

A irrupção daquela chusma barulhenta, berrante, sem modos, aquela manada de elefantes que entra na loja de louças do Professor o deixa evidentemente tonto, zonzo. Konrad, sobretudo, o deixa sonso.

O Professor mantém sua palavra, e sua palavra é não – não, o apartamento não está para alugar, não, não tem jeito. A princípio, ele mantém sua palavra. A princípio.

Pessoas inúteis, estúpidas, intragáveis, imorais

Sob qualquer tipo de lógica, seria não, e pronto. O Professor manteria sua palavra para todo o sempre, ficaria fiel a seus planos de reformar o andar de cima para ali instalar sua biblioteca, e não se misturaria com aquelas pessoas tão absolutamente diferentes dele, tão ofensivamente grosseiras, rudes, escandalosas, sem educação, sem moral, sem princípios – nadando de braçada na sua montanha de dinheiro, como se nadar de braçada em montanha de dinheiro lhes desse o direito a tudo.

Se o Professor dissesse não, seria a lógica – mas aí não haveria o filme.

Me incomodou muito o fato de que o firme não do Professor rapidamente se transforma em sim, e a chusma vai se instalar ali sobre a cabeça dela. Me incomodou o fato de que, assim como o Professor, eu teria que aguentar, ainda que apenas por duas horas, aquelas pessoas inúteis, estúpidas, intragáveis, imorais.

Conde e marxista, homossexual apaixonado por rostos belos

A questão é: por que raios, afinal, o Professor permite que a chusma adentre sua vida, acabe com seu sossego, destrua a solidão confortável que ele desfrutava na sua torre de marfim?

A resposta é ao mesmo tempo simples e complexa: o Professor permite que o inferno entre em sua vida porque ele é uma criação de Luchino Visconti.

Visconti, um dos maiores artistas do século XX. Conde e marxista, gênio no teatro, no cinema, homossexual numa época em que sair do armário ainda não era propriamente bem aceito.

Apaixonado pela beleza, Visconti filmou, com imensa paixão, alguns dos rostos masculinos mais belos que já passaram pelas telas. Em Rocco e seus Irmãos, de 1960, focalizava não apenas o rosto, mas também o peito de Alain Delon, as axilas de Alain Delon. Filmaria Delon de novo na sua maior obra-prima, O Leopardo, de 1963, em que estavam também Burt Lancaster e Claudia Cardinale – credo em cruz, quanto rosto bonito num filme só.

Depois filmaria Jean Sorel como o irmão incestuoso de Claudia Cardinale em Vagas Estrelas da Ursa, de 1965. Mas o conde marxista se derretaria ainda mais por Helmut Berger. Faria com ele Os Deuses Malditos, de 1969, Ludwig, A Paixão de um Rei, de 1972, e este Violência e Paixão, de 1974.

Mais que sexo, drogas & Wolfgang Amadeus Mozart

Não sei se Visconti tinha um pouco de vergonha de sua opção sexual, naquele tempo, os anos 70, e naquele país conservador e religioso, a Itália, em que a homossexualidade ainda era algo probido, tabu. A forma como ele mostra o encantamento do Professor por Konrad indica que sim, que no fundo o conde Luchino não se sentia inteiramente à vontade para admitir sua homossexualidade.

O Professor fica impressionado por Konrad por motivos diversos. Há a óbvia beleza do rosto do rapaz; há uma difusa tristeza por trás da máscara arrogante do gigolô da marquesa – e que se revelaria mais tarde algo bem mais complexo, envolvendo, mais do que sexo, drogas & Wolfgang Amadeus Mozart, também a política, o comunismo versus o fascismo. Há também uma inteligência, uma sensibilidade que o rapaz não exibe para a amante, para a filha da amante com quem também trepa, até porque eles não saberiam do que se tratava, mas que o Professor reconhece de imediato.

Não é apenas uma paixão pela beleza – como a paixão do personagem de Dirk Bogarde pelo jovenzinho em Morte em Veneza, de 1971 – a que o Professor desenvolve por Konrad, o gigolô traficante de drogas que se revelará também um ativista político. É, sim, um fascínio pela beleza, mas também pelo que o Professor percebe que há de sensibilidade em Konrad, que os demais não percebem porque os demais são pessoas pequenas, menores, medíocres.

Mas o Professor não abre a guarda – ou pelo menos não abre a guarda totalmente. Não permite que os outros percebam claramente que transformou seu renitente não em sim em boa parte por causa de Konrad.

E talvez nem seja principalmente por causa de Konrad. Apesar de desprezar todas aquelas pessoas, o Professor de alguma forma as convida para entrar em seu mundo privado, antes exclusivo dele mesmo. Está solitário, e talvez esteja cansado da solidão – aquelas pessoas, embora inferiores a ele, embora completamente diferentes dele, talvez sejam a última oportunidade que ele tenha na vida de ter algo como uma família.

Duas deusas em pequenos papéis, sem seus nomes nos créditos do filme

O Professor, o principal personagem da trama, é mostrado por Visconti e seus co-roteiristas com mais lacunas do que explicações.

Há duas seqüências em que aparece a mãe do Professor – e ela vem na pele diáfana, no rosto esplêndido de Dominique Sanda – e uma única sequência, se não estou enganado, em que vemos a mulher com quem o Professor se casou, e esta aparece no rosto babante, expressionante, de La Cardinale.

São sequências de uma beleza plástica absurda – até porque os rostos focalizados pela câmara, os de Dominique Sanda e Claudia Cardinale, são dos mais belos que já povoaram as telas de cinema. São belíssimas, as sequências – mas são abertas à compreensão de cada espectador. Não explicam, não especificam nada. Que cada um faça a sua leitura.

Eu não faço leitura alguma – só penso na escolha de Dominique Sanda e Claudia Cardinale para fazerem aquelas aparições especiais, sem que seus nomes sejam mencionados em lugar algum dos créditos do filme.

La Cardinale, tudo bem: Visconti adorava aquela figura, já havia feito três filmes com ela, primeiro Rocco e seus Irmãos, ela num papel pequeno, depois O Leopardo, depois como a protagonista de Vagas Estrelas da Ursa.

Mas La Sanda, por que La Sanda? Não me lembro de outro filme de Visconti com ela. Antes desta participação especialíssima aqui, Dominique Sanda havia aparecido em O Conformista, de 1970, do então jovem Bertolucci, e em O Jardim dos Finzi-Contini, do mesmo ano, de Vittorio De Sica. Em Finzi-Contini, Dominique Sanda fazia o papel de irmã do personagem interpretado por Helmut Berger. (E é fascinante: quando anotei sobre Finzi-Contini, ousei fazer muitas comparações-dessemelhanças entre De Sica e Visconti, o homem mais do povo e o conde, o cineasta do coração e o cineasta intelectual.)

Talvez tenha sido apenas a paixão por rostos lindos, perfeitos – sem qualquer outra explicação. E então, em 1974, no que seria seu penúltimo filme, o conde escolheu para interpretar a mãe do Professor a atriz que havia brilhado no filme do então quase iniciante Bertolucci, e no filme do seu colega tão distante, o veterano De Sica.

Um ator de beleza máscula, paixão do cineasta que amava rostos quase femininos

E há Burt Lancaster.

Ninguém lê na internet mais do que 140 toques, dizem todos os sábios, e lá vou eu para o segundo volume do Guerra e Paz a respeito de um filme que achei desagradável de se rever. Desagradável de se rever, mas de Luchino Visconti, e que, portanto, merece o maior respeito.

A personagem interpretada por Anna Magnani em Belíssima, de 1951, o terceiro filme dirigido por Visconti, era apaixonada por Burt Lancaster.

Para interpretar o príncipe de Salina em O Leopardo, de 1963, Luchino Visconti escolheu Burt Lancaster.

Burt Lancaster havia sido artista de circo, antes de virar ator de cinema. Tinha uma beleza masculina, máscula, de maschio, de macho – o oposto da beleza quase feminina de Alain Delon, Jean Sorel, Helmut Berger. O conde marxista homossexual que já demonstrava ser fã de Burt Lancaster em 1951 chamou o ator americano que havia sido artista de circo para interpretar o príncipe de Salina, aquele que acreditava na máxima de que se deve dar a impressão de que se está mudando tudo para que tudo permaneça igual.

Em 1974, para aquele que seria seu penúltimo filme, Visconti chamaria de novo Burt Lancaster para interpretar o papel principal.

E é fantástico pensar que, dois anos depois, Bertolucci escolheria exatamente o mesmo Burt Lancaster para interpretar o velho nobre em seu afresco socialista sobre a primeira metade do século XX, Novecento – no qual brilha a beleza de Dominique Sanda.

O diretor de teatro consegue domar a fera – e Burt Lancaster faz uma interpretação suave

Não existe um único Burt Lancaster, e sim vários. Ele fez diversos filmes – muitos deles ótimos, alguns excepcionais – em que sua interpretação é a de um perfeito careteiro. Faz todas as caretas possíveis, por exemplo, no western Vera Cruz. Pelo papel mais exageradamente careteiro que fez, o do falso pastor Elmer Gantry em Entre Deus e o Pecado, de Richard Brooks, de 1960, ganhou um Oscar. (Teve três outras indicações: por A Um Passo da Eternidade, de 1953, O Prisioneiro de Alcatraz, de 1962, e Atlantic City, de 1980, de Louis Malle – mais um filme seu dirigido por cineasta europeu.)

Dirigido por Visconti, o careteiro se transforma. O diretor italiano doma o americano ex-artista de circo, o transforma num ator que fala pausadamente, que brilha mais nos silêncios, nas pausas, que na voz alta.

Até porque, porte nobre, educado, o Professor não fala jamais em voz alta.

Interiores, interiores, retratos de família

Todos os 126 minutos de duração de Violência e Paixão se passam em interiores: ou no apartamento do Professor, ou no andar de cima, onde se instala a família promíscua da marquesa Brumonti. Só se enxerga o exterior em algumas tomadas nas varandas dos apartamentos – mas não é uma Roma de verdade que se vê, naquelas raras tomadas. Visconti fez seu diretor de arte criar uma paisagem romana fake, falsa, de encomenda (mais adiante, transcreve-se uma explicação de Visconti sobre isso). Coisas de um artista cuidadoso, meticuloso, detalhista.

Interiores. Tem tudo a ver com o título original, Gruppo di famiglia in un interno, grupo de família num interior.

Visconti e seus atores fizeram o filme em duas versões: uma falada em italiano (imagino que, nessa, Burt Lancaster tenha sido dublado, como deve ter sido também em O Leopardo e Novecento), outra falada em inglês. A versão disponível em DVD no Brasil, num lançamento da Versátil, com várias extras, é a falada em inglês. O título em inglês é Conversation Piece.

Sem medo de parecer ignorante (até porque sou mesmo), confesso que não conhecia o significado da expressão conversation piece. É um termo usado pelos conhecedores de artes plásticas; significa retratos de família. Diz a Wikipedia: “Conversation piece é o termo para um grupo informal de retratos, especialmente aqueles pintados na Grã-Bretanha no século XVIII, a partir dos anos 1720. Eles se caracterizam por retratar um grupo aparentemente entretido em conversa ou alguma atividade, muitas vezes ao ar livre. Tipicamente o grupo será formado por membros de uma família, mas amigos podem ser incluídos.”

São exatamente os quadros de conversation piece que o Professor coleciona com cuidado e afeto.

As opiniões de dois críticos americanos e um europeu

Vamos a outras opiniões.

Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4: “Solene história de professor idoso e arredio Lancaster que se envolve com os filhos hedonistas da matrona Mangano e seu jovem amante, Berger. Muita falação”.

Pauline Kael, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema: “O tema é Morte em Veneza outra vez, com Burt Lancaster fazendo Aschenbach para o Konrad de Helmut Berger (um Tadzio espalhafatoso e adulto). Mas o diretor, Luchino Visconti, encontra-se num estado de espírito jovial, e o velho digno – um professor americano aposentado – não é destruído; ao contrário, é chamado de volta à vida. Os filmes de Visconti sempre têm umas subcorrentes de tolice, e neste a tolice fica muito perto da superfície; contudo, há grandeza nas loucuras do diretor, e no fato de ele deixar que suas obsessões sexuais e políticas se exibam tão abertamente. Como Konrad, que se muda para um apartamento na casa do professor, Berger ostenta maneirismos que muitos outros atores evitariam. Ninfeta petulante, Konrad é mantido por uma condessa venenosa, dada a faniquitos (Silvana Mangano), mas pretende ser um revolucionário. Na visão de Visconti, Konrad é vítima daqueles aos quais vende seus favores, e no fim revela-se que é um santo. É um filme idiossincrático, tolo – um filme de um velho (dirigido em parte de uma cadeira de rodas) – mas muito simpático. Com Claudia Marsani e Stefano Patrizi, e breves aparições de Dominique Sanda e Claudia Cardinale.”

Vixe, estava especialmente ferina, a língua da grande dama da crítica americana. Trocou marquesa por condessa, mas isso é o de menos. Chamar Konrad de ninfeta petulante é um brilho.

Visconti não era tão velho assim; estava com 68 anos quando dirigiu o filme. Mas estava, sim, doente; havia tido um ataque cardíaco durante as filmagens de sua obra anterior, Ludwig – A Paixão de um Rei.

Agora, a visão de um europeu. O Guide des Films de Jean Tullard dá 4 estrelas para o filme, a cotação máxima – e ele é muito sovina para dar cotação máxima. Diz o Guide:

“Uma filme magnífico que não se pode resumir melhor do que o fez o próprio Visconti: ‘Este filme é a história de um intelectual da minha geração que, não chegando a viver de acordo com seu tempo, tropeça violentamente com a geração de hoje e sai dessa experiência profundamente destruído pelo resto de sua vida’. Visconti trata seu tema numa espécie de huis clos (a portas fechadas) sufocante: ‘Eu me recusei, voluntariamente, a rodar as tomadas externas reais, já que nada seria tão fácil. A partir da varanda do apartamento do professor se percebe uma vista de Roma. Pedi a meu decorador, Mario Garbuglia, que pegasse uma série de elementos do barroco romano (como, por exemplo, a fachada do Palácio Falconieri) que recompus com uma completa liberdade de proporções e de posições.’ Interpretação soberba de Burt Lancaster.”

Depois do Guide des Films, não há mais nada a dizer. Ou não deveria haver. Mas eu sou incorrigível, não tenho jeito mesmo, e quero falar de “Testardo Io”.

Se eu já soube um dia a origem de “Testardo Io”, tinha me esquecido

Era mesmo uma figura, o conde marxista homossexual. Como músicas incidentais de seus filmes, ele costumava misturar o mais erudito ao mais pop.

Quando vi pela primeira vez Vagas Estrelas da Ursa, adolescente em Belo Horizonte, fiquei impressionado ao ouvir, numa determinada cena, Pino Donaggio cantando seu grande sucesso “Io che non vivo” (aquela que diz “Io che non vivo più di un ora senza te come posso fare una vita senza te” – e depois, no estribilho: “Sei mia, sei mia!”). Nos anos 60, em Belo Horizonte, as rádios tocavam canções italianas, francesas, e a gente ouvia os Beatles e os Rolling Stones mas também Pino Donaggio, Sergio Endrigo, Nico Fidenco, Gilbert Bécaud, Michel Polnareff, Marie Laforêt.

Vagas Estrelas da Ursa vai ao som de César Franck, Prelúdio, Coral e Fuga – mas, lá pelas tantas, um rádio toca Pino Donaggio cantando “Io che non vivo”. Pino Donaggio mais tarde pararia de fazer gostosas, grudentas, românticas canções pop, e viraria um belo autor de trilhas sonoras – fez as trilhas de vários filmes de Brian De Palma, e a trilha de Vestida para Matar é nada menos que brilhante, genial.

Violência e Paixão tem Mozart. Konrad invade o sacrossanto apartamento do Professor, pega um disco de Mozart e põe para tocar. Ouvem Mozart por alguns momentos, o gigolô, ninfeta petulante, e o sério, sisudo velho intelectual. Mas, bem mais tarde, no entanto, Konrad vai embalar uma suruba com algo bem mais chão, bem mais popular – uma canção dessas que, quando grudam na cabeça da gente, é que nem chiclete no sapato, difícil demais de desgrudar. Me lembrava da canção, é claro, mas não sabia identificá-la. Pois se chama “Testardo Io”, também conhecida como “La Mia Solitudine”, e no filme é cantada por Iva Zanicchi, segundo o IMDb.

Muita gente gravou a canção, foi um imenso sucesso na Itália nos anos 70, a época em que foi feito o filme. O YouTube está cheio de gravações de “Testardo Io”. Roberto Carlos gravou a canção em italiano, e sua gravação foi lançada em compacto simples, ou 45 giri, na Itália, conforme se pode ver na internet, em 1974, exatamente o ano de Violência e Paixão.

Ué… Péra lá…

Ma puta que o pariu! “Testardo Io” é um original de Roberto e Erasmo! É “À distância”, do disco de Roberto de 1972! Só agora, ao escrever esta anotação sem fim, foi que finalmente me caiu a ficha! Letra e música Roberto e Erasmo, versão para o italiano de Cristiano Malgioglio.

Grande Roberto! Hoje em dia umas sete entre dez pessoas bem informadas torcem o nariz para Roberto, mas o cara tem em seu currículo a glória de figurar num filme de Luchino Visconti.

Grande Visconti.

Violência e Paixão/Gruppo di famiglia in un interno

De Luchino Visconti, Itália-França, 1974

Com Burt Lancaster (o professor), Helmut Berger (Konrad Huebel), Silvana Mangano (marquesa Bianca Brumonti), Claudia Marsani (Lietta Brumonti), Stefano Patrizi (Stefano), Elvira Cortese (Erminia, a governanta). E, em participações especiais, sem aparecer nos créditos, Dominique Sanda (a mãe do professor) e Claudia Cardinale (a mulher do professor).

Roteiro Suso Cecchi d’Amico, Enrico Medioli e Luchino Visconti

Baseado em história de Enrico Medioli

Fotografia Pasqualino De Santis

Música Franco Mannino

Produção Rusconi Film e Gaumont International. DVD Versátil

Cor, 126 min

R, ***

Título em inglês: Conversation Piece. Título na França: Violence et Passion.

 

Um comentário para “Violência e Paixão / Gruppo di famiglia in un interno”

  1. Desculpe-me, mas vou ser um tanto prolixo.
    Primo, a ilustração sobre a música de autoria
    desse gigante que é Roberto Carlos, que, à medida que envelhecemos (ou amadurecemos) maior dimensão alcança. Nunca atentei para tal e agradeço muito essa informação.
    Sobre o filme. È maravilhoso. Evidentemente, sentimo-nos desconfortáveis com aquele bando de fúteis, emergentes boçais, a profanar o
    santuário do esteta, pois todos nos colocamos na pele do Professor… Mas, essa sensação de angústia e desconforto físico que experimentamos foi o que Visconti buscou transmitir, suponho. Adoro esse filme, um de
    meus Visconti favoritos.
    Relação Visconti-Lancaster – Nos extras do Leopardo, o produtor G. Lombardo conta que
    ele achava que Lancaster deveria ser o Principe de Salina, mas Visconti não queria
    saber e em tom depreciativo disse que ele
    era ator de western…Aí, Lombardo inventou
    que, em certa ocasião, havia se encontrado com Lancaster e que esse lhe confidenciara que seu sonho era ser dirigido por Visconti…Depois, Lombardo voou para os EEUU e procurou Lancaster com essa proposta,
    mas Lancaster teria se recusado por ignorar quem era Visconti, mas Lombardo insistiu dizendo que Visconti o considerava o maior
    ator em atividade. Assim, ele conseguiu que
    Lancaster viajasse até a Itália e, segundo ele, após apresentá-los deixou-os trancados numa sala…e, deu certo, como sabemos.
    Visconti diretor de atores – É evidente que
    Burt Lancaster, após ser dirigido por Visconti, atingiu um novo e elevado patamar
    como ator. A partir daí suas atuações passaram a ser remarcáveis, antológicas. A notável habilidade de Visconti na direção de
    atores – veja-se Alain Delon – pode ser explicada por um episódio. Há cerca de 3 anos, em Paris, passou um documentário sobre
    a maravilhosa Romy Schneider. E, a certa altura, mostrava que, na época em que ela namorava Delon, ele a obrigou a acompanhá-lo numa visita a Visconti. Lá o Maestro (como Delon o chamava) pediu que Romy lesse um texto. Ela o fez e ele fez uma crítica dura a sua interpreetação. Ela – no auge do sucesso por Sissi – chorou e detestou o Maestro. Delon inistiu com Visconti para que a dirigisse. E ele a treinou e fez dela uma atriz de teatro, que durante dois ou três anos seguidos ganhou o prêmio de melhor atriz nos palcos franceses, e se tornou essa fabulosa e inesquecível Romy Schneider.
    Helmut Berger – foi o último amante de Visconti e, consta, o humilhava publicamente. Depois de sua morte, ao ver a dimensão do legado de Visconti, passou a apresentar-se como “sua viuva”. Em maio, em
    Paris, eu o vi num programa de televisão,
    filmado em sua casa nos Alpes, e sua decadência física pareceu-me chocante. Um caco, como se dizia.
    Finalmente, registro meu inconformismo pela forma glacial de sua crítica na abordagem da figura maravilhosa de Silvana Mangano, uma
    das mais sensuais atrizes da história do cinema, uma das mitológicas deusas da tela.
    E, com todas as escusas possíveis, penitencio-me pela extensão desse comentário, que deve ser atribuído à admiração que tenho por esse espaço e seu titular.

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