A Felicidade Não Se Compra / It’s a Wonderful Life


Nota: ★★★★

Resenha na coluna O Melhor do DVD, no site estadao.com.br, em 2000: Com pouco mais de dez minutos de filme, a imagem é congelada. O espectador passa a ver uma foto do jovem James Stewart, os braços abertos em um gesto largo, o rosto surpreendido numa fração de segundo em que faz uma careta. A voz em off de um personagem pergunta por que parou, e outra voz em off responde: “Quero que você preste atenção neste rosto”. E o espectador também, assim como o personagem da voz em off, é obrigado a prestar atenção ao rosto do personagem central do filme, que está sendo introduzido neste momento.

É um prazer maravilhoso ver e rever (nada como o DVD para ver e rever) esta sacada de narrativa cinematográfica gostosa, bem-humorada, tão simples quanto brilhante, bela jogada moderna, neste filme de mais de meio século. E note-se que Frank Capra não era normalmente dado a experimentalismos formais, a invencionices, futurismos. Ao contrário. Em geral, sua narrativa é comportada, correta, clássica.

Mas, quando fez A Felicidade Não Se Compra, em 1946, logo após o final da Segunda Guerra, o genial imigrante italiano –  que, durante os anos negros da Grande Depressão, havia destilado o veneno do otimismo e da solidariedade para centenas de milhares de pessoas desencorajadas – devia estar num momento de especial prazer. E até se permitiu essa brincadeira formal.

Antes mesmo de congelar a imagem do jovem James Stewart, Capra já havia surpreendido o espectador colocando como personagens – aquelas das vozes em off – nada menos que Deus, mais José, o pai, e um anjo. Eles estão no céu conversando sobre George Bailey, um sujeito por quem diversas pessoas lá na Terra estavam rezando. É para Clarence (foto acima), o anjo chamado a ajudar o pobre George Bailey, que José mostra cenas da vida do humano, até congelar a imagem, para permitir que Clarence possa ver o rosto com atenção.

E, já nestes primeiros dez, 12 minutos de filme, Capra repassa alguns dos pontos de seu evangelho de believer, o diretor de cinema mais sonhadoramente crente na espécie humana que já existiu. Quando Deus e José explicam a Clarence que sua missão é ajudar aquele George Bailey, Clarence pergunta:

– Ah, ele está doente?

E José responde, numa brilhante expressão da cartilha de Capra:

– Pior. Está desencorajado.

Humanista renitente, persistente, incansável, Capra fez seu anjo – quatro décadas antes de Wim Wenders deslumbrar os cinéfilos do mundo com os seus, pairando sobre o céu da Berlim ainda dividida em duas, em Asas do Desejo – à imagem e semelhança dos homens. Clarence, o anjo de Capra, não é a perfeição; muito ao contrário. Tem defeitos, mas é bom e esforçado. Mais que tudo, o anjo de Capra precisa da ajuda do homem a quem ele vai ajudar. O anjo de Capra precisa da ajuda do homem tanto quanto o homem precisa da ajuda dele – e esta é a noção mais intrinsecamente capriana da história. Segundo o evangelho de Frank Capra, em que estar desencorajado, desanimado, desesperançado, é pior do que estar doente, precisar de ajuda é um dom, uma dádiva. É prova de que se é humano.

Flashforward para o que poderia ter sido

Capra e os roteiristas Frances Goodrich e Albert Hackett tiveram uma idéia genial, brilhante, na narrativa de A Felicidade Não se Compra, que muito mais tarde seria usada outras vezes no cinema: a de mostrar uma realidade atual ou futura que poderia ter existido se não fosse por algo que aconteceu no passado. É uma espécie de flashforward, para diante, em vez de para trás, para um futuro alternativo, desviante, uma realidade paralela que teria sido possível se as circunstâncias tivessem sido outras no passado. Se se tivesse optado por entrar à esquerda numa bifurcação, em vez de pegar a direita – como no poema de Robert Frost, a estrada que se abre em duas, e escolher uma delas fará toda a diferença.

O genial Sergio Leone usou esse recurso malucamente fascinante na seqüência final de Era Uma Vez na América, de 1984 – um brilho absoluto. Mas, ali, é apenas uma rápida seqüência, o acorde final de uma sinfonia trágica.

Mais recentemente, o inglês Peter Howitt usou o recurso como a base de seu filme De Caso com o Acaso/Sliding Doors, de 1997. Ali, a porta de um trem de metrô que se fechava (mas poderia não ter se fechado; ou vice-versa) determinava o que aconteceria a partir daquele momento na vida de uma jovem na Londres de hoje, interpretada por uma Gwyneth Paltrow antes do Oscar por Shakespeare Apaixonado. Assim como foi a base do moderníssimo Corra, Lola, Corra, do alemão Tom Tykwer: e se tivesse dado tempo?

Foi num filme menor, embora bem gostosinho, que o recurso usado em 1946 por Capra e seus roteiristas foi mais seguido ao pé da letra: Robert Zemeckis usou exatamente a mesma idéia em De Volta para o Futuro Parte II, de 1989, mostrando como teria ficado a cidade do personagem central caso o almanaque com os resultados esportivos do futuro tivesse sido levado para o passado; teria sido o horror dos horrores, mostra o filme, brincando com a história, rendendo uma homenagem a Capra.

Capra não está brincando, no entanto, quando mostra o cenário desesperador, apavorante, que o herói-anti-herói George Bailey enfrenta à beira da loucura, depois da beira do suicídio, na sua cidadezinha transformada no inferno. É uma das melhores interpretações de James Stewart em toda a sua carreira – e olhe que ele foi dirigido por Alfred Hitchcock (em três filmes), Otto Preminger, Ernst Lubitsch, George Cukor, John Ford, Anthony Mann, muitos dos melhores diretores da história.

Um filme cheio de histórias

 Eis aí alguns itens, histórias, casos interessantes que poderiam estar numa apresentação especial do DVD, caso o DVD tivesse apresentações especiais:

* A Felicidade Não Se Compra era o filme predileto tanto de Capra quanto de James Stewart. Em sua autobiografia, Capra escreveu: “Acho que foi o maior filme que eu fiz. Mais ainda, eu achava que era o maior filme que qualquer um fez. Ele não foi feito para os ah-tão-entendiados críticos ou os ah-tão-entendidos literatos. Era o meu tipo de filme para o meu tipo de gente”.

* O filme foi produzido por uma companhia independente recém-criada, a Liberty Films, cujos donos, o próprio Capra, William Wyler, George Stevens e Sam Briskin, pretendiam ter liberdade e independência totais sobre suas próprias obras, ao contrário do que acontecia nos filmes feitos para os grandes estúdios.

* O título da história original era “The Greatest Gift”, “O Maior Presente”. A expressão é citada nos diálogos iniciais travados no céu, quando se diz que George Bailey está querendo se desfazer da vida. A história foi escrita por Philip Van Doren Stern na forma de um conto, e enviada para os amigos do autor como presente de Natal. Mais tarde o conto foi publicado; a RKO Radio Pictures comprou os direitos, com a intenção de trabalhar na história e transformá-la em um filme a ser interpretado pelo então grande galã da empresa, Cary Grant. Capra comprou os direitos da RKO para a sua Liberty Films, e trabalhou no roteiro com o casal Frances Goodrich e Albert Hackett, autor de dezenas de roteiros de policiais, musicais, comédias, dramas, o escambau, e quatro vezes indicado para o Oscar. Jo Swerling, também roteirista de duas dúzias de filmes entre 1930 e 1961, uma indicação para o Oscar, escreveu algumas cenas adicionais.

* Quatro dos atores principais do filme foram emprestados de outros estúdios – Donna Reed, Lionel Barrymore e Gloria Grahame eram contratados da Metro e Thomas Mitchell, da 29th Century Fox. Donna Reed, que faz a angelical, perfeita Mary, que desde criancinha sabia que seria a sra. George Bailey, era um rostinho lindo; rainha de beleza no ginásio e na universidade, já com 20 filmes no currículo, teve com este filme sua primeira oportunidade como protagonista. Sete anos depois, no papel de uma prostituta, receberia o Oscar de coadjuvante por A Um Passo da Eternidade.

* Ao contrário de tantos filmes anteriores de Capra, gigantescos sucessos de bilheteria (foi graças ao dinheiro ganho com seus filmes dos anos 20 e 30 que a Columbia, então um estúdio menor, se tornou um dos principais de Hollywood), A Felicidade Não Se Compra foi um total fracasso nos cinemas, assim que estreou. Nos primeiros meses de exibição, nos Estados Unidos, deu um prejuízo de pouco mais de meio milhão de dólares, uma fortuna imensa para a época.

* A Liberty Films tinha um contrato de distribuição com a RKO para diversos filmes. Com o fracasso nas bilheterias, A Felicidade Não se Compra acabou sendo a única co-produção das duas empresas.

* A Liberty Films acabou, o filme não teve seus direitos autorais comprados por nenhum estúdio, e acabou deixando de ter copyright; virou domínio público; qualquer um poderia fazer qualquer coisa com ele. (E aqui vale um parênteses. Por mais estranha que possa parecer essa situação, ela é extremamente comum; vários filmes de Orson Welles, praticamente todos os de Charles Chaplin da fase muda e da fase inglesa de Alfred Hitchcock, só para dar alguns exemplos, caíram em limbo semelhante, e é exatamente isso que explica o fato de que sejam lançados no Brasil não pelas majors, as grandes companhias, mas por pequenas produtoras e distribuidoras; é desse tipo de filme sem copyright a imensa maioria dos lançamentos em fascículos vendidos em bancas de jornais.)

* Como qualquer um poderia fazer o que quisesse com o filme, ele foi lançado em vídeo em versão colorizada, nos anos 80 – um sacrilégio tão grande quanto pegar os afrescos de Michelangelo na Capela Sistina e transformá-los em preto e branco. Esse absurdo fez com que um James Stewart já velho, lenda viva não do cinema, mas da história americana, fosse ao Congresso – muitos anos depois de sua estada lá como o inocente e idealista Jefferson Smith, de A Mulher faz o Homem, sua parceria com Capra de 1939 – depor diante de um comitê de regulamentação de direitos autorais, implorar para que fosse impedida a prática de colorizar filmes seu a autorização de seus autores. Já velho e doente, Capra também fez apelos desesperados no mesmo sentido.

* Como toda história tem um lado bom e outro ruim, o fato de o filme ter virado de domínio público também teve um aspecto positivo: por ser grátis, virou um campeão de reprises nas TVs americanas e mundo afora – e, graças a isso, passou a ser reconhecido e amado por novas gerações. Nos Estados Unidos, virou tradição de Natal. É hoje um dos filmes que mais amados da história, como atesta a votação no site do American Film Institute (americanfilminstitute.com.br): em 11º na lista oficial dos 100 melhores filmes americanos, é o sexto colocado no voto popular.

* O filme foi relançado como laserdisc nos Estados Unidos em edição de colecionador, preservando o maravilhoso preto e branco original, e agora no formato DVD. É excepcional a qualidade de imagem e som na edição brasileira, pela pequena porém de ótimo gosto Versátil.

A Felicidade Não Se Compra/It’s a Wonderful Life
Produção EUA, 1946.
Diretor Frank Capra
Roteiro e argumento Roteiro de Frances Goodrich, Albert Hackett e Frank Capra; diálogos adicionais or Jo Swerling. História de Philip Van Doren Stern.
Elenco James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore, Thomas Mitchell, Henry Travers, Beulah Bondi, Ward Bond, Gloria Grahame.
Cor, duração. P&B, 132 min.
Ação Bedford Falls, uma cidade imaginária, ou seja, qualquer cidade pequena dos Estados Unidos. Do final dos anos 30 a meados dos 40.
Prêmios Teve cinco indicações ao Oscar – filme, diretor, ator (James Stewart), montagem e som. Não ganhou nada: a Academia estava cansada de dar estatuetas aos filmes de Capra; além disso, foi o ano de Os Melhores Anos de Nossas Vidas, que levou sete.
Nas listas 11º lugar na lista oficial dos 100 melhores filmes americanos do American Film Institute; 6º lugar na lista dos favoritos do público.

A Felicidade Não se Compra/It’s a Wonderful Life

De Frank Capra, EUA, 1946.

Com James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore, Thomas Mitchell,

Roteiro Frances Goodrich, Albert Hackett e Frank Capra

Baseado na história The Greatest Gift, de Philip Van Doren Stern

Música Dimitri Tiomkin

P&B, 130 min.

Título em Portugal: Do Céu Caiu uma Estrela

28 Comentários para “A Felicidade Não Se Compra / It’s a Wonderful Life”

  1. Sem dúvida, um dos melhores filmes de todos os tempos. História encantadora e que nos faz crer que há uma luz no fim do túnel.
    Quem não viu, veja, pois vale cada minuto do filme.
    James Stewart dá um show de interpretação, por mais clichê e piegas que possa soar uma frase como essa.

  2. Meu Deus!!!! Isto não é um filme ; é uma verdadeira obra de arte !! Quería poder ver mais filmes de Capra.Fico me perguntando como pôde ter sido um fracasso nos cinemas.
    Aquele começo com Deus,José e o Anjo conversando no céu, foi muito bonito, muito bem bolado. Gostei mais ainda no filme, a partir do momento em que o anjo vem à Terra e, depois que George diz para o anjo que não quería ter nascido e, aquela cidade e a vida dele (como dizes, Sergio) vira um inferno.
    A partir desse momento, James Stewart merecía
    ganhar o Oscar. Gostei tbm da Donna Reed (muito bonita) passou a imagem da esposa amiga, companheira e cúmplice.
    É o primeiro filme que vejo de Capra mas, já tive o prazer de ver outros com o James.
    Assisti “online”, não fôsse assim, não tería conseguido.
    Aquele final emocionou.Repito,uma verdadeira
    obra de arte, este “A felicidade não se compra”.

  3. Amável. Sensível. Este filme é o propósito da arte. Valorizar o homem. O invisível. A virtude. Depois de vê-lo deu vontade de abraçar minha mãe, minha esposa, meus amigos. Entendi um pouco mais, o por que do mundo atual ser tão violento. A arte morreu. Hoje, o que é tido como arte não é arte, é violência. Desrespeito.

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