Nota:
(Disponível na Amazon Prime Vídeo em 10/2023.)
Angela (2023), dirigido por Hugo Prata, com Ísis Valverde no papel de Ângela Diniz, a socialite que ficou famosa nos anos 70 como a Pantera de Minas, é um filme muito bom.
E, em uma dessas coincidências fantásticas de que é feita a vida, foi lançado na mesma época – o segundo semestre de 2023 – em que o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão histórica sobre o tema do filme. (Falo do STF mais adiante.)
Por sua importância, por tudo o que significou para gerações de brasileiros, talvez a minha em especial, o caso de Ângela Maria Fernandes Diniz e seu amante Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca, merecia ser contado em um bom filme. Quando terminamos de ver o filme, me deu uma alegria grande ver que felizmente a história caiu nas mãos de gente competente, que fez uma beleza de trabalho.
A direção de arte, de Cassio Amarante, uma beleza. A fotografia, de Paulo Vainer, caprichadíssima, perfeita, linda. A montagem, de Tiago Feliciano, precisa.
O roteiro de Duda de Almeida, com pesquisa de Helena Dias, límpido, correto, centrado, no ponto. Achei que foi uma bela decisão a de não pretender ser uma biografia de Ângela Diniz, e sim especificamente o relato do relacionamento entre ela e Doca Street. A história do assassinato do caseiro de Ângela ainda em Belo Horizonte, em 1973, na qual acabou se envolvendo um outro amante da moça, é um bom material dramático, assim como os boatos de relações homossexuais, mas mexer com essas coisas seria perder o foco, e centrar o filme especificamente na relação Ângela-Doca foi uma bela opção.
Talvez o filme tenha cenas de sexo um pouquinho demais da conta. Mas o sexo, tudo indica, era fundamental na relação, então a insistência nele não é algo gratuito.
E, sobretudo, é uma beleza o trabalho do diretor Hugo Prata, para quem tiro o chapéu e faço grande reverência. Em especial, me pareceu impressionante como ele soube dirigir os atores; todo o elenco está muito bem, algo que não é exatamente comum no cinema brasileiro recente.
Merece elogios Ísis Valverde, à frente de todos, no papel bastante difícil. Assim como também merecem loas Gabriel Braga Nunes, que interpreta Doca Street; Gustavo Machado, que faz o colunista social Ibrahim Sued, namorado de Ângela na época em que ela conheceu Doca; Carolina Manica, que faz Adelita Scarpa, a milionária esposa de Doca.
E mais Alice Carvalho, Bianca Bin e Emílio Orciollo Netto, que interpretam personagens fictícios, talvez compósitos, ou seja, inspirados em mais uma pessoa da realidade. Alice Carvalho é Lili, a empregada da casa da Praia dos Ossos, em Búzios, que foi testemunha fundamental de tudo, e Bianca e Emilio são Tóia e Moreau, o casal de amigos que vende para Ângela a casa.
E aqui é necessário mencionar os nomes de Deborah Carvalho e Fernanda Ranieri, creditados como produção de elenco.
Todos eles profissionais que fizeram, sem dúvida, um belo trabalho.
Direção de arte, fotografia, montagem, roteiro, atores, direção geral – tudo de qualidade. Mas talvez o principal mérito de Angela seja o fato de que o filme não procura mostrar a protagonista da história como uma mulher perfeita, maravilhosa, exemplar. Uma santa criatura.
Não. De forma alguma.
A Ângela Diniz que o filme mostra é uma mulher de carne e osso, com problemas, imperfeições, defeitos.
Como todas as pessoas.
Quem não conhece o caso, ou não se lembra dele, atenção!
Me ocorreu que talvez um eventual leitor chegue aqui sem conhecer o caso, ou talvez sem se lembrar dele.
Assim, é preciso fazer o alerta. Quem não conhece o caso Ângela Diniz, e quem prefere ir se lembrando dele enquanto vê o filme, deve parar de ler por aqui. Já. Imediatamente.
Tudo durou apenas quatro meses!
Diferentemente do que fazem muitos filmes baseados em histórias reais, Angela não usa aquele esquema de colocar letreiros com local e data dos fatos. Se o diretor Hugo Prata tivesse usado essa coisa de informar o onde e o quando, teria mostrado com uma clareza acachapante como tudo durou muito pouco. Absurdamente, loucamente muito pouco: quatro meses, apenas.
Na sequência inicial – que mostra a festa em que Ângela e Doca Street se conheceram -, o letreiro seria “São Paulo, agosto de 1976”. Na sequência final seria “Praia dos Ossos, 30 de dezembro de 1976”.
A festa foi na mansão de Doca e sua mulher, a milionária Adelita Scarpa. Ângela foi levada até lá pelo seu então namorado, Ibrahim Sued, o dos bordões “Os cães ladram e a caravana passa” e “À demain, de leve”, durante muitos anos o colunista social mais famoso do Brasil. (E não consigo deixar de lembrar da historinha que se contava nos anos 60. Dizia-se que, quando o grande ator Edward G. Robinson, tido como um conhecedor de várias línguas, esteve no Brasil e foi apresentado a Ibrahim Sued, perguntou: “Como é possível você ser brasileiro, com esse nome?”)
Na primeira sequência depois da festa na casa milionária, quando filme está com apenas uns 11 minutos, Ângela e Doca estão trepando.
Foi tudo bem rápido – só quatro meses, meu!
Há uma sequência muito interessante ainda no início do filme, antes de chegarmos a 30 minutos. Estão todos em um clube noturno, bebendo, dançando. Ibrahim Sued ainda era o namorado oficial de Ângela – Doca era apenas o amante às escondidas. A moça está dançando e se divertindo muito com um rapaz qualquer do grupo; a câmara do diretor de fotografia Paulo Vainer mostra o casal na pista de dança, o grupo de amigos bebendo no balcão do bar. Ibrahim, o namorado da Pantera, está na boa, rindo, curtindo. Doca-Gabriel Braga Nunes tem o rosto fechado, duro, uma expressão de desgosto, raiva – ciúme.
Depois que Doca abandona a família, sai de casa para viver com Ângela, e ela compra do casal de amigos Moreau e Tóia uma casa na praia à época quase deserta, há outra sequência interessante, boa sacada do roteirista Duda de Almeida e do diretor Hugo Prata. Um pedreiro está na casa, cuidando de um problema na sala, talvez uma infiltração de água. Ângela sai do quarto e atravessa a sala com uma blusa e a calcinha de biquíni, as coxas à mostra. Doca tem uma daquelas reações machistas de ciúme absoluto, e solta algo tipo “Pára de andar pelada que tem um sujeito na casa”.
Doca Street matou Ângela Diniz no dia 30 de dezembro de 1976 com três tiros no rosto e depois um na nuca. Eu não lembrava disso. Um tiro na nuca, depois que a mulher que o sujeito dizia amar já estava caída no chão.
É de uma crueldade absolutamente sem tamanho.
O filme faz um close-up da nuca de Ísis Valverde-Ângela Diniz caída no chão, o sangue saindo. É a penúltima tomada do filme.
(Na foto, Ísis Valverde e Gustavo Machado, que faz Ibrahim Sued.)
Após o assassinato, outro crime abominável
Depois que vimos Angela, me lembrei de “The Lonesome Death of Hattie Carroll”, uma canção do jovem Bob Dylan em seu terceiro disco, de 1964. Ele estava então com apenas 23 anos, e, como Joan Baez diria numa música dela, compunha canções baseadas em fatos que lia no New York Times. “The Lonesome Death” dura pouco menos de seis minutos e tem uns 50 versos, longos, dispostos em quatro estrofes, e descreve – com respeito aos fatos, conforme registra a Wikipedia – o assassinato de uma cozinheira negra de um bar, Hattie Carroll, de 51 anos, por um rapaz branco e rico de 24, William Devereux Zantzinger, no interior de Maryland.
Ao final de cada uma das três primeiras estrofes, ele diz para o ouvinte: “Tire o lenço de sua face, agora não é o momento para as suas lágrimas”.
Na quarta e última estrofe, ele fala do julgamento do assassino – condenado a apenas seis meses de prisão. E então diz: “Ah, você que filosofa sobre a desgraça e critica todos os medos, enterre o lenço no seu rosto, porque agora é o momento para as suas lágrimas”.
“Raul Fernando do Amaral Street foi levado ao tribunal do júri e condenado a uma pena simbólica de dois anos de prisão”, informa ao final da narrativa o letreiro que, como é de praxe nos filmes sobre histórias reais, relata o que aconteceu depois dos eventos mostrados.
“Now is the time for your tears”.
E o letreiro prossegue: “Segundo seu advogado, ele matou por legítima defesa da honra. Movimentos feministas com o slogan ‘quem ama não mata’ fizeram protestos e muita pressão social. Um promotor de Justiça recorreu da decisão. Um novo julgamento condenou Raul por homicídio com pena de 15 anos de prisão em regime fechado. Somente em 2023, o STF proíbe por unanimidade uso do argumento de legítima defesa da honra por réus de feminicídio. Mas a estratégia de questionar a reputação de mulheres como justificativa para casos de abuso, assédio e violência, segue até hoje.”
O filme Angela é, todo ele, importante, e cada uma dessas informações dadas ao final da narrativa é importante, mas as duas primeiras frases, em especial, merecem toda atenção.
“Segundo seu advogado, ele matou por legítima defesa da honra.”
“Movimentos feministas com o slogan ‘quem ama não mata’ fizeram protestos e muita pressão social.”
Foi tudo tão absolutamente exagerado que mudou a História
O assassinato de Ângela Diniz foi tão cruel, tão absurdo, o julgamento de Doca Street conseguiu ser tão cruel e tão absurdo quanto o crime em si, foi tudo tão absolutamente exagerado, que o caso virou um marco na História do Brasil.
No julgamento, além de defender a esdrúxula, machista a não mais poder tese de “legítima defesa da honra”, o advogado Evandro Lins e Silva, então um dos maiores criminalistas do país, fez do assassino, o que disparou quatro vezes, a quarta vez na nuca da amante já inerte no chão, a vítima. Ah, ele estava “humilhado às últimas consequências. E fez da vítima a ré. Ah, a mulher era uma “Vênus lasciva”: “Senhores jurados, a mulher fatal encanta, seduz, domina…” “Às vezes, a reação violenta é a única saída.”
A sentença – como a dada ao branco rico que matou Hattie Carroll em Maryland – foi um soco no estômago de todas as pessoas decentes: dois anos, com direito a sursis. Como Doca Street já havia cumprido mais de um terço da pena, o réu saiu do tribunal pela porta da frente, aplaudido por parte da multidão que acompanhou as 21 horas de julgamento.
“Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil. No Pasquim, o cartunista Henfil cravou: “Estão quase conseguindo provar que Ângela matou Doca”.
Foi um exagero de machismo tudo aquilo que o poeta e o chargista denunciaram. Um exagero tão ofensivo, tão atroz, que acabou tendo o efeito inverso. O caso Ângela Diniz ajudou a mudar a forma com que a sociedade brasileira – e a Justiça – encaram os crimes contra as mulheres.
Não apenas ele, é claro. Eu diria que o assassinato da paulista Eliane de Grammont, com cinco tiros pelas costas, disparados pelo marido, o cantor Lindomar Castilho, ocorrido em 30 de março de 1981, ou seja, menos de cinco anos após o de Ângela Diniz, reforçou a revolta de boa parte da sociedade contra os crimes contra as mulheres – e ajudou a levar a uma mudança na forma de se encará-los.
“A atuação do movimento feminista foi fundamental para a condenação de Doca Street e, também, para uma mudança cultural sobre crime e castigo no âmbito das relações entre homens e mulheres”, diz Jacqueline Pitanguy, que foi amiga de Ângela Diniz e é coautora do livro Feminismo no Brasil: Memórias De Quem Fez Acontecer, lançado em 2022. “No primeiro julgamento, não só a Justiça condenou a vítima, como a própria imprensa retratou Ângela como uma mulher que merecia ter sido assassinada porque seu comportamento não se enquadrava nos padrões da mulher recatada e do lar, prevalentes na sociedade.”
Essas declarações da socióloga Jacqueline Pitanguy, assim como outras informações que citei logo acima, estão em uma ótima reportagem publicada pelo site BBC News Brasil em 16 de setembro de 2023, assinada por Andréw Barroso. A reportagem tem o título “’Quem ama não mata’: o feminicídio de 1976 que ajudou a mudar a Justiça brasileira”.
“Costumes medievais e desumanos do passado”
Em 2015, portanto 39 anos depois do assassinato de Ângela Diniz, 34 anos depois do assassinato de Eliane de Grammont, foi aprovada lei que instituiu a figura do feminicídio: os assassinatos de mulheres em contexto de violência doméstica passaram a ser considerados hediondos, com penas de até 30 anos de prisão.
A História anda. Às vezes parece que o passo é bem devagar, mas a verdade é que a História – exatamente como a Terra, que aliás é redonda – se move.
E há as coincidências, esse troço que Nietsche teria dito que não existem e outros dizem que é uma maneira de Deus se manter anônimo, não aparecer muito.
Angela foi lançado no dia 7 de setembro de 2023. Apenas um mês antes, no dia 1º de agosto de 2023, o caso Ângela Diniz havia sido citado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia durante sessão do Supremo Tribunal Federal que tratava da tese da “legítima defesa da honra”. Por unanimidade, a mais alta corte de Justiça do país decidiu naquele dia que é inconstitucional o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio, tanto na fase processual quanto pré-processual, bem como perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.
Em seu voto, a ministra Rosa Weber, então presidente do STF, afirmou: “Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina.” E mais:
“Atualmente, sob a égide da ordem constitucional de 1988, a sociedade brasileira comprometida com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o repúdio à violência e à todas as formas de discriminação, já não mais tolera que nenhuma pessoa seja privada do direito à vida.”
O que aconteceu depois daria outro filme
Estava no meio desse texto quando vi, numa passada pelo Tio Google, que a revista Veja publicou um texto – assinado por Amanda Capuano – com o título “Filme de Ângela Diniz envereda pelo pior caminho ao retratar feminicídio”. A linha fina abaixo do título – o olhinho, no jargão jornalístico – é “Filme escolhe focar narrativa na relação conturbada do casal, desperdiçando o contexto que fez do caso um dos assassinatos de maior repercussão do país”.
Todo mundo tem direito à sua opinião, é claro. A minha é exatamente a oposta à dessa moça.
Como eu havia escrito lá em cima, antes de ver essa crítica da Veja, o fato de os realizadores terem focado exatamente na relação entre Ângela e Doca me parece uma grande qualidade do filme.
Angela procura reconstituir como foi a relação que terminou com o crime violento, hediondo, três tiros no rosto e um na nuca.
Centra-se nisso, no caso em si. Não se preocupa em mostrar os fatos anteriores ou posteriores. Bem ao contrário: como já disse lá em cima, o filme nem cita a questão do outro homicídio acontecido junto da casa de Ângela em Belo Horizonte. (Para quem se interessar, esse caso é bem descrito no verbete sobre Ângela Diniz na Wikipédia.) Nem fala dos boatos de relação da moça com a alemã Gabriele Dyer.
É um filme para mostrar como foi o relacionamento entre o homem que viria a ser o assassino e a mulher que viria ser a vítima.
O que aconteceu depois da morte de Ângela não cabe no filme. Pode ser outro filme – e é um material excelente para outro filme. Mas não é para estar neste aqui.
Y punto, y basta.
Péra, não basta, não. Há um detalhinho interessante – e não sou de deixar passar detalhinhos interessantes.
Os realizadores resolveram grafar Angela, assim, sem o acento circunflexo necessário a todas as palavras proparoxítonas. Então respeitei a grafia quando me refiro ao título do filme; quando falo da pessoa, uso a grafia correta…
Anotação em outubro de 2023
Angela
De Hugo Prata, Brasil, 2023
Com Ísis Valverde (Ângela Diniz)
e Gabriel Braga Nunes (Raul Street),
Alice Carvalho (Lili, a empregada da casa da praia), Gustavo Machado (Ibrahim Sued), Bianca Bin (Tóia), Emílio Orciollo Netto (Moreau), Chris Couto (Maria Diniz), Carolina Manica (Adelita Scarpa, a mulher de Raul Street)
Roteiro Duda de Almeida
Pesquisa de roteiro Helena Dias
Fotografia Paulo Vainer
Música Otavio de Moraes
Montagem Tiago Feliciano
Desenho de produção Cassio Amarante
Figurinos Verônica Julian
Produção de elenco Deborah Carvalho e Fernanda Ranieri
Produção Daniel Caldeira, Hugo Prata, Fábio Zavala, Bravura Cinematográfica.
Cor, 104 min (1h44)
***
Sergio:
Seu comentário está incrível! Muito especial mesmo. Ele nos leva a compreender o filme em todos os seus detalhes.
Num curto espaço de tempo, você contou um filme, falou sobre as interpretações dos personagens, deu informações claras daquela época e sobre o julgamento . Citou os juizes Luis Roberto Barroso e Carmem Lúcia, que dirante a sessão do Supremo, que decidiu por unanimidade a inconstitucionalidade da tese da légitima defeza da honra.
Seu artigo é uma AULA