Três Homens e uma Noite Fria / Kolme viisasta miestä

Nota: ★★½☆

Anotação em 2011: Este aqui é um filme muito, mais muito estranho, muito doidão. Não tenho a menor idéia do que o diretor Mika Kaurismäki – esse finlandês apaixonado pelo Brasil – quis dizer com aquilo. E, no entanto, é tão bem feito, com tanto talento, com interpretações tão maravilhosas, que não é um filme ruim de se ver.

Para deixar mais claro ainda o que quero dizer: faz tempo que já não me obrigo a ver filmes até o fim. Já estou velho demais para agüentar chatice extrema, já chutei muito pau de barraca; então, se é chato demais, casco fora, sem arrependimento. Mesmo se são filmes incensados pela crítica, como Mother, do coreano Joon-ho Bong, só para dar um exemplo, que abandonei depois de uns dez minutos torturantes.

Com Três Homens e uma Noite Fria, não deu vontade de parar de ver. É estranho, doido e, para mim, incompreensível – mas não dá vontade de parar de ver.

Kaurismäki apresenta ao espectador os três homens do título logo nos primeiros minutos do filme, tomando o cuidado de botar um letreiro na tela com o nome de cada um deles. Primeiro aparece Matti (Pertti Sveholm). É véspera de Natal, Matti está bebendo algumas e atazanando sua jovem e bela mulher (imagino que seja Taina, interpretada por Elena Spirina), uma russa. Matti a xinga, humilha, dá bronca nela, pergunta, aparentemente pela bilionésima vez, se o filho que ela carrega não é dele – e a pobre criatura vai agüentando em silêncio, até que a bolsa d’água arrebenta, e eles vão para o hospital. A moça está em meio ao trabalho de parto, e o pentelhaço do Matti continua questionando, querendo saber se o filho é de Erkki. Ela não suporta mais, diz que sim – mas o espectador jamais ficará sabendo se ela disse a verdade ou se, como a maioria dos torturados, apenas confessou o que o torturador queria ouvir.

E então o espectador é apresentado a Erkki (Kari Heiskanen). Ele se barbeia, veste uma fantasia de Papai Noel, vai até um apartamento para fazer a entrega de um presente para Justus, um garoto aí de uns sete, oito anos. Demora no apartamento mais tempo do que a mãe do garoto gostaria, faz mais gestos carinhosos para o garoto do que seria de se esperar de um Papai Noel com fins comerciais. A mãe o acompanha até o corredor do apartamento e dá uma bronca nele – Erkki é o pai do garoto Justus, e, por algum motivo que o espectador jamais ficará sabendo, teve que recorrer àquele expediente para ver o próprio filho.

E finalmente há Rauno (Timo Torikka), recém-chegado de Paris, que se instala num quarto de hotel e liga para o filho, Tero (Tommi Eronen), um jovem de 20 e tantos anos. Tero informa ao pai que a mãe está mal, no hospital. Rauno vai direto para o hospital; num corredor, Tero diz que a mãe está morta, que a culpa é do pai – e avança sobre ele. Funcionários do hospital têm que apartar a briga. Rauno vai até o quarto onde está o corpo da ex-mulher morta, observa-a durante algum tempo, põe ao lado do corpo um presentinho trazido de Paris, e sai.

          Três velhos conhecidos, nada sábios, e uma mulher desconhecida

Os três homens assim apresentados ao espectador, veremos então que eles se conhecem há muito tempo. Acabam se encontrando, três homens que não têm com quem passar a noite de Natal. Bebem algumas em um bar, o bar vai fechar às 18h, saem em busca de outro bar, encontram um karaokê, o dono avisa que o lugar está fechado, eles dão uma gorjeta para poder entrar – e entram. Estamos aí com uns 20 minutos de filme. Quase todo o resto da narrativa se dará dentro do karaokê, os três amigos conversando. Bem mais tarde surgirão lá também Tero, o filho de Rauno, e mais uma bela mulher, uma total desconhecida, Magdaleena (Irina Björklund), que beberá com eles até o amanhecer.

Demora muito para que a conversa dos três homens toque alguma coisa que tenha de fato a ver com a vida deles, seus sentimentos verdadeiros. Levam um tempo enorme falando banalidades, coisas externas a eles próprios, ou frases um tanto genéricas, ocas, vazias de significado real, de sentimento. Rauno só vai contar sobre a morte da ex-mulher e a briga com o filho depois de longo tempo. Matti só vai falar sobre seu ciúme desesperado e sua desconfiança de que o filho de sua mulher é de Erkki já quase no fim da narrativa.

E isso é fascinante, porque é o espelho límpido do que acontece entre homens, quando homens se encontram. Em geral, ou quase sempre, os homens, quando se encontram, falam de assuntos que não dizem respeito a suas emoções, às suas vidas pessoais. Falam de coisas externas, o futebol, a política, abobrinhas. Só mesmo depois de muita cachaça são capazes – quando são – de falar de si próprios, de suas dores, seus medos.

           A velha, velhíssima incapacidade masculina de abrir o coração

Ao longo do papo-furado enorme que precede o momento em que as verdades começarão a aflorar, tive a sensação de que o diretor Kaurismäki deixou seus experientes atores improvisarem, irem falando o que bem entendessem, dentro de alguns pontos básicos das características de cada um – Matti é policial, Erkki é fotógrafo, Rauno é ator, por exemplo. No IMDb, vejo indícios de que estava certo: os atores principais são creditados, no site enciclopédico, como co-autores dos diálogos, ao lado dos co-roteiristas Kaurismäki e Petri Karra

É um ponto, um gol de placa de Mika Kaurismäki fazer um retrato tão verdadeiro da incapacidade masculina de abrir o coração.

Mas é pouco para um filme de 105 minutos.

Verdade que os três atores são estupendos. Mas o espectador tem dificuldade (Mary e eu, pelo menos, tivemos) em compreender direito quem são aqueles personagens, por que eles agem da maneira com que agem, quais são suas motivações, quais são suas histórias de vida. Tudo é mostrado muito esparsamente, com elipses demais e clareza de menos.

          Tá bom – mas e daí? Ah, daí que é um samba carioco-finlandês

Ao fim e ao cabo, a gente se pergunta: tá, mas e daí?

Sei lá eu. Daí nada. Daí que é isso mesmo – uma noite de Natal na vida de três homens (e mais uma mulher que não tinha nada a ver com a história) cheios de problemas não resolvidos, cheios de dramas.

Talvez seja a maneira finlandesa de se fazer um conto de Natal. Os americanos costumam fazer contos de Natal com um sentimentalismo exacerbado; o cinema francês de vez em quando faz um conto de Natal que é o negror dos negrores. Este finlandês aqui resolveu fazer um conto de Natal sobre a grande angústia do ser humano sem falar claramente da grande angústia do ser humano, com um leve toque de humor louramente negro, uma grande brincadeira com a própria imagem arquetipal da angústia nórdica.

Ao fim e ao cabo, Mary pensou um pouquinho e concluiu que talvez a gente tenha sorte por ter nascido em país tropical, miserável, terceiro-mundo. Sofre-se demais, naquele país gelado onde todo mundo tem tudo de que precisa e muito mais – e os seres humanos são mesmo assim, se não tem problema, nóis inventa. Ou, para pôr numa frase mais engravatada, quando não falta o pão, a angústia existencial é maior.

Talvez por isso o diretor Mika Kaurisnäki goste tanto do Brasil.

Bem no início do filme, quando Rauno sai do hotel para ir até o hospital onde estão seu filho e sua ex-mulher, ele se assusta com o frio e exclama: – “Isso aqui é o Pólo Norte!”

Kauriskmäki alterna seu tempo entre a gélida Finlândia e este país tropical abençoado por Deus (e amaldiçoado por tantos, tantos males, tanta roubalheira, tanto embuste, tantos sarneys, lulas, tantos mensalões, tantos PACs, trens-balas, belos montes). Fez diversos filmes no Brasil e/ou sobre temas brasileiros, inclusive Moro no Brasil e Brasileirinho, um documentário sobre o choro.

Pode ser que o fato de estar vivendo desde o início dos anos 90 no Rio de Janeiro o tenha deixado mais alegre, mais solto, mais descompromissado. Não parece coisa de rígido finlandês o fato de ele ter deixado passar um erro grotesco de continuidade: num momento em Rauno levanta-se da mesa do karaokê para ir ao banheiro lavar o rosto, seu cachecol está nas costas da cadeira em que ele estava sentado. No banheiro, ele está sem o cachecol. Na tomada em que ele volta do banheiro para sentar-se de novo à mesa, está usando o cachecol!

Kauriskmäki ficou tropicalmente, tropicanamente largadão. E bem-humorado. Carioco-nordicamente bem-humorado.

Três Homens e uma Noite Fria/Kolme viisasta miestä

De Mika Kaurismäki, Finlândia, 2008

Com Kari Heiskanen (Erkki), Pertti Sveholm (Matti), Timo Torikka (Rauno), Irina Björklund (Magdaleena), Tommi Eronen (Tero), Elena Spirina (Taina), Pirkko Hämäläinen (Tiina)

Argumento e roteiro Mika Kaurismäki e Petri Karra

Diálogos Mika Kaurismäki, Petri Karra, Irina Björklund, Kari Heiskanen, Pertti Sveholm, Timo Torikka

Fotografia Rauno Ronkainen

Montagem Mika Kaurismäki

Produção Marianna Films e Yleisradio (YLE). DVD Imovision. Estreou em SP 19/11/2010.

Cor, 105 min

**1/2

Título em inglês: Three Wise Men

9 Comentários para “Três Homens e uma Noite Fria / Kolme viisasta miestä”

  1. Eu tinha me dito que não ia comentar este post, estou ficando muito espaçosa, não tenho intenção de ver o filme (talvez o documentário Brasileirinho se eu econtrasse já que adoro choro)e não entendo nada sobre a Finlândia..mas preciso dizer que adorei ler uma crítica sobre um filme que apresenta o brilhante: ” E daí? Sei lá eu.Daí nada.”

  2. Mas, Luciana, caríssima, o que eu poderia dizer, a não ser a verdade dos fatos, que é simplesmente que sei lá eu?
    E não é uma crítica de filme, é uma anotação sobre um filme feita não por um crítico de cinema, coisa que jamais fui, para o bem e para o mal, mas por um ser humano, desses que tem aí aos milhares, milhões, bilhões – na verdade, bilhões demais…
    (Bem, é verdade também que há milhares, milhões, talvez bilhões de críticos de cinema. Só a Folha de S. Paulo, por exemplo, tem uns 432.)
    Mas a verdade dos fatos é só esta: sei lá o que cara quis dizer, uai…
    Abração.
    Sérgio

  3. “Para deixar mais claro ainda o que quero dizer: faz tempo que já não me obrigo a ver filmes até o fim. Já estou velho demais para agüentar chatice extrema, já chutei muito pau de barraca; então, se é chato demais, casco fora, sem arrependimento”.
    As pessoas deveriam ser simples assim!!! Coisas boas que vem com a velhice!
    Abraço,
    Mônica/ ctba- PR

  4. Ah e a propósito, esse “E daí? Sei lá eu.Daí nada” é uma frase dita por um dos personagens durante o filme, filme que nem tem tantos diálogos assim mas que nos passam serem tão simples e verdadeiros, tão próximos de nós e de nossas tentativas de fugirmos de nossas emoções.
    + abraços,
    Mônica

  5. Você esqueceu de falar em sua resenha cinematográfica-política o seguinte:
    tantos males, tanta roubalheira, tanto embuste, tantos FHC’s, Aécios, Serras, Cachoeiras, uma classe média egoísta, alienada e estúpida, etc. Seria bastante relevante!

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