Por uma Mulher Má / The Man Who Cheated Himself

Nota: ★★½☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 4/2022.)

Por uma Mulher Má, policial com toques de noir, é uma produção modesta e obscura, pouco conhecida, de 1950. Mas o ponto de partida de sua trama é interessantíssimo, fascinante, uma beleza.

E, de quebra, a produção do filme envolve duas pessoas que têm trajetórias bem interessantes, curiosas: o produtor Jack Warner Jr. e a então jovem atriz Lisa Howard.

Antes de mais nada, gostaria de justificar os adjetivos modesta e obscura. Não tem grandes astros. Os atores principais são Lee J. Cobb, com aquela cara de mau que Deus lhe deu, ótimo coadjuvante em dezenas e dezenas de filmes mas raramente protagonista; John Dall, com cara de bem jovem, dois anos depois de fazer o mais frio e sanguinário dos dois estudantes assassinos de Festim Diabólico/Rope (1948), de Alfred Hitchcock; e Jane Wyatt, que a princípio, pela semelhança dos nomes, confundi com Jane Wyman.

O diretor não é nada conhecido. Chama-se Felix E. Feist (1910-1965), tem 75 filmes como diretor na filmografia, nenhum deles memorável, segundo mostra uma rápida olhada.

Obscuro, pouco conhecido: vários guias ignoram solenemente o filme. Ele não está no guia de Mick Martin & Marsha Potter, nem no Petit Larousse des Films, nem no Guide des Films de Jean Tulard. Não consta igualmente do livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, de A.C. Gomes de Mattos.

No Cinemania, que reúne os textos que Roger Ebert, Pauline Kael e Leonard Maltin, ele só é comentado por este último. Maltin deu a ele 2.5 estrelas em 4, e escreveu apenas o seguinte: “Bom elenco levanta esse filme de assassinato típico.”

O que é maluco, porque este é filme policial nada típico, com seu começo absolutamente surpreendente.

Na edição mais recente do guia de Maltin, a de 2015 (depois disso o guia não voltou a ser impresso), o filme já não consta; foi retirado para seguramente dar lugar a títulos mais novos.

Do guia de Steven H. Scheur o filme consta. Recebeu ali 2.5 estrelas em 4, e a seguinte avaliação: “Melodrama de crime apenas razoável; bom elenco é melhor que a história.”

Não concordo com essa opinião: como já falei, a história é bem interessante, com um começo fascinante mesmo.

Sequer o livro sobre o estúdio que distribuiu o filme, The Films of 20th Century Fox, dá muita importância a ele. Apenas registra uma sinopse – que aliás tem um erro.

Ué, mas então o filme é uma porcaria, e nem eu nem o eventual leitor deveríamos estar perdendo tempo com ele?

Não, não é isso, de jeito algum.

Uma prova de que o filme tem alguma qualidade está no site Rotten Tomatoes, que agrega e faz a média das opiniões de críticos e também do público. Ele tem 100% de aprovação dos críticos.

Outra prova é que, em 2018, 68 anos, portanto, após o seu lançamento, The Man Who Cheated Himself foi restaurado e preservado pelo Arquivo de Filme e Televisão da UCLA, a Universidade da Califórnia, e pela Film Noir Foundation. A cópia que está disponível, grátis que nem um passeio no parque, no Cine Antiqua do YouTube, é essa restaurada. A imagem e o som estão perfeitos, como se fosse um filme recém-lançado.

Um policial que investiga um crime que ele encobriu

The Man Who Cheated Himself  aqui virou Por uma Mulher Má – e esse título escolhido pelos exibidores brasileiros não é ruim ou errado. A principal personagem feminina, Lois, o papel de Jane Wyatt, é bonita (embora nada esplendorosa), danada de rica, sempre com roupas como se fosse a uma festa elegantérrima – e é de fato má, como costumavam ser mesmo as mulheres dos filmes noir. E é por ela que o veterano e respeitado tenente da polícia de San Francisco Ed Cullen (o papel de Lee J. Cobb) comete uma gigantesca, estratosférica besteira.

É exatamente como diz o título original: The Man Who Cheated Himself. O verbo cheat significa, no caso, enganar, trapacear, ludibriar, lesar. O homem que trapaceou a si próprio. O homem que se lesou.

A ricaça Lois estava casada pela terceira vez, e queria se divorciar do marido número 3, Howard Frazer (Harlan Warde). Quando o filme começa, Howard está em casa, se preparando para ir para o aeroporto, onde embarcaria para Seattle. Lois chega, os dois discutem, Howard pega a mala e vai embora. A mulher vê, no chão, um comprovante que indica que o marido comprou um revólver, um 38. Com medo de que Howard esteja preparando um esquema para matá-la, liga para seu amante, o tenente de homicídios Ed Cullen, e pede que ele venha ficar com ela.

Algum tempo depois que Ed chega, ouvem um barulho. Lois estava com o revólver do marido na mão – e é mesmo Howard que está chegando. Ela atira três vezes. Uma bala se perde, duas acertam o peito do marido.

Ed liga para o aeroporto, consegue a informação de que Howard havia feito o check in para o vôo para Seattle, que sairia dali a cerca de meia hora, ou coisa parecida.

E aí o tenente de homicídios decide que vai forjar uma história para inocentar a amante. Leva o corpo de Howard para o estacionamento do aeroporto, onde o carro do marido de Lois havia sido deixado, e o coloca lá perto. Tira o dinheiro da carteira dele, para aparentar um latrocínio.

Antes de deixar o estacionamento, Ed é visto por um casal de meia-idade, o senhor e a senhora Quimby (Charles Arnt e Marjorie Bennett), que pedem a ele uma informação. O tenente, de maus bofes, não responde e vai embora o mais rápido possível.

No pedágio junto da Golden Gate, é visto por um conhecido, que troca umas palavras com ele.

Testemunhas. Pistas para quem for investigar o assassinato do homem encontrado morto no estacionamento do aeroporto.

Mas há uma ótima notícia para o Ed Cullen: quem fica encarregado do caso é ele mesmo.

Só que há uma péssima notícia também: seu irmão mais jovem, Andy (o papel de John Dall), recém-ingressado ali no departamento de homícidios, é designado para trabalhar com ele na investigação da morte de Howard Frazer.

Andy é novato, mas é esperto, inteligente, dedicado, incansável. Como sempre admirou o irmão mais velho, tinha ouvido Ed contar histórias de investigações, e aprendido bastante.

Temos então um veterano e competente policial que até outro dia mesmo era honrado, honesto, e por uma mulher má fez a besteira de trapacear a si próprio, investigando um crime cometido pela sua amante e que ele encobriu. E, ao lado dele, o irmão mais novo que o adora e o admira – e quer porque quer descobrir tudo sobre o caso.

Uma beleza de ponto de partida de trama, não?

Quem criou essa história bem bolada foi Seton I. Miller (1902-1974), um dos mais talentos escritores de filmes de ação e aventura dos anos 1930 e 1940, segundo o IMDb. Ele foi um dos roteiristas de Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932) de Howard Hawks, um dos maiores clássicos do cinema policial, e de As Aventuras de Robin Hood (1938) de Michael Curtriz, um dos maiores clássicos do cinema de aventura.

O roteiro deste The Man Who Cheated Himself foi assinado por ele e Philip MacDonald.

Um dos poucos filmes produzidos por Jack M. Warner

O filme foi produzido por Jack M. Warner, por sua empresa Jack M. Warner Productions – que aparece nos créditos com o nome de Phoenix Films. Ele se assinava assim, mas na certidão de nascimento era Jack Warner Jr. – o filho de Jack L. Warner, um dos irmãos que eram donos da Warner Bros., um dos maiores estúdios de Hollywood, fundado em 1923.

Por que raios esse Jack Jr. (1916-1995), filho e sobrinho dos donos da Warner Bros, resolveu criar a sua própria produtora, e por que raios resolveu negociar a distribuição deste filme aqui com um concorrente da Warner, a 20th Century Fox, é um mistério deste mundo de mistérios. Ou talvez não. Uma boa pesquisa na internet deve trazer a história. Alguma briga familiar deve estar envolvida, uma briga de filho contra pai, de Caim contra Adão – como a briga de um Caim contra o seu Adão mostrada em Vidas Amargas/East of Eden, o extraordinário filme de Elia Kazan baseado no romance de John Steinbeck que lançou James Dean. Um filme, como os únicos outros dois que o grande astro fez, lançado pela Warner Bros. do Jack pai, que o Jack Jr. esnobou.

Uma boa pesquisa com a ajuda do Tio Google seguramente encontrará a história de por que Jack Jr. deu as costas ao estúdio do pai e dos tios e foi atrás do concorrente deles. Mas tenho preguiça de fazer essa pesquisa. Só achei que a coisa em si é interessantíssima, e deveria ser apresentada aqui.

Aparentemente, Jack Jr. não se deu muito bem no ofício do pai e dos tios. Produziu apenas quatro filmes, entre 1950 e 1965 – este aqui foi o primeiro deles. Chegou a dirigir um deles, Os Guerrilheiros/Brusfire, de 1962, com John Ireland – produzido e distribuído por outro concorrente da Warner, a Paramount. Não chegou propriamente a deixar um grande ou importante legado.

Um dos poucos itens da página de Trivia do IMDb sobre este The Man Who Cheated Himself indica que as avaliações de Jack Jr. não eram muito espertas. Vou traduzir literalmente:

“Jack Warner Jr. acreditava que Lee J. Cobb seria capaz de se dar bem no papel do protagonista romântico, já que ele estava acabando de sair de uma das mais celebradas temporadas na Broadway no papel de Willy Loman em A Morte de um Caixeiro-Viajante de Arthur Miller. Warner acreditava que esta seria uma escolha de ator que se traduziria em ‘grande bilheteria’. Não foi.”

Uma jovem atriz que virou jornalista importante

A outra pessoa que participa do filme e tem história interessante, curiosa, é Lisa Howard (na foto abaixo), a atriz que faz o papel de Janet, a garota que é noiva e logo a mulher de Andy Cullen.

Janet é a quarta personagem mais importante da história, depois de Ed Cullen, o cunhado, Lois, a amante dele, a mulher má que mata o marido com dois tiros no peito, e Andy Cullen, o irmão mais novo do sujeito que trapaceia a si próprio. Ela é o absoluto oposto de Lois, a ricaça fatal: é jovem, alegre, cheia de vida, apaixonada pelo namorado e depois marido, agradecida ao cunhado pelas oportunidades que ele dá ao irmão mais novo.

Janet é, de longe, o personagem mais alegre e mais simpático deste filme noir.

Nascida em 1930, no Estado de Ohio, Lisa Howard estava portanto com apenas 20 aninhos quando o filme foi lançado. E este foi o seu segundo filme, apenas. Ela foi casada com Felix E. Feist, o diretor – mas, em um caso raro, o IMDb não sabe dizer de quando a quando. Sabe-se que Feist foi seu primeiro marido, e que os dois tiveram um filho. Em 1953, três anos apenas após o lançamento deste filme, ela se casou novamente, com o produtor Walter Lowendahl.

Lisa Howard colecionou 30 títulos em sua carreira de atriz, muitos deles em novelas na TV, entre as datas redondas de 1950 e 1960. Nenhum desses títulos foi propriamente grande.

Iria brilhar muito, muito mais na segunda carreira que escolheu, e que abraçou a partir exatamente de 1960 – a de jornalista. Naquele ano, auge do auge da guerra fria, ela conseguiu fazer a primeira grande entrevista a um jornalista do Ocidente do líder soviético Nikita Khruchev, que havia viajado a Nova York para participar de uma assembléia da ONU. Foi logo contratada pela rede ABC como repórter e rapidamente se tornou a âncora do noticiário do meio-dia, “The NewsHour with Lisa Howard”. Em 1963 e 1964 realizou dois documentários sobre Cuba, segundo o IMDb “a cobertura mais substantiva da revolução de Castro na primeira metade dos anos 60”. Ela chegou a ser uma figura importante para que houvesse o diálogo entre John F. Kennedy e Fidel Castro.

Em 1965, depois de ter sido demitida da ABC e ter perdido, num aborto natural, o que seria seu terceiro filho, ela se matou. Tinha apenas 35 anos.

O final é previsível. Mas o início é uma beleza

Eis o que diz o verbete do livro The Films of 20th Century Fox sobre The Man Who Cheated Himself:

“Um tenente da polícia em San Francisco (Lee J. Cobb) tem um caso com uma mulher da sociedade (Jane Wyatt) que atira e mata seu marido (Harlan Warde). O tenente deixa o corpo de uma tal maneira que sugere um roubo em sua casa. Ele então é designado pelo seu departamento para investigar o caso, assim como seu irmão, um companheiro na polícia. Apesar de seus esforços para desviar seu irmão mais novo…”

Não é necessário transcrever o final da última frase. Se o início do filme, a base da trama, é essa coisa surpreendente – o policial honesto que de repente, por uma mulher má, passa para o outro lado da lei e forja uma cena do crime bem distante de onde ele aconteceu –, o final é bastante previsível. Quase tão previsível quanto o de uma comedinha romântica. O que segura a atenção do espectador – e, sim, o filme segurou minha atenção, assim como a de Mary – é a curiosidade sobre como será que as coisas vão rolar até aquele final que já prevemos. O que vai levar a que a verdade seja escancarada.

O errinho que há na sinopse, que citei en passant no começo deste texto, está na frase “O tenente deixa o corpo de uma tal maneira que sugere um roubo em sua casa”. Diacho, não é na casa – é no estacionamento do aeroporto.

Já falei sobre o fim da história – gostaria de voltar ao princípio dela. A parte sem dúvida mais fascinante do filme.

Eu fiquei com a sensação de que o marido número 3 de Lois, o tal Howard Frazer interpretado por esse Harlan Warde, de fato volta do aeroporto até sua casa para matar Lois e herdar sua fortuna.

É mais do que “eu fiquei com a sensação de que…”. O mais certo seria dizer: Me pareceu que o filme mostra que o marido volta do aeroporto para matar Lois, de tal maneira que acabe herdando sua fortuna.

Ora: Howard sabia que Lois estava pedindo o divórcio. O que o deixaria sem o dinheiro da mulher. Então bolou um plano: comprou o revólver, tomou o cuidado de jogar fora papéis que pudessem eventualmente incriminá-lo, comprou a passagem para Seattle, foi até o aeroporto, fez o check in. Com isso, estabeleceu um ótimo álibi: estava no aeroporto de tantas a tantas horas. Aí deixou o carro no estacionamento, pegou um táxi e chegou em casa para matar – mas aí foi morto.

Um filme de assassinato nada, mas nada típico, este aqui – bem ao contrário do que disse Leonard Maltin. O que a gente fica discutindo não é o final – é o início!

O eventual leitor poderia muito bem ver o filme, que, como disse lá acima, está no YouTube grátis como um passeio no parque. E depois vir comentar aqui se Howard planejou matar a mulher no comecinho da narrativa – ou não!

Anotação em abril de 2022

Por uma Mulher Má/The Man Who Cheated Himself

De Felix E. Feist, EUA, 1950

Com Lee J. Cobb ( Ed Cullen),

John Dall (Andy Cullen),

Jane Wyatt (Lois Frazer, a mulher má),

e Lisa Howard (Janet, a noiva De Andy), Alan Wells (Nito Capa, o bandidinho), Harlan Warde (Howard Frazer, o marido de Lois), Tito Vuolo (Pietro Capa, o pai de Nito), Mimi Aguglia (Mrs. Capa), Charles Arnt (Mr. Quimby, a testemunha), Marjorie Bennett (Mrs. Quimby, a testemunha), Bud Wolfe (Blair), Morgan Farley (Rushton), Howard Negley (Olson), William Gould (médico), Art Milan (funcionário do aeroporto), Gordon Richards (mordomo), Terry Frost (detetive), Mario Siletti (Machetti), Charles Victor (advogado)

Roteiro Seton I. Miller e Philip MacDonald

Baseado em história de Seton I. Miller

Fotografia Russell Harlan

Música Louis Forbes

Montagem David Weisbart

Desenho de produção Van Nest Polglase

Figurinos Elois Janssen

Produção Jack M. Warner, Phoenix Films, 20th Century Fox.

P&B, 81 min (1h21)

**1/2

Título na França: Captif de l’amour.

 

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