Sublime Devoção / Call Northside 777

Nota: ★★★☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 12/2022.)

A 20th Century Fox foi muito rápida. Apenas quatro anos após o jornal Chicago Daily Times ter iniciado uma campanha para mostrar que era inocente o homem condenado a 99 anos de prisão pelo assassinato de um policial, a história toda foi contada em filme dirigido por Henry Hathaway, com James Stewart no papel do repórter que escreveu as matérias.

Call Northside 777, no Brasil Sublime Devoção, foi lançado nos Estados Unidos em março de 1948. As primeiras reportagens publicadas no Chicago Daily Times sobre o homem que havia sido condenado em 1933 foram publicadas em 1944.

O título brasileiro saiu das cabeças criativas do povo das distribuidoras, que parecia adorar o adjetivo “sublime”. Houve um Sublime Obsessão em 1935, um Sublime Alvorada em 1942, e depois deste Sublime Devoção viriam Sublime Inspiração (1949), mais um Sublime Obsessão (1954), Sublime Tentação (1956), Amor, Sublime Amor (1961), Sublime Loucura (1966), Sublime Renúncia (1971)…

O título original, Call Northside 777, vem de um pequeno anúncio classificado publicado em um jornal de Chicago em 1944, que dizia o seguinte:

“Recompensa de $5000. Pelos assassinos do policial Bundy em 9 dez 1932. Ligue Northside 777. Peça por Tillie Wiecek 12-7 p.m.”

No filme, o editor do Chicago Daily News, Brian Kelly, atento, observador, bom faro jornalístico, presta atenção àquele anúncio. Acha que ali tem notícia.

O editor Brian Kelly é o papel de Lee J. Cobb, aquele ótimo ator de 101 títulos na filmografia e dúzias e dúzias de papéis de homens de caráter precário ou simplesmente sem caráter. Este aqui é um dos raros papéis de gente boa que os estúdios deram para Lee J. Cobb ao longo de sua carreira.

O editor chama o repórter P.J. McNeal, passa para ele a página de jornal com o anúncio e diz para ele ir atrás da história.

E é interessantíssimo: a princípio, P.J. McNeal não parece uma pessoa muito simpática, boa gente. Bem ao contrário: no começo, parece preguiçoso, até meio lerdo de raciocínio. Diferente do tipo de personagens que sempre cabiam bem em James Stewart, aquela figura sempre adorável, que ficava bem em papéis de homens honrados, corretos, de grande coragem e grande coração – ou então deliciosamente ingênuos.

Já era um grande astro. Até 1948, ano deste Call Northside 777,  havia feito, entre muitos outros, estas pérolas: A Mulher Faz o Homem (1939), A Loja da Esquina (1940), Núpcias de Escândalo (1940), A Felicidade Não se Compra (1946).

Mas é só a princípio que P.J. McNeal não parece boa gente. Logo ele se interessa pelo caso que a mãe do preso expõe – e passa a trabalhar duro para investigar toda a história,

No começo, um tom de documentário, de cinejornal

O filme começa com um tom de documentário, dos cinejornais que costumavam ser exibidos nas salas de cinema antes do início do programa principal. Ao final dos créditos iniciais, rápidos, como eram sempre na época, há o aviso: “Esta é uma história verdadeira”. E um outro: “Este filme foi fotografado no Estado de Illinois, usando, sempre que possível, os locais de fato associados à história”.

E um narrador (Truman Bradley), com a voz em off, vai nos passando informações, enquanto vemos imagens da cidade de Chicago, uma das três maiores metrópoles dos Estados Unidos naquela época e ainda hoje, após Nova York e Los Angeles. O texto é um tanto empolado, para parecer importante, grandioso – exatamente como nos cinejornais:

– “No ano de 1871, o Grande Incêndio quase destruiu Chicago. Mas, das cinzas dessa catástrofe, surgiu uma nova Chicago. Uma cidade de tijolos e coragem, concreto e valentia, com uma curta história de violência correndo no pulso. Essa história está documentada (e neste momento vemos os prédios de alguns grandes jornais, seus nomes gravados no concreto ou em placas), e os registros foram feitos pelos jornalistas, que fizeram a fama da imprensa de Chicago.”

Vemos a data em um jornal: “Chicago, sexta-feira, 8 de janeiro de 1932”, enquanto o narrador prossegue:

– “Nenhuma época na história de Chicago foi tão violenta quanto a da Lei Seca. O surgimento e a queda de impérios de bebida ilegal foram escritos com sangue e tiros. Em 1932, houve 365 homicídios em Chicago. Um para cada dia do ano. Oito policiais foram mortos a tiro no cumprimento do dever. Um dos homicídios mais brutais ocorreu em 9 de dezembro de 1932, na Avenida South Ashland, na loja de uma senhora chamada Wanda Skutnik. A loja ficava no bairro polonês e servia de fachada para um bar ilegal (em inglês, speakeasy – e havia speakeasies aos milhares, às centenas de milhares, nos Estados Unidos, durante os anos em que durou a Prohibition, 1920-1933).”

E aqui começa a ação.

Vemos Wanda Skutnik (o papel de Betty Garde) em sua loja – atrás da qual ficava o bar. Chega um policial que fazia a ronda na região, e, pelo jeito, era freguês antigo: – “Wanda, você está vendo um homem que está ficando resfriado”. Ela manda o freguês – o policial John W. Bundy, interpretado por Eddie Dunn – sentar e diz que vai providenciar algo para afastar o resfriado.

Pouco depois, entram dois homens, de surpresa – e executam Bundy a tiros.

Um belo roteiro, um inicio ágil, enxuto

Quatro profissionais trabalharam no roteiro de Call Northside 777. Leonard Hoffman e Quentin Reynolds fizeram na adaptação da série de reportagens assinadas por James P. McGuire, na construção de uma história, um enredo, a partir dos fatos apresentados no jornal. E depois Jerome Cay e Jay Dratler escreveram o roteiro propriamente dito.

Fizeram um belo trabalho. Todo esse início do filme é extremamente ágil, enxuto, rápido. Apresenta celeremente os fatos básicos, de tal forma a laçar o espectador, prender sua atenção, deixá-lo curioso para saber o desenrolar dos fatos.

O filme leva pouquíssimo tempo para mostrar que dois amigos ali daquele bairro da colônia polonesa de Chicago foram presos e interrogados pela polícia; tinham alguma passagem pela polícia, por desvios mínimos, mas que os tornavam suspeitos. Porque caíram em pequenas contradições, foram formalmente acusados. Chamavam-se Frank Wiecek e Tomek Zaleska (os papéis de, respectivamente, Richard Conte e George Tyne, na foto acima).

No julgamento, Wanda Skutnik os identificou como os homens que haviam entrado na sua loja e executado o policial Bundy.

Foram condenados a 99 anos de prisão, em novembro de 1933 – e tudo isso é mostrado, com a ajuda do narrador, antes que o filme chegue a 10 de seus 111 minutos. Quando estamos com 9 minutos e meio de projeção, o narrador nos diz: – “O caso ficou esquecido por 11 anos, até o dia 10 de outubro de 1944, quando um pequeno anúncio apareceu nos classificados…”

A câmara mostra em close-up o anúncio.

O editor Brian Kelly-Lee J. Cobb chama o repórter J.P. McNeal-James Stewart.

Que beleza de roteiro. Em dez minutos, a base da história foi apresentada, o espectador já sabe dos fatos fundamentais, e então fica sabendo que está diante de um caso de erro policial e judiciário que a imprensa vai lutar para consertar.

Temas que são muito caros ao cinema americano

Erros judiciários são um tema bastante caro ao cinema em todo o mundo. Em especial no cinema dos Estados Unidos, aquele país em que a pena de morte até hoje está em vigor em vários dos 51 Estados – e, portanto, os erros judiciários podem levar o Estado a assassinar, a sangue frio, pessoas que são inteiramente inocentes.

A sangue frio. In cold blood. Truman Capote escolheu esse título para o extraordinário livro em que reconstituiu, quase milimetricamente, dois crimes – o assassinato de uma família em uma fazenda do Kansas por dois bandidos, e, depois, o assassinato dos dois pelo Estado.

Quando eu era bem garoto, antes ainda da adolescência, ouvi muito meu irmão Arnaldo falar de Caryl Chessman, o sujeito que foi preso na Califórnia nos anos 1950 e acusado de ser o Bandido da Luz Vermelha, autor de diversos crimes; na cadeia, escreveu três livros autobiográficos, em que negava a autoria dos crimes – 2455 – Cela da Morte, A Lei Quer Que Eu Morra e A Face Cruel da Justiça. Peguei agora o nome dos livros na Wikipedia e – incrível, absolutamente incrível! –, o título A Lei Quer Que Eu Morra tocou um sininho na minha cabeça; lembro do Arnaldo falando desse livro.

Chessman foi assassinado a sangue frio pelo Estado da Califórnia em 1960 em uma câmara de gás. Pode ter cometido aqueles crimes – ou não. Que o Estado da Califórnia o assassinou a sangue frio, disso não há qualquer dúvida. (A pena de morte ainda é legal na Califórnia, mas há vários anos nenhum preso tem sido executado lá; em 2019, o governador do Estado suspendeu na prática as penas de morte que haviam sido determinadas nos anos anteriores pela Justiça.)

A condenação de um inocente à morte, obviamente, é o pior erro judiciário que pode haver, é o paroxismo absoluto do erro. Mas manter na prisão pessoas inocentes é um crime bastante comum – e o cinema americano fala muito dele. Alfred Hitchcock fez uma obra-prima sobre o tema: seu O Homem Errado, com Henry Fonda, é uma beleza – seguramente o filme mais sério, mais pesado dos seus 53 longa-metragens. Interessante: The Wrong Man é de 1957, quando Caryl Chessman estava no corredor da morte.

Jornalista que investiga erro, jornal que denuncia erro – este é outro tema frequente do cinema americano. De crime cometido com o conhecimento e o aval do presidente da República até crime cometido por padres, como Todos os Homens do Presidente (1976) e Spotlight: Segredos Revelados (2015).

Este Call Northside 777 é bem menos conhecido e reverenciado que aqueles dois, mas pertence a essas duas nobres estirpes do cinema americano: os filmes que denunciam erros judiciários e os filmes que elogiam os jornalistas, os jornais que denunciam todo tipo de erro.

Uma sequência que antecipa Blow-up

Henry Hathaway (1898-1985) não é tão reverenciado – para usar de novo a palavra – quanto vários de seus contemporâneos, mas tem uma carreira sólida e diversos bons filmes entre os 67 que dirigiu de 1930 a 1974, nos mais diferentes gêneros, do western (Jardim do Pecado, 1954, Os Filhos de Katie Elder, 1965, Bravura Indômita.1969) ao policial (Envolto nas Sombras, 1946, Torrente de Paixão, 1953), passando por dramas românticos (Meu Coração tem Dois Amores, 1959), espionagem (Missão Perigosa em Trieste, 1952),  pela pura aventura (O Príncipe Valente, 1954).

Este Call Northside 777 foi pioneiro, no cinema de Hollywood, no uso de locações reais, a céu aberto, fora dos estúdios. Tinha toda razão em chamar a atenção do respeitável público para o fato de que foi “fotografado no Estado de Illinois, usando, sempre que possível, os locais de fato associados à história”. O IMDb registra: “Este foi o primeiro longa-metragem produzido por Hollywood a ser rodado inteiramente em Chicago. Vários marcos da cidade, como o Chicago Merchandise Mart, a Holy Trinity Polish Mission e o edifício Wrigley na North Michigan Avenue podem ser vistos ao longo do filme.”

Há um detalhe fascinante: quem aplica o detector de mentiras, o polígrafo, no preso Frank Wiecek interpretado por Richard Conte, é um dos inventores do aparelho, Leonarde Keeler (1903-1949, na foto abaixo). O diretor Hathaway, que não era bobo nem nada, filmou com todos os detalhes a sequência em que Keeler vai ao presídio estadual aplicar o teste em Wiecek, observados pelo repórter McNeal e pelo próprio editor Kelly, que arranjou uma desculpa para estar presente no momento. Afinal de contas, é como diz o título do livro de um tal Ken Adler, publicado em 2007: The Lie Detectors: The History of an American Obsession.

Mas o detalhe que achei mais absolutamente sensacional, fantástico, desse filme hoje pouco conhecido da era de ouro Hollywood é o fato de que, no seu clímax, ele antecipa muito do que a gente veria, embevecido, mesmerizado, em Blow-up, a obra-prima que Michelangelo Antonioni fez na Inglaterra em 1966, inspirado em um conto de Julio Cortázar.

Blow-up, é bom lembrar, significa ampliação de fotografia. Aquilo que o protagonista do filme do mestre Antonioni, o aclamado fotógrafo de moda Thomas, fica fazendo no belo laboratório de sua não menos bela casa, para tentar descobrir se é mesmo um cadáver aquilo que ele não havia visto no parque, mas sua máquina fotográfica vira.

O repórter McNeal tem, bem para o final da narrativa, uma bela sacada – se conseguisse ampliar ao máximo o detalhe de uma fotografia, ela seria uma prova irrefutável.

Toda a sequência envolvendo a ação de ampliar, de fazer o blow-up da fotografia, é extraordinária.

Claro que para velhos jornalistas que conviveram com as máquinas de telefoto aquilo é especialmente sensacional. Se bem que, na verdade, creio que as máquinas mostradas no filme são radiofoto – um processo anterior ao da telefoto.

Para jornalistas, há muita coisa fascinante no filme. O processo de impressão, os velhíssimos linotipos…

Pelos 11 anos preso, o inocente recebeu US$ 24 mil

Falta registrar algumas informações básicas sobre a história real que o filme conta. Tiro os dados do IMDb.

Os nomes dos personagens foram alterados; como já foi dito, o filme foi lançado pouco tempo após os fatos que ele retrata, e o uso dos nomes reais poderia dar problemas legais ao estúdio.

O nome verdadeiro do homem que foi preso e condenado como assassino do policial, que no filme é Frank Wiecek, era Joseph Majczek. Depois de ter sido libertado da prisão em 1945, ele trabalhou como agente de seguros. Pelos 11 anos que passou na prisão por um crime que não cometeu, recebeu como indenizado do Estado de Illinois a quantia de US$ 24 mil. Ele e sua então ex-mulher se casaram de novo. Morreu em 1983.

O outro homem preso injustamente, Tomek Zaleska no filme, era na vida real Theodore Marcinkiewicz, e foi solto apenas em 1950. Pelos 17 anos de prisão, recebeu do Estado de Illinois US$ 35 mil.

Meu Deus do céu e também da Terra!

O Chicago Daily Times fundiu-se com o Chicago Sun exatamente em 1948, o ano em que o filme foi lançado, e passou a se chamar Chicago Sun-Times. Neste mês de dezembro de 2022 em que vi o filme, o Chicago Sun-Times continuava existindo.

Por seu trabalho de mostrar ao mundo o erro judiciário, os jornalistas James P. McGuire e Karin Walsh receberam o prestigiado prêmio Heywood Broun pela excelência do jornalismo investigativo nas “reportagens que ajudaram a libertar um homem erradamente condenado por assassinato”.

Nem tudo no mundo é o horror do horror.

Anotação em dezembro de 2022

Sublime Devoção/Call Northside 777

De Henry Hathaway, EUA, 1948.

Com James Stewart (J.P. McNeal, o repórter)

e Richard Conte (Frank Wiecek, o acusado), Lee J. Cobb (Brian Kelly, o editor), Helen Walker (Laura McNeal, a mulher do repórter), Betty Garde (Wanda Skutnik, a testemunha), Kasia Orzazewski (Tillie Wiecek, a mãe do acusado), Joanna De Bergh (Helen Wiecek-Rayska, a mulher do acussado), Howard Smith (Palmer), Moroni Olsen (o presidente da junta de liberdade condicional), John McIntire (Sam Faxon), Paul Harvey (capitão de polícia Martin Burns), George Tyne (Tomek Zaleska, o outro acusado), Richard Bishop (o diretor do presídio), Otto Waldis (Boris, o amigo de Wanda), Michael Chapin (Frank, Jr., o filho do acusado), E.G. Marshall (Rayska, o segundo marido de Helen), Truman Bradley (o narrador), John Bleifer (Jan Gruska), Addison Richards (John Albertson), Richard Rober (Larson), Eddie Dunn (policial John W. Bundy), Eddie Dunn (soldado de patrulha), Percy Helton (funcionário dos Correios), Charles Lane (promotor), Norman McKay (detetive), Walter Greaza (detetive)

Roteiro Jerome Cady e Jay Dratler

Adaptação de Leonard Hoffman e Quentin Reynolds

Baseado em artigos de James P. McGuire

Fotografia Joseph MacDonald

Música Alfred Newman

Montagem J. Watson Webb

Direção de arte Lyle Wheeler, Mark-Lee Kirk

Figurinos Kay Nelson

Produção Otto Lang, 20th Century Fox.

P&B, 111 min (1h51)

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