Havana

Nota: ★★★★

Havana, de 1990, o sétimo dos sete filmes em que Sydney Pollack dirigiu Robert Redford, é uma belíssima história de amor em tempos conturbados. É também um hino de amor à cidade caribenha – e uma exaltação à revolução que derrubou a sangrenta ditadura de Fulgêncio Batista.

Um filme americano de 1990 que faz uma grande homenagem à revolução que colocou Fidel Castro no poder é algo tão improvável quanto um elefante voar, ou Donald Trump ou Jair Bolsonaro dizer alguma coisa que tenha sentido, seja justa, sensata.

O elogio à derrubada da ditadura de Batista foi quase unânime mundo afora, naquele final dos anos 50. Para os latino-americanos, foi um fato histórico importantíssimo, que marcou com paixão os corações de gerações inteiras. “Desde Célia Cruz / Cuando yo era un niño de Jesus / E a revolução / Que também tocou meu coração / Cuba seja aqui”, cantaria Caetano Veloso, em 1983. No início dos anos 70, o conjunto chileno Quilapayun colocava a voz de Fidel Castro na música “Venceremos” e transformava parte de um discurso dele em letra: “Venceremos, venceremos, / mil cadenas habrá que romper, / venceremos, venceremos, / la miseria sabremos vencer.” Corações de jovens da América Latina, como o meu, aceleravam ao som dessa canção.

Para os Estados Unidos, no entanto, e para a imensa maior parte dos americanos, no entanto, foi um tremendo choque a repentina transformação da ilha paradisíaca de balneário acessível, bem ali pertinho, em país comunista, e logo sede de mísseis atômicos soviéticos. Os vizinhos antes amigáveis se transformaram em inimigos em pé de guerra. Em abril de 1961, um grupo de mercenários, refugiados cubanos treinados em bases da CIA e financiados por Washington, desembarcou em Cuba pela Baía dos Porcos para tentar derrubar o governo de Fidel Castro. A tentativa de invasão fracassou, como se sabe, e em 1962, com a crise da instalação dos mísseis da União Soviética em Cuba, o mundo viveu o momento mais próximo da guerra nuclear total que destruiria todo tipo de vida do planeta.

O governo americano promoveu desde os primeiros meses da revolução cubana um embargo econômico ao país que se manteve e se mantém ao longo de todas estas mais de seis décadas.

Sydney Pollack pretendeu fazer seu filme em Cuba – mas foi forçado a desistir da idéia exatamente por causa do embargo econômico, que proibia empresas americanas (e também pessoas) de investir ou gastar dinheiro na ilha. Ele fala disso em um making off bem curto, de menos de 6 minutos de duração, feito na época do lançamento do filme:

– “Um dos motivos pelo quais aceitei finalmente fazer o filme foi que eu acreditei honestamente, inocentemente, que nós teríamos a oportunidade de filmar em Cuba. Mas, por causa das relações severamente tensas entre os dois países, os Estados Unidos não iriam permitir que uma grande quantidade de dólares fosse gasta lá. Então, a questão seguinte era: onde nós podemos duplicar Havana?”

O cinema tem desses milagres, e Sydney Pollack, o desenhista de produção Terence Marsh e sua equipe recriaram – com absoluto brilho – o visual feérico, todo cheio de neon, da Havana de 1958. Volto a esse milagre do visual do filme mais adiante

No curto making of, o diretor Pollack resume o que é o seu filme:

– “É uma história de amor que acontece durante uma semana, a semana do Natal de 1958, que foi a última semana em que Batista estava no poder, antes de Castro chegar. Foi a última semana dessa espécie de circo alegre que era Havana. Era o abrigo dos jet-setters dos anos 50. Cheio de jogatina, de burlesque, cheio de todo tipo possível de prazer hedonístico.”

Uma mulher lindérrima, um sujeito grosseiro

Uma história de amor em lugar e em tempo conturbados.

Algumas das mais belas histórias de amor da ficção são exatamente assim. O Doutor Jivago de Bóris Pasternak, que David Lean filmou em 1965 – o encontro de um jovem médico com a namorada de um revolucionário na Rússia às vésperas da Revolução comunista. O encontro de um jovem inglês aspirante a escritor com uma cantora americana, e o encontro dos dois com um nobre alemão na Berlim cheia de todo tipo possível de prazer hedonístico às vésperas da ascensão do nazismo em Cabaret (1972), de Bob Fosse. A paixão de uma jovem, charmosa, alegre condessa por um elegante, fino príncipe às vésperas da invasão da Rússia imperial pelas tropas do ditador francês Napoleão Bonaparte no Guerra e Paz de Liev Tolstói, que o cinema já filmou trocentas vezes. O reencontro, em um bar elegante de uma cidade do Marrocos dominado pelos nazistas, de dois amantes que haviam se separado com o início da Segunda Guerra Mundial, ela agora esposa de um líder da resistência ao nazifascismo no Casablanca (1942) de Michael Curtiz, provavelmente o filme mais amado da história do cinema.

O Jack Weil de Robert Redford e a Roberta Durán de Lena Olin ficam se conhecendo logo no início dos 140 minutos de Havana (que passam bem depressa, como sempre acontece nos bons filmes). Estão a bordo de um gigantesco navio que leva para a ilha de temperatura amena o ano todo centenas de turistas americanos, muitos deles com seus carros – é uma mistura de ferryboat com transatlântico tradicional, com amplos, generosos salões apinhados de gente em roupa de gala.

(No finalzinho da narrativa, ouviremos a notícia de que os ferryboats deixaram de navegar entre os Estados Unidos e Cuba. E aqui é bom lembrar que a distância entre Miami e Havana é de 150 quilômetros. Pouco menos que entre Santos e Paraty; bem menos da metade que entre Santos e o Rio de Janeiro.)

Roberta percebe que aquele americano tem jeito de corajoso, destemido, e o procura com uma proposta: no porto de Havana, ela desembarcaria no carro dele, e ele no dela. Pelo favor, ela pagaria uma boa quantia – US$ 800. Ele topa, é claro – como recusar US$ 800, pagos por aquela mulher de beleza faiscante, fantástica, absurda?

Mas Jack é malandro rodado, quilometragem altíssima, e então vai examinar o carro da bela, para saber exatamente com que material proibido ele vai desembarcar em Havana. Não demora muito a encontrar: escondido no vão interno de uma das portas, está um poderoso rádio-transmissor das Forças Armadas americanas.

No porto, a polícia cubana não é tão cuidadosa a ponto de desmontar as portas do carro de Roberta, e Jack sai do porto de Havana com o contrabando intacto. Haviam combinado um encontro no Lido, um imenso cassino dirigido por um velho amigo de Jack, Joe Volpi (o papel do sempre ótimo Alan Arkin), onde cada um pegaria o seu próprio carro. Fazem a troca das chaves, e Jack diz à moça linda uma frase grosseira, uma baixaria horrorosa, coisa de que nenhum outro personagens interpretado por esse sujeito em tudo por tudo admirável que é Robert Redford foi capaz, se não estou enganado. Ele conta para ela que tem um apartamento ali no centro de Havana, e complementa, com uma cara malandro machista idiota:

– “Isso aqui não é como os Estados Unidos. Aqui as pessoas brincam.”

No original é “People fool around here”. E o “fool around” é muito mais do que “brincam. É quase “aqui as pessoas fazem sacanagem”, “aqui as pessoas trepam feito loucas”. Havana era cheia de todo tipo possível de prazer hedonístico, como definiu o diretor Pollack. Havana – muita gente dizia assim, às claras – era o puteiro dos americanos no Caribe.

Roberta não se desconcerta com a grosseria. Responde séria: – “Você é bem direto, não é, sr. Weil?”

Ao que o personagem mais grosseiro que Redford já interpretou na vida responde: – “Hey, I can be suave. But I figure you know a lot of suave guys. I’ve got no edge that way. But how many crude guys do you know?”

Mantive o original para ressaltar que Jack Weil usa uma palavra não muito usual, “suave”. Achei ótimo esse detalhinho: o sujeito vulgar, machista, tentando demonstrar alguma finesse, usa palavra menos comum, mais elegante. “Ei, eu posso ser suave. Mas acho que você conhece um monte de caras suaves. Nisso aí eu não levo vantagem alguma. Mas quantos caras brutais você conhece?”

“Suave”, segundo o Dictionary of English Language and Culture da Longman, significa “tendo ou mostrando muito bem maneiras polidas, especialmente de uma maneira insincera”.

A bela mulher é casada com homem rico, respeitado

Jack Weil é um jogador profissional. Ganha a vida com o pôquer, como antigamente faziam Doc Holiday, Bat Masterson e Bret Maverick, para dar só alguns exemplos famosos. Pela primeira frase que ouvimos dele, falando em off, na abertura do filme – “Estive num monte de lugares desde Pearl Harbor” -, enquanto vemos, numa bela sacada visual, cartas de baralho sendo lançadas sobre a câmara, dá para perceber que ele esteve no Exército, ou na Marinha. Provavelmente lutou na Segunda Guerra, na qual os Estados Unidos entraram depois que os japoneses atacaram, de surpresa, a base americana de Pearl Harbor, na ilha de Oahu. Depois da guerra, não fez outra coisa senão jogar.

Eis a primeira frase de Jack, completa:

– “Estive num monte de lugares desde Pearl Harbor. Gosto de alguma coisa de cada um deles. Até mesmo Vegas. Mas há apenas uma cidade de que eu sinto falta. O general Batista estava mandando no país por quase 30 anos. Mas isso era 1958. Nós não estávamos prestando atenção aos rebeldes nas montanhas. Tudo o que sabíamos de Havana era que as lizes do Prado nunca se apagavam, e você tinha uma danada de uma boa chance de ter a melhor época da sua vida.”

O Jack Weil de Robert Redford é isso: louro, claro, belo, um perfeito Wasp – branco, anglo-saxão, protestante –, um sujeito grosso, grosseiro, machista, um jogador em busca de uma última grande rodada que lhe desse uma montanha de dinheiro e garantisse sua aposentadoria.

Jack se revela muito rapidamente para o espectador. Já a bela moça que recorre a ele no grande navio que vai dos Estados Unidos para Cuba vai sendo revelada aos poucos – tanto para Jack quanto para nós.

Tudo o que ficamos sabendo de cara é que é absolutamente linda e está contrabandeando dos Estados Unidos para Cuba um rádio transmissor poderoso, das Forças Armadas americanos. Claro, dá para sacar imediatamente que está do lado dos revolucionários, dos guerrilheiros que, nas montanhas, lutam contra o Exército do ditador Batista – mas, nos primeiros momentos do filme, é só.

Tenta esconder de Jack até mesmo seu nome, mas acaba revelando que é Roberta – o que faz o canalha imediatamente passar a chamá-la pelo apelido-diminutivo de Bobby.

Levaremos muito tempo, mas muito tempo mesmo, para saber que Roberta é sueca de nascimento (exatamente como a atriz que dá vida a ela: Lena Olin nasceu em Estocolmo em 1955, o ano em que Ingmar Bergman dirigiu Sonhos de Mulheres), morou um bom tempo nos Estados Unidos, especificamente na Califórnia, e depois viveu no México, antes de se radicar em Cuba.

Depois daquele encontro dos dois para trocar as chaves dos respectivos carros, em que o jogador passa a cantada grosseira, agressiva nela, os dois demoram a se rever. O filme vai mostrando as tentativas de Jack de fazer com que seu amigo Joe Volpi arranje um jogo de pôquer com alguns milionários – até que, passado um bom tempinho, Jack revê aquela maravilha de mulher em um bar cheio, animado, como tantos bares em Havana. Ele está com um amigo cubano, o jornalista Julio Ramos (Tony Plana). Ela está – conforme Ramos informa a Jack – com o marido, Arturo Duran, um homem famoso, respeitadíssimo, de uma das famílias mais ricas de Cuba e um revolucionário de primeira hora, que a ditadura de Batista ainda não teve coragem de prender exatamente por sua fama e sua família.

Um americaníssimo Wasp, uma mulher européia de nascimento que havia vivido em mais de um país estrangeiro e agora estava casada com um homem rico, famoso, um revolucionário contra o ditador Batista.

– “Há uma combinação muito interessante entre esses dois”, diz, naquele filmete que já citei, o diretor Sydney Pollack. “Entre o personagem tão americano louro, dourado de Redford, e a aparência e a sensação e o som dela, morena, intensa, levemente estrangeira. Essa é uma combinação exótica, eu acho.”

Qualquer semelhança com Casablanca

Um americano em país estrangeiro – um sujeito charmoso, porém cínico, não comprometido com causa alguma a não ser a sua própria vida. Uma mulher não americana lindíssima, absolutamente comprometida com uma causa, que é também a causa de seu marido ativista.

É. Saltam aos olhos as semelhanças entre o Jack Weil de Robert Redford e o Rick Blaine de Humphrey Bogart em Casablanca, assim como as semelhanças entre a Roberta Duran da sueca Lena Olin e a Ilsa Lund da sueca Ingrid Bergman…

Esse Arturo Duran marido da bela Roberta tem todo o jeito do Victor Laszlo interpretado por Paul Henreid no grande clássico. É altivo, forte – é a própria imagem do lutador, ativista, revolucionário, defensor da causa nobre, da luta contra a ditadura, a injustiça, a corrupção.

E aí há um ponto que me parece interessantíssimo ao rever o filme agora: Raul Julia, o ator que faz Arturo Duran, o terceiro personagem mais importante da história, além de Jack e Roberta, não é citado nos créditos!

Nem nos belos créditos iniciais, que rolam depois das sequências passadas a bordo do grande navio que ruma para Havana e em que estão os dois protagonistas da trama, nos nem nos longos, detalhados créditos finais.

Raul Julia, o grande e belo porto-riquenho Raul Julia, que viveu tão pouco, apenas 54 anos (1940-1994), tão impressionante em dramas pesados como O Beijo da Mulher-Aranha (1985) e Acima de Qualquer Suspeita (1990) quanto nas comedinhas safadas, cheias de ironia A Família Addams, 1 e 2 (1991 e 1993). Excelente, brilhante como Sandy Stern., o advogado de defesa do promotor acusado de matar a amante, como Valentin Arregui, o preso político que divide a cela de presídio com um gay desmunhecado, ou como Gomez Addams, o patriarca da família não exatamente tradicional e perfeita.

Detalhinho nesse quesito Raul Julia não creditado: na página do IMDb com o elenco e as equipes técnicas de Havana, o nome do grande ator também não aparece! O site enciclopédico optou por ser fiel aos créditos do próprio filme. No entanto, na filmografia do ator, claro que Havana está lá

Por que raios Raul Julia não é creditado? Aparece “unbilled”, como se diz em inglês?

Difícil haver perguntas que o IMDb não responda. Está lá na página de Trivia sobre o filme Vi agora, enquanto escrevia esta anotação.

Foi uma besteira de Raul Julia e de seu agente. Eles queriam que o nome aparecesse ao lado do de Redford, antes do título do filme nos créditos iniciais. O tal do “top billing”. Os produtores alegaram que não seria possível, que já haviam assinado contratos com Lena Olin e Alan Arkin – o nome da atriz apareceria ao lado do de Redford, o de Arkin viria em terceiro lugar, depois do título.

Entre aparecer em quarto lugar e não aparecer de jeito nenhum, Raul Julia preferiu a segunda opção. O agente dele, um tal Jeff Hunter (a não ser confundido, é claro, com o ator Jeffrey Hunter), declarou ao Los Angeles Times: “Nosso crédito usual acima do título não estava disponível. Então nós decidimos não estar nos créditos”. O jornal ouviu o diretor Pollack sobre o assunto, e ele confirmou: “O único crédito que sobrava para Julia era ser enfiado com o resto dos nomes… Seu agente achou que isso seria um passo atrás.”

Ai, ai…

Bem, não é à toa que muitas vezes falo sobre essa questão da ordem dos nomes dos atores nos créditos e nos cartazes. Essa é uma questão importantíssima na indústria.

O fim da comida, das trepadas, do jogo, dos shows…

Depois do casal central, Jack Weil e Robert Duran, são importantes na trama os personagens de Raul Julia, Alan Arkin e Tomas Milian. Alan Arkin, já foi dito, faz Joe Volpi, o dono ou diretor do Lido, o gigantesco cassino em que Jack gosta de jogar. É uma figura simpática esse Joe Volpi – simpática e triste, melancólica. À primeira vista, parece que é um sujeito poderosíssimo – mas, na verdade, ele tem que submeter às ordens, aos caprichos do sujeito que de fato manda ali no pedaço, um tal de, se não estou enganado, Roy Forbes (Dion Andreson). Esse sujeito, sim, é o manda-chuva, o poderoso chefão mafioso americano que dava as cartas em Havana, ou um trecho de Havana.

O filme nem tenta se deter muito nisso, mas eram chefões mafiosos americanos que controlavam os negócios relativos a drogas, jogatina e prostituição em Havana, com o beneplácito da ditadura de Batista. O segundo filme da trilogia The Godfather, de Francis Ford Coppola, aborda bastante esse tema.

Tomas Milian, o quinto dos personagens mais importantes da trama, interpreta o coronel Menocal, o chefe da SIM, a polícia política, “a Gestapo de Batista”, como diz alguém, acho que o jornalista Julio Ramos.

Menocal é o Mal em Si. É a versão cubana de Sérgio Paranhos Fleury, Carlos Alberto Brilhante Ustra – o cara que executa o trabalho mais sujo da ditadura, o que pega pesado nos porões da tortura. Há uma fala dele especialmente forte, que me impressionou demais ao rever o filme agora. Ele não consegue compreender por que aquele americano tranquilo, grande jogador de pôquer, resolveu ficar do lado dos revolucionários:

– “Você e eu temos uma boa vida, Jack. Essas pessoas querem arruinar tudo o que há aqui – a comida, as trepadas, o jogo, os shows.”

Meu Deus: que beleza, que maravilha de frase… Resume tão bem a visão dos que jamais aceitaram a revolução cubana…

O próprio Jack não entende muito bem o que está acontecendo com ele. Há um momento em que ele e Roberta descem do carro dele para se proteger de tiros que estão vindo não se sabe de onde, no meio de uma estrada, no campo, e Jack exclama – não para a mulher por quem está perdidamente apaixonado, mas para si mesmo:

– “Eu não estou fazendo isso. Isso é alguma outra pessoa.”

Me ocorreu, um dia ou dois depois de rever o filme (demorei bastante para fazer este texto), que a paixão de Jack por Roberta é ainda maior do que a de Ricky Blaine por Ilsa. Bem, no mínimo tão grande quanto. Os dois sujeitos, os dois americanos cínicos, que não defendiam causa alguma a não ser sua própria pele, abrem mão de absolutamente tudo o que tinham pelo amor de uma mulher.

A história foi escrita em meados dos anos 1970

Quem criou essa beleza de história, esses personagens que nos fascinam, foi Judith Rascoe, uma californiana de San Francisco que, nascida em 1941, estava com 17 anos quando Fidel Castro e seus guerrilheiros entraram em Havana e Batista fugiu da ilha para todo o sempre. Passou por boas universidades – Stanford, Bristol, Harvard –, escreveu contos, trabalhou como jornalista e deu aula de literatura em Yale antes de virar roteirista de cinema, em 1973, com Road Movie, um filme independente dirigido por Joseph Strick. Não é daquele tipo prolífico, que produz demais. Sua filmografia como roteirista tem apenas 11 títulos, e só publicou um livro de contos.

Toda a história de Havana é dela – e a autora escreveu também o roteiro, em meados dos anos 1970. Quando finalmente encontrou produtores que topassem realizar o filme, no final dos anos 80, ela retrabalhou o roteiro em parceria com David Rayfiel.

Na época em que Judith Rascoe começou a escrever a história, em meados dos anos 70, as informações sobre Cuba disponíveis nos Estados Unidos não eram muitas, diz um texto de notas da produção que acompanham o filme no DVD lançado pela Universal. O texto cita uma entrevista de Judith Rascoe: – “Fui para Miami e comecei a conversar com imigrantes cubanos e também com americanos daquele tipo que costumavam voar até Havana para jantar. Gente de todo tipo de crença política. Conheci um jogador americano que acabaria por acaso tendo uma tremenda influência na história. Ele disse casualmente que gostaria de ter estado em Havana em 1958 porque tinha amigos que haviam estado em Xangai em 1948 e ganharam tudo. Ele disse: – ‘A noite antes de uma revolução é perfeita para você ganhar um monte de dinheiro’.”

Em 1976, Pollack leu o roteiro de Juidith Rascoe; nos meses seguintes, viagens que ele fez a Cuba aumentaram seu interesse pelo material.

Consta que, nessa fase anterior ao início da produção, vários atores e atrizes foram sondados para os papéis centrais. Pensou-se em Sharon Stone. Em Nick Nolte. Falou-se na dupla Jack Nicholson e Jane Fonda. Robert Redford pensou em Michelle Pfeiffer. O papel de Roberta teria sido oferecido a Sônia Braga, que teria recusado (Sonia havia trabalhado em 1988 ao lado de Redford em Rebelião em Milagro/The Milagro Beanfield War, o segundo filme dirigido pelo ator, depois de Gente Como a Gente/Ordinary People. Até que tiveram um caso – dizem – o gringo louro lindo e a morena brasileira lindérrima.)

Quando se provou que seria impossível filmar em Cuba por causa do embargo econômico americano, os realizadores optaram, então, pela vizinha República Dominicana, o segundo maior país do Caribe, depois exatamente de Cuba. A vegetação é a mesma, e a capital, São Domingos, tem uma arquitetura um tanto similar à de Havana.

E é aqui que entram o talento e a competência da equipe comandada pelo desenhista de produção Terence Marsh – que inclui ainda George Richardson, o diretor de arte, e Michael Seirton, responsável pelo desenho de interiores.

Sob a supervisão meticulosa de Sydney Pollack, as equipes de Marsh, Richardson e Seirton recriaram na República Dominicana, em 1989, o Centro histórico da Havana de 1958.

Dizem as tais “notas de produção”: “O cenário principal para as tomadas externas seria construído na Base da Força Aérea Dominicana, e a maior parte dos interiores foi criada em amplos armazéns que foram usados como estúdios. O “big set”, como ficou sendo conhecido, era basicamente uma rua de uns 400 metros de comprimento, cercada de fachadas representando cassinos, restaurantes e hotéis. Esse cenário, um dos maiores e mais completos do cinema contemporâneo, foi construído ao longo de 20 semanas sob o comando do diretor de construção Ray Barrett. Esse time (rebocadores, pintores, carpinteiros, aventureiros que construíram andaimes altíssimos) reuniu quase 300 profissionais, incluindo técnicos experientes tanto da Grã-Bretanha quanto dominicanos.”

Os números todos da produção impressionam. Para replicar a região de Havana conhecida na época da ação como Prado, foram criados nos Estados Unidos e transportados para a República Dominicana 80 diferentes letreiros em neon. Foram usados 2 mil extras, que vestiram mais de 8 mil roupas criadas sob a supervisão do figurinista Bernie Pollack, irmão do diretor Sydney.

Foram colocados à disposição da produção cerca de mil automóveis e ônibus dos anos 50.

Um filme caro, um tremendo fracasso na bilheteria

Por tudo isso, Havana foi, é claro, um filme caro. Custou cerca de US$ 40 milhões. As críticas não foram nada boas – e o filme foi um gigantesco fracasso de bilheteria. Para se pagar completamente, uma produção de Hollywood tem que render nas bilheterias ao menos o dobro do capital investido. Havana rendeu apenas um quarto do que custou. Um prejuízo do cão.

Também, queriam o que de um filme americano de 1990 que defende vigorosamente a revolução de Fidel Castro? (Essa frase – peço ao eventual leitor – tem que ser entendida como uma ironia…)

Teve uma indicação ao Oscar, na categoria de trilha sonora original, para o compositor Dave Grusin. Não levou.

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas no total de 4: “De jeito algum uma obra-prima, que faz lembrar abertamente de Casablanca, e um imenso desastre nas bilheterias, mas ainda assim injustamente caluniado como uma porcaria. Redford (começando a envelhecer, mas maravilhoso) interpreta um jogador profissional esperando arrebentar nas horas finais da Cuba de Batista; Olin (surpreendentemente rígida) é a sueca casada que tira a cabeça dele do jogo. O sonho dos desenhistas de produção, o filme é muito agradável por cerca de 90 minutos, depois o interesse diminui um pouco (embora continue sendo interessante para aqueles que ligam para esse trecho da história contemporânea). Similar ao filme subestimado de Richard Lester Cuba. Raul Julia aparece não creditado.”

Interessante. O texto de Maltin é mais elogioso que a cotação; parece se referir a um filme que mereceria 3 estrelas em 4, talvez 3.5, e não as parcas 2.5 que recebeu.

Sim, Cuba de Richard Lester. É preciso falar dele. O americano da Filadélfia Richard Lester, que fez carreira na Inglaterra e deixou uma marca forte de criativo, rebelde, influente, com O Rato na Lua (1963), A Hard Day’s Night (1964), Help! (1965), A Bossa da Conquista (1965), e mais tarde nos brindou com a beleza que é Robin e Marian (1976), com Sean Connery e Audrey Hepburn, voltou a dirigir o primeiro e melhor James Bond da História em Cuba, de 1979.

Em Cuba, Sean Connery interpreta um mercenário britânico que chega à Cuba pré-revolucionária para ajudar a treinar o exército do ditador Batista contra a guerrilha de Castro. Há também uma história de amor – o protagonista reencontra uma ex-amante, agora casada com um fazendeiro inescrupuloso.

Quando vi o filme em 2013, e Cuba já era incontestavelmente uma ditadura sangrenta – como continua sendo em 2022 –, escrevi:

“É um tanto estranho ver hoje, com a perspectiva de 2013, o filme Cuba, que Richard Lester fez em 1979. O filme – exatamente como Havana, que Sydney Pollack realizou em 1990 – vê o mundo com o olhar de 1958. Mostra um país dominado por uma ditadura sangrenta e absolutamente corrupta, que precisava desesperadamente de uma revolução para romper com tudo aquilo. Não há, não pode haver, entre pessoas de bem, quem defenda a ditadura de Fulgêncio Batista – e, portanto, quem seja contra a revolução liderada por um bando de jovens idealistas, que teve apoio popular e tomou o poder no final daquele ano de 1958.”

Havana conta a mesma história de Casablanca

Roger Ebert, o crítico que, ao contrário de tantos outros críticos, gostava de ver filmes, e gostava de gostar de filmes, deu 3 estrelas em 4. Dá vontade de transcrever todo o texto dele, mas Ebert, como alguns malucos que há por aí, escreve muito.

Havana, de Sydney Pollack, que é um bom filme, conta a mesma história de Casablanca, que é um filme melhor”, ele começa. “A diferença entre os dois filmes é instrutiva. Casablanca se beneficia de ser parte de nossa mitologia comum; frases de seus diálogos entraram em nossa fala cotidiana, e Bogart e Bergman são lembrados por causa daquele filme mais do que por qualquer outro. Mas pense nele de novo e você ficará surpreso com a importância que os personagens secundários têm. O mundo de Casablanca é impensável sem Paul Henreid, Claude Rains, Sydney Greenstreet, Peter Lorre, e, naturalmente, Dooley Wilson.

Havana conta uma história parecida, de um homem e uma mulher cujo amor está em conflito com o dilema político de sua época. Tem um triângulo romântico parecido: a mulher precisa escolher entre um bom homem que é politicamente correto, e um homem que tem falhas e procura a redenção através dela. Há outros paralelos: os heróis de ambos os filmes ganham a vida com o jogo, as atrizes nos dois filmes são suecas, gângsteres controlam o mundo em que os personagens vivem. A mais óbvia diferença entre os dois filmes – e esta é a razão pela qual Havana não é melhor – é que Casablanca permite que seu personagem coadjuvante chave, o idealista político, surja mais completamente, e Havana o vê mais como um pano de fundo para as estrelas.”

Hum… Não concordo com o grande Roger Ebert, de forma alguma. Acho, bem ao contrário, que o espectador fica conhecendo muito bem Arturo Duran; que Raul Julia nos apresenta um personagem muito bem construído, que aparece por inteiro, em terceira dimensão, como gostam de dizer críticos de língua inglesa, para diferenciar dos personagens mal acabados, esquemáticos, que não se põem de pé. Não vejo nada que torne o Victor Laszlo de Paul Henreid mais completo que o Arturo Duran de Raul Julia.

Mas, diabo, quem sou para contestar Roger Ebert?

Atenção: a partir daqui, Ebert conta o final do filme

Bem. A partir daí Ebert fala sobre a trama do filme, com seu texto gostoso, fascinante. E, ao final, ele apresenta um spoiler.

Se por acaso o eventual leitor enfrentou estas trocentas linhas mas ainda não teve o prazer de ver o filme, deveria parar de ler por aqui.

Ao final de seu texto, Roger Ebert volta a dizer que o personagem de Raul Julia não convence o espectador. Ele, Ebert, não ficou convencido de que Arturo Duran merece ficar com a mulher. O personagem de Paul Henreid em Casablanca é mais bem desenhado do que o de Raul Julia, ele argumenta de novo. E conclui: “Embora nossas mentes possam compreender por que os personagens fazem o que eles fazem em Havana, fica em nossos corações uma dúvida sobre se os amantes não deveriam ter dito ah, diabo, e ido logo para o último avião para Las Vegas”.

Poucas vezes discordei tanto do grande Ebert.

Roberta jamais seria feliz em Las Vegas. Imagine! Que horror imaginar isso…

Acho o final de Havana belíssimo. Triste, é claro, profundamente triste – mas belíssimo.

Em todos os sentidos possíveis e imagináveis. Porque aquela bela história de amor não deu certo, é claro.

Mas também porque tenho a certeza de que nem o idealista Arturo nem a linda Roberta teriam ficado felizes com o que veio a ser de Cuba, anos depois da revolução que tocou os corações de todos nós.

A revolução feita para livrar o povo cubano de uma ditadura sangrenta, que prendia e torturava seus inimigos, se transformou em uma ditadura sangrenta, que há mais de meio século prende, tortura e mata seus inimigos.

Anotação em 11/2022

Havana

De Sydney Pollack, EUA, 1990

Com Robert Redford (Jack Weil),

Lena Olin (Roberta Duran),

e Raul Julia (Arturo Duran), Alan Arkin (Joe Volpi), Tomas Milian (coronel Menocal), Daniel Davis (Marion Chigwell, o pretenso o jornalista), Tony Plana (Julio Ramos, jornalista), Betsy Brantley (Diane, a turista atrás de sexo), Lise Cutter (Patty, a turista atrás de sexo), Richard Farnsworth (o Professor), Mark Rydell (Meyer Lansky, o milionário), Vasek Simek (Willy), Fred Asparagus (Baby Hernandez, o cubano ricaço), Richard Portnow (Mike MacClaney), Dion Andreson (Roy Forbes, o chefão), Carmine Caridi (capitão Potts), James Medina (cabo), Joe Lala (empresário cubano), Salvadore Levy (tenente assistente de Menocal), Bernie Pollack (homem do hotel), Owen Roizman (Santos), Victor Rivers (jovem cubano), Alex Ganster (jovem cubano), Segundo Tarrau (Ricardo), Felix German (Tomas), Giovanna Bonnelly (Monica), David Jose Rodriguez (Bufano), Franklin Rodriguez (Jose), Hugh Kelly (Carlos)

Roteiro Judith Rascoe, David Rayfiel

Baseado em história de Judith Rascoe

Fotografia Owen Roizman

Música Dave Grusin

Montagem Fredric Steinkamp, William Steinkamp

Desenho de produção Terence Marsh

Desenho de arte George Richardson

Desenho de interiores Michael Seirton

Coreografia Vincent Paterson

Figurinos Bernie Pollack

Produção Sydney Pollack, Richard Roth, Mirage Enterprises. Distribuição e DVD Universal.

Cor, 140 min

R, ****

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