O Beijo da Mulher Aranha / Kiss of the Spider Woman

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na GloboPlay em 7/2022.)

É tanta, mas tanta coisa a se falar de O Beijo da Mulher Aranha, esse filmaço de Hector Babenco baseado no romance de seu meio-conterrâneo Manuel Puig, que literalmente não sei por onde começar – eu, um sujeito que há mais de 50 anos mexe com o ofício de saber por onde começar um texto.

Digo meio-conterrâneo porque Babenco não é apenas argentino –  como são o escritor Puig e os fantásticos personagens que ele criou, o ativista político Valentin Arregui e o ativista da gayice Luis Molina. Babenco é meio argentino, meio brasileiro – assim como seu filme é meio americano, meio brasileiro, e, nele, Valentin Arregui e Luis Molina não estão presos num presídio portenho durante a ditadura argentina, e sim num presídio paulista durante a ditadura brasileira, já que a paisagem que vemos é toda, toda de São Paulo.

Na verdade, Valentin e Molina não são necessariamente argentinos ou brasileiros. Falam em inglês porque vêm na pele respectivamente de Raul Julia e William Hurt, e porque uma co-produção Brasil-EUA teria muito mais chances de sucesso no mercado internacional se fosse falada em inglês. Os personagens são sul-americanos, presos durante uma das muitas ditaduras de direita que dominaram tantas nações desta pobre América do Sul nos anos 60 e 70. Poderiam ser argentinos, brasileiros, uruguaios, chilenos, paraguaios. Tanto faz.

O Beijo da Mulher Aranha, o filme, fala sobre a tragédia que é a vida sob ditadura. É um retrato tristíssimo, agoniante, angustiante, daquela página infeliz não apenas da História do nosso país, mas de boa parte do continente.

Essa foi uma das impressões fortes que tive, enquanto via essa beleza de cinema com que o brasileiro-argentino Hector Babenco brindou o mundo, e que ficaram passando pela minha cabeça e meu coração depois de vê-la. O filme não fala do Brasil nem da Argentina. Fala – da maneira mais ampla, geral e irrestrita possível – do continente.

Foi a primeira vez que vi o filme. Por algum motivo ou conjunção de fatores que não consigo explicar, não vi na época do lançamento, 1985 – e nem nos anos todos que se seguiram. Só vim a ver agora, segundo semestre de 2022, quando há apenas um país sob ditadura na América do Sul – e uma ditadura que não é de direita. Quando o Brasil enfrenta a possibilidade de um golpe com que nos ameaça todo santo dia seu presidente, um fanático por ditadura e tortura.

É muito estranho, inquietante, apavorante ver O Beijo da Mulher Aranha nestes tempos de Jair Bolsonaro.

O filme mostra a terrível realidade que Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e também o Brasil já haviam deixado muito para trás – mas um ensandecido capitão do Exército tornado presidente da República quer trazer de volta.

Manuel Puig foi obrigado a sair da Argentina

El Beso de la Mujer Araña foi o quarto dois oito romances que Manuel Puig escreveu; veio depois de La Traición de Rita Hayworth (1968), Boquitas Pintadas (1969) e The Buenos Aires Affair (1973). Este último foi proibido pelo governo argentino e, por causa dele, Puig recebeu ameaças de morte de grupos de extrema direita, o que o levou a se exilar no México. Não voltaria a seu país natal: morreu em Cuernavaca, no México, em 1990, de um enfarte agudo, aos 57 anos de idade.

É fascinante notar que Puig começou a escrever El Beso em 1974, durante o rápido período de regime democrático espremido entre as ditaduras argentinas de 1968-1973 e de 1976-1983. O livro foi lançado em 1976, exatamente o ano em que os militares derrubaram o governo de Isabelita Perón e iniciaram uma das mais sangrentas ditaduras da História da América do Sul. Saiu inicialmente na Espanha – e permaneceria proibido na Argentina até 1983, quando foi liberado pelo governo de Raul Alfonsín, o primeiro após o fim do regime militar.

Há uma informação fantástica sobre o livro na Wikipedia que tem que ser registrada aqui: a respeitadíssima editora francesa Gallimard, que havia publicado os três romances anteriores de Puig, a princípio se recusou a lançar na França Le Baiser de la Femme-Araignée – e aqui transcrevo o que diz a Wikipedia em espanhol: “O responsável por essa decisão foi Ugné Karvelis, com a justificativa de que a imagem do revolucionário suavizado pelo homossexual afeminado ia contra os ideais leninistas com os quais a editora se identificava.”

Ah, meu Deus, como a esquerda leninista às vezes se parece com a direita radical…

(Ugné Karvelis, aprendo agora, foi uma escritora, crítica literária, tradutora e diplomata lituana que se radicou na França; “seu trabalho como editora na francesa Gallimard foi fundamental para a difusão na França da literatura latino-americana e da Europa Oriental”, conta a Wikipedia. Foi companheira de Julio Cortázar.)

Manuel Puig passou uma temporada radicado no Rio de Janeiro, nos anos 80. Em 1983, fez uma adaptação de El Beso para o teatro. E depois chegou a participar da pré-produção do filme – cujo roteiro foi escrito por Leonard Schrader (1943-2006), irmão do também roteirista e diretor Paul Schrader, de Taxi Driver (1976) e Vivendo no Limite (1999), entre outros.

Dois homens antípodas, vivendo numa pequena cela

Uso como base a sinopse escrita por Jean Tulard em seu Guide des Films para apresentar um resumo da trama. Mas só como base – sempre acabo colocando meus pitacos.

Em uma cela de prisão de uma ditadura da América Latina – o nome do país não é citado uma única vez, e portanto pode ser qualquer um –, convivem à força um jornalista, ativista político, membro de uma organização clandestina que luta contra o regime, e um homossexual assumidérrimo, acusado de ter corrompido um menor de idade. Como já foi dito, o primeiro, Valentin Arregui, é interpretado por Raul Julia, e o segundo, Luis Molina, por William Hurt.

Para passar o tempo, para ter algum tipo de diversão, para fugir, escapar daquela duríssima realidade, Molina costuma contar para o companheiro de cela as histórias de filmes que ele viu – ou simplesmente inventou que viu. E conta detalhadissimamente, chamando a atenção para pequenos detalhes aos quais só mesmo um homossexual muito afeminado, afetado, fresco, veado, daria grande importância.

O talento com que Babenco e esses dois grandes atores apresentam a situação e os personagens para o espectador é de fazer cair o queixo.

São dois homens completamente diferentes um do outro, como se viessem de planetas diferentes – e estão trancafiados numa cela, obrigados a ter uma intimidade maior do que dois cônjuges em lua de mel. Molina parece de fato se divertir enquanto, enrolando-se e desenrolando-se em panos, fazendo caras e bocas, relata a história de um filme passado na França durante a ocupação nazista. Valentin havia sido submetido a sessões de tortura, está exausto, zonzo, o corpo dolorido, mas deixa o colega de cela falar – só pede a ele, por motivos óbvios, que não fique descrevendo em detalhes mulher pelada nem pratos de comida.

William Hurt dá um show como esse veadaço Luís Molina. Um show, uma coisa impressionante. É uma daquelas interpretações especialmente brilhantes, inesquecíveis, tipo assim a Edith Piaf feita por Marion Cotillard em Piaf: Um Hino ao Amor/La Môme (2007).

Me estendi na sinopse. Não tem jeito, eu sou incorrigível.

Volto à síntese feita no guia de Jean Tulard:

Valentin faz críticas a Molina, chama-o de chato. Diz que ele não entende nada da História, não tem a menor compreensão do que foi o nazismo presente no filme que ele fica narrando. Mas, quando passa muito mal, com dores violentíssimas no estômago e no intestino (veremos depois que sua comida havia sido envenenada por ordem do diretor do presídio), Molina cuida dele com uma abnegação, um desprendimento que deixam Valentin absolutamente atordoado.

Bem. A partir daqui, o mestre Tulard prossegue relatando os fatos que surgem quando o filme já está ali pela metade de seus 120 minutos – e relata tudinho, até o fim. Coisa que, naturalmente, não vou fazer, porque seria um absurdo spoiler para o eventual leitor que ainda não tenha visto o filme.

Babenco criou todo um filme dentro do filme

No romance de Manuel Puig – que, é necessário dizer, era um homossexual assumido, um ativista da causa, membro fundador da Frente de Liberación Homosexual em 1971 –, Molina narra nada menos de seis filmes para Valentin. No filme de Babenco, o que ele conta para Valentin (e, claro, para o espectador) é o segundo dos que aparecem no livro – o tal passado na Paris ocupada pelos nazistas. Livro é livro, filme é filme – e, no Beijo da Mulher Aranha de Babenco, o espectador o filme que Molina está narrando, e isso faz uma diferença imensa. Babenco criou todo um filme dentro do filme.

No verbete sobre o livro de Puig, a Wikipedia em espanhol diz o seguinte sobre esse segundo filme dentro da história: “La segunda historia que cuenta Molina está basada en una película de propaganda nazi. A diferencia de la primera, no está claro si se trata de una película real o no, pero puede ser una combinación de varias películas nazis y una película estadounidense llamada Paris Underground (1945).”

Ahnn… Tenho muitas dúvidas sobre se o filme que Molina narra no filme de Hector Babenco é uma “propaganda nazista”. Valentin diz isso, diz que aquela história que Molina está contando é anti-semita, porque mostra judeus que fazem contrabando de alimentos na Paris ocupada.

O filme que Molina narra, e que vemos na tela, filme dentro do filme, mostra francesas que se apaixonam por invasores de seu país. Mostra franceses que resistiam à ocupação. Mostra judeus que fazem contrabando. Isso não é ser propaganda nazista. Tudo isso existiu de verdade – e, diabo, as francesas que se apaixonam por invasores continuam amando seu país e lutando na resistência contra os invasores.

Bem, mas isso – se o filme dentro do filme é propaganda nazista ou não – é o de menos. O mais importante, obviamente, é perceber que Molina criava muito, inventava coisas, bolava pequenos detalhes que talvez o filme que ele viu não tivesse. A rigor, a rigor, pode ser que ele estivesse inventando tudo aquilo. Não é o relato fiel da história de um filme – é uma história na qual Molina acrescentava coisas da sua imaginação, ou simplesmente uma história que ele inventava inteirinha.

E, sim: como Valentin pensava e dizia, Molina não tinha conhecimento algum de História, de política. Não fazia a mínima idéia do que significava o nazismo. Para ele, tudo o que importava era o fato de que o oficial nazista Werner (Herson Capri, com uma peruca louríssima) era bonito e vivia num castelo lindo.

Diversos grandes atores estão em papéis secundários

No filme passado na Paris ocupada, a principal personagem feminina é uma cantora famosa, Leni Lamaison – e o nome é todo é uma grande brincadeira, uma mistura de Leni Riefenstahl, a cineasta nazista, autora de Triunfo da Vontade/Triumph des Willens (1935), tido como o mais perfeito filme de propaganda nazista (assim uma espécie de O Encouraçado Potemkin de Sergei Mikhailovich Eisenstein da ideologia contrária), com uma palavra francesa que não existe, que por sua vez é a mistura de “     la” com “maison”, ou Acasa. Leni Acasa.

Leni Lamaison é interpretada por Sônia Braga. La Braga, do alto de sua beleza deslumbrante aos 35 anos de idade, interpreta três papéis. Além de Leni Lamaison, ela faz a Mulher Aranha que Molina inventa para ajudar Valentin a enfrentar as pavorosas dores, e faz ainda Marta, a burguesa que o revolucionário Valentin ama de paixão, embora esteja comprometido com a companheira de lutas Lídia (o papel de Ana Maria Braga).

É necessário registrar que, para o filme dentro do filme, Babenco convocou vários bons atores brasileiros. A maravilhosa Denise Dumont faz Michelle, uma grande amiga da cantora Leni, que, ao mesmo tempo, trabalha na resistência aos nazistas e está apaixonada por um nazista. Wilson Grey faz um dos líderes da resistência francesa.

Outros bons atores foram escalados para papéis na trama central. José Lewgoy, o maior ator especializado em vilões da história do cinema brasileiro, faz o diretor do presídio. O grande Milton Gonçalves faz Pedro, um oficial da ditadura que trabalha ao lado do diretor do presídio. Miriam Pires faz a mãe de Molina. Nuno Leal Maia, que em 1978 havia trabalhado ao lado de Sônia Braga em A Dama do Lotação, de Neville de Almeida (ah, meu Deus, as coxas de La Braga…), e participado de várias pornochanchadas tipo O Bem Dotado – O Homem de Itu (também de 1978), faz Gabriel, um garçom bonitão que havia sido a paixão de Molina. E o veterano e respeitabilíssimo Fernando Torres faz Américo, o líder dos opositores da ditadura.

Quanto talento junto, meu Deus!

Uma figura absolutamente especial no filme é Patricio Bisso, que interpreta Greta – um travesti amigo de Molina que canta uma canção para ele quando o homossexual sai do presídio, quase no final na narrativa, em liberdade condicional – e ao mesmo tempo assina os figurinos do filme. E, segundo informa o IMDb, foi o sujeito que ajudou William Hurt a compor o personagem Luis Molina. Sim, foi Patricio Bisso – um multi-artista, ator, transformista, desenhista, figurinista, argentino de nascimento radicado no Brasil, como Hector Babenco – que levou o grande ator americano para as boates gay de São Paulo, fez com que ele convivesse com travestis, drag queens, se acostumasse com os trejeitos, as caras e bocas daquele universo.

Vai aqui também uma coisa muito pessoal: eu trabalhei ao mesmo tempo que Patrício Bisso no Jornal da Tarde. Ele trabalhava na Arte, no fundo da redação, como ilustrador, ao lado de outros talentos incríveis como Sandra Abdalla, Rubens Matuck, Ariel Severino, Cláudio Morato, Marguerita Bornstein e a dupla Gepp & Maia. Nunca fomos próximos, de forma alguma – infelizmente. Mas, diabo, fui colega de trabalho do cara, convivi com ele na mesma redação!

Consta que tanto William Hurt quanto Raul Julia não cobraram salário para trabalhar no filme. A produção pagou apenas as passagens de avião e as despesas de hospedagem dos atores em São Paulo.

E aqui caberia registrar a quanto andavam, em 1985, as carreiras dos dois excelentes atores e também as de Sônia Braga e Hector Babenco.

O primeiro filme de William Hurt havia sido em 1980, Viagens Alucinantes/Altered States, de Ken Russell. No ano seguinte havia tido a sorte grande de interpretar o advogadozinho interiorano Ned Racine em Corpos Ardentes/Body Heat, ao lado da esplendorosíssima Kathleen Turner, sob a direção de Lawrence Kasdan. O maravilhoso Kasdan o dirigiu novamente em O Reencontro/The Big Chill (1983). Sim, era um ator de grande sorte, em ascensão, quando topou a aventura de viajar para um país remoto, lá no fundo da América do Sul, para interpretar um veadaço num filme dirigido por um argentino.

William Hurt ganhou o Oscar por sua interpretação de Luis Molina. Ganhou também o Bafta, foi o melhor ator em Cannes, levou o David de Donatello de melhor ator em filme não italiano. Prêmios importantíssimos, e merecidíssimos. De fato, é uma das interpretações mais impressionantes, mais fantásticas que eu já vi – e, diacho, eu já vi filme pra cacete.

Interessante: William Hurt é de 1950, exatamente o meu ano. Raul Julia é dez anos mais velho, de 1940. No filme, não parece haver uma diferença de idade entre os dois.

Raul Julia começou a carreira em 1968. Antes de 1985 fez mais de uma dúzia de filmes, mas creio que o único de fato importante foi O Fundo do Coração/One From the Heart (1981), de Francis Ford Coppola. Em 1990 teria um belíssimo papel em Acima de Qualquer Suspeita, de Alan J. Pakula, como o advogado de defesa Sandy Stern. E em 1991 faria um perfeito Gomez Addams em A Família Addams, de Barry Sonnenfeld.

Sônia Braga havia trabalhado no Hair, segundo a letra de Tigresa, de Caetano Veloso, que fala dos pêlos dessa deusa que tremiam ao vento ateu. Nascida em 1950, exatamente o mesmo ano de William Hurt (e meu), a deusa já era, em 1985, uma das mais queridas e admiradas atrizes do cinema e da televisão brasileiros, depois de, para citar só alguns poucos títulos, A Moreninha (1970), a novela Gabriela (1975), Dona Flor e Seus Dois Maridos de Bruno Barreto (1976), o já citado A Dama do Lotação (1978), a novela Dancin’ Days (1978-1979), Eu Te Amo de Arnaldo Jabor (1981) e o filme Gabriela, ao lado de Marcello |Mastroianni.

E Hector Babenco…

Deus meu. Ainda não havia dirigido Meryl Streep e Jack Nicholson em Ironweed (1987), nem Tom Berenger, John Lithgow, Daryl Hannah,

Aidan Quinn, Tom Waits e Kathy Bates em Brincando nos Campos do Senhor (1991), mas havia feito nada mais nada menos que O Rei da Noite (1975), Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977) e Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980).

Ô louco, meu. Quanto talento!

O primeiro Oscar de ator que faz personagem homossexual

Falei dos prêmios que William Hurt ganhou, mas é preciso mencionar também os demais prêmios recebidos pelo filme. Foram quatro indicações ao Oscar, em categorias importantes:  melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor ator para William Hurt. Venceu nesta última. E há um detalhe interessante aí: o Oscar para William Hurt foi o primeiro dado a um ator que interpretava um homossexual assumido.

O filme concorreu à Palma de Ouro em Cannes, o que já é uma grande láurea. E teve ainda quatro indicações ao Globo de Ouro: melhor filme – drama, melhor ator tanto para William Hurt quanto para Raul Julia, melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga. Ao todo, foram 14 prêmios, fora 10 outras indicações.

O filme foi incluído na relação dos “50 Maiores Filmes Independentes” de todos os tempos pela revista Entertainment Weekly, numa edição especial em novembro de 1997.

Há um grande número de histórias interessantes sobre a produção do filme; a página de Trivia do IMDb sobre O Beijo tem mais de 50 itens. Vou transcrever algumas poucas desses fatos, eventos.

* Manuel Puig, que estava radicado no Rio de Janeiro em 1985 e, como já foi dito, acompanhou os preparativos para a produção, a princípio não concordou com a escolha dos dois atores para interpretar os personagens que havia criado. Considerava Raul Julia grande demais para o seu Valentin, e que o físico de William Hurt não correspondia ao quarentão Molina. Consta que ficou decepcionado ao ver o filme pela primeira vez, na cabine de montagem. Mas, ao ver a versão definitiva, junto com o público, na estréia, “sentiu que podia funcionar”, como diz a Wikipedia.

* William Hurt demorou para encontrar a forma de interpretar Luís Molina, um sujeito cheio de maneirismos, de gestos afetados. Finalmente ele se convenceu de que deveria se comportar não necessariamente como um homossexual, mas como “uma mulher aprisionada no corpo de um homem”.

Ainda William Hurt: o ator conquistou o respeito e a admiração das pessoas envolvidas na produção, por sua integridade, sua sinceridade, sua dedicação ao trabalho. Diversas pessoas da equipe fizeram questão de acompanhá-lo até o aeroporto no dia em que embarcou de volta para os Estados Unidos.

* Não foi uma filmagem tranquila. Muito ao contrário. Houve muita tensão entre Babenco e William Hurt. A relação entre os dois foi deteriorando à medida em que as filmagens avançavam, até chegar a um ponto em que os dois mal se falavam. O assistente de direção Amilcar Monteiro Claro se transformou no intermediário entre os dois.

* As filmagens foram entre outubro de 1983 e março de 1984. A previsão era de cerca de 60 dias, mas as cenas internas, dentro da cela e do presídio, foram mais difíceis que o imaginado, e as filmagens acabaram se estendendo por mais de 100 dias. O interior do presídio foi construído nos antigos estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo.

Há várias sequências filmadas nas estações Bresser e Sé do metrô de São Paulo. Várias mostram o Minhocão, a via elevada sobre a Avenida São João. As sequências de ação bem perto do final do filme foram filmadas na Praça da Sé e no Pátio do Colégio. E parte das cenas do filme dentro do filme, o filme sobre nazistas em Paris, foi feita na Estação Júlio Prestes.

* O livro de Manuel Puig renderia ainda uma versão musical na Broadway. O espetáculo estreou no Broadhurst Theater de New York no dia 3 de maio de 1993, e teve 904 apresentações. Venceu três prêmios Tony, o Oscar do teatro americano, como melhor musical, melhor libreto e melhor trilha sonora.

“A humanização do amor em todas as formas”

Eis a avaliação de Jean Tulard sobre Le Baiser de la Femme-Araignée, que ganhou 3 estrelas no Guide des Films:

“Apoiado sobre a interpretação alucinante de dois atores, um filme de rara inteligência, rico em torções e profundamente emocionante. As sequências da mulher aranha reencontram o charme dos velhos seriados que nutriram a cultura de Molina. Tudo está certo nesta obra-prima.”

O livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider, diz que “Hector Babenco faz uma corajosa exploração de questões políticas, psicológicas e sociais dentro das fronteiras de uma prisão de segurança máxima sul-americana.” Cita o “desempenho espetacular” de William Hurt, e conclui o verbete sobre o filme assim:

“Embora tenha, antes de tudo, uma importância histórica significativa (a homosexualidade raramente havia sido retratada em tais termos no cinemão), o desempenho de Hurt vai além da teatralidade: seu talento consiste em manter os verdadeiros sentimentos do personagem escondidos sob diversas camadas de múltiplas intensidades. (…) Considerado como um Casablanca gay, a principal virtude de O Beijo da Mulher Aranha se concentra na humanização do amor em todas as suas formas.”

Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “Adaptação do romance altamente reconhecido de Manuel Puig, o filme de fato vai melhorando à medida em que a narrativa avança, revelando camadas na história de um homem gay e um ativista político trancados juntos numa cela de uma prisão da América do Sul. Hurt está soberbo em sua atuação vencedora do Oscar como um homem cujo único alimento para a sobrevivência está em suas lembranças de filmes bregas de Hollywood. Roteiro de Leonard Schrader.”

Roger Ebert deu 3.5 estrelas em 4 e dedicou a ele uma série de elogios em seu belo texto.

Kiss of the Spider Woman conta uma daquelas raras e fascinantes histórias em que uma coisa parece estar acontecendo enquanto outra está acontecendo de fato. Há passagens no filme que parecem ser absolutamente independentes, autônomas, e então uma palavra ou gesto revela que elas têm profundidades que podemos apenas imaginar. Pelo final do filme, o que havia começado como uma competição entre duas personalidades opostas se expandiu para uma escolha entre duas atitudes totalmente diferentes diante da vida. E a escolha não é sexual, embora por um bom tempo tenha parecido que era. É entre a liberdade e a escravidão.”

Bem mais adiante, Ebert escreve:

“As atuações são maravilhosas. O diretor, Hector Babenco, é brasileiro, mas dirigiu seus astros americanos em inglês sem ser vítima da ocasional perda de tom que você às vezes ouve quando os estrangeiros trabalham em idiomas pouco familiares. (Que se perdõe o pequeno equívoco do crítico por dizer que Babenco é brasileiro…) William Hurt, que ganhou o prêmio da Academia e o de Cannes como melhor ator, cria um personagem completamente diferente de todos os outros que já interpretou – um personagem francamente teatral, exagerado e maneirístico –, e no entanto nunca parece estar procurando por efeitos. Raul Julia, suado e todo físico nas primeiras cenas, gradualmente revela uma poesia que faz com que todo o filme funcione. E Sonia Braga, chamada para satirizar as más atuações, faz uma perfeita mulher aranha.”

E o grande crítico fecha assim seu texto:

“Cada década parece dominada pelo cinema de um país diferente (além do cinema de Hollywood, é claro, que é em si um país). Nos anos 1950 foi a Itália. Nos anos 1960, a França. Nos 1970, a Alemanha. Nos 1980, o Brasil e a Austrália parecem ser o centro do trabalho mais excitante. Os créditos anteriores de Babenco incluem o comovente Pixote, sobre uma criança que cresce nas ruas de São Paulo. Kiss of the Spider Woman é outro filme de insights e surpresas.”

Uau, meu, mas que baita elogio ao cinema brasileiro! Me lembrei que Roger Ebert havia ficado absolutamente encantado com outra pérola do cinema brasileiro nos anos 80, o Bye Bye Brasil de Cacá Diegues.

O Beijo da Mulher Aranha é de fato um filmaço. Uma obra-prima.

Anotação em julho de 2022

O Beijo da Mulher Aranha/ Kiss of the Spider Woman

De Hector Babenco, Brasil-EUA, 1985

Com William Hurt (Luis Molina),

Raul Julia (Valentin Arregui),

Sonia Braga (Leni Lamaison/Marta/Mulher Aranha)

e José Lewgoy (o diretor do presídio), Milton Gonçalves (Pedro, oficial da ditadura), Miriam Pires (a mãe de Molina), Nuno Leal Maia (Gabriel, a paixão de Molina), Fernando Torres (Americo, o líder dos opositores da ditadura), Patricio Bisso (Greta, o travesti amigo de Molina), Herson Capri (Werner, o alemão no filme dos nazistas), Denise Dumont (Michele, a amiga de Leni no filme dos nazistas), Nildo Parente (o líder da resistência no filme dos nazistas), Antonio Petrin (Pé Torto no filme dos nazistas), Wilson Grey (auxiliar do Pé Torto no filme dos nazistas), Miguel Falabella (tenente), Walter Breda, Luis Guilherme, Walmir Barros (agentes), Luis Serra (o médico da prisão), Ana Maria Braga (Lidia, a namorada de Valentin), Benjamin Cattan, Oswaldo Barreto, Sergio Bright, Claudio Curi (amigos de Molina), Joe Kantor (juiz), Luis Roberto Galizia (enfermeira), Pericles Campos, Edmilson Santos, Walter Vicca, Kenichi Kaneko (guardas do presídio), Georges Schlesinger, Carlos Fariello, Frederico Botelho (contrabandistas judeus no filme dos nazistas), Sylvio Band, Paulo Ludmer (rabinos)

Roteiro Leonard Schrader

Baseado no romance homônimo de Manuel Puig

Música John Neschling

Fotografia Rodolfo Sanchez

Montagem Mauro Alice, Lee Percy

Direção de arte Clovis Bueno

Decoração de interiores Felipe Crescenti

Figurinos Patricio Bisso

Produção David Weisman, HB Filmes, FilmDallas Pictures.

Cor, 120 min (2h)

****

4 Comentários para “O Beijo da Mulher Aranha / Kiss of the Spider Woman”

  1. Prezado Sérgio

    O Beijo da Mulher Aranha não ganhou o Oscar de melhor filme de 1986.
    Foi um dos cinco indicados, mas o filme que ganhou foi Entre Dois Amores (Out of África), de Sidney Pollack, com Robert Redford e Meryl Streep.
    Teve quatro indicações e ganhou “apenas” o Oscar de melhor ator, com William Hurt.

    O filme é, de fato, maravilhoso.
    O seu texto é excelente, como sempre.

    Na cerimônia do Oscar de 1986, ao agradecer o prêmio, o que fez rapidamente, Hurt falou “Saudade, Brasil”.
    Depois disso, o William Hurt foi indicado para melhor ator em 1987, por Filhos do Silêncio, e em 1988, por Nos Bastidores da Notícia.
    São apenas 21 casos na história, em uma lista com grandes astros
    (https://cinema.uol.com.br/album/2018/02/16/21-atores-e-atrizes-com-3-ou-mais-indicacoes-consecutivas-ao-oscar.htm? )

    Foi também o filme que lançou a carreira internacional da maravilhosa Sônia Braga.
    Apesar de belíssima, e boa atriz, ela sofreu por ser latina, fez alguns filmes de pouca expressão nos Estados Unidos, como Rebelião em Milagro, Luar sobre Parador, e Rookie – um profissional do perigo; além de namorar Clint Eastwood e Robert Redford (como ela confessa em uma entrevista sensacional para o Ediney Silvestre, nos primórdios da Globo News, quando ainda era correspondente em Nova Iorque, que eu nunca encontrei na internet (embora procure periodicamente).

    Uma outra curiosidade é que, na época, se comentou muito que poderia ser o primeiro Oscar conquistado por um filme brasileiro.
    Aquela ladainha da imprensa preguiçosa que é usada todos os anos.
    Daí surgiu a piada, que o primeiro Oscar seria para um filme brasileiro falado em inglês.
    Por conta disso, na época foi “ressuscitado” o Decreto 51.106, de 01/08/1961, editado pelo Jânio Quadros, então presidente, estabelecendo que para ser considerado brasileiro, um filme deve ser falado em português.
    Até onde consegui pesquisar, o referido decreto segue em vigor
    (https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-51106-1-agosto-1961-390634-publicacaooriginal-1-pe.html )
    Detalhes que ajudam a entender as dificuldades do cinema nacional.

    Você menciona o musical na Broadway, mas houve também uma versão nacional, estrelada pela Claudia Raia, Miguel Falabella e Tucá Andrada, em 2000.
    Assisti em São Paulo, e embora tenha gostado, as críticas na época foram apenas mornas, e talvez por isso não tenha sido tão marcante, ou mesmo excursionado pelo país
    (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1611200018.htm).

    Por fim, como você menciona, o elenco é espetacular.
    Infelizmente, a grande maioria já falecida, inclusive Hurt, Júlia e Babenco.

  2. André, muitíssimo obrigado pela correção – que, rapidissimamente, já fiz!
    Muitíssimo obrigado mesmo! Pela correção, e pelas preciosas informações.
    Um abraço.
    Sérgio

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